Estávamos no ano de 2008. Terminada mais uma edição (a oitava) do Big Brother Brasil, entra no ar uma outra novela da vida real. Só que, desta vez, ao invés das trivialidades do dia-a-dia de um grupo de pessoas distintas confinadas dentro de uma casa, cercados de câmaras e disputando um prêmio milionário, a trama do espetáculo é a morte trágica de uma menina de 5 anos de idade: Isabella Nardoni.
Paraíso [nada] Tropical
Para o público não faz muita diferença. O que vale é poder saborear a emoção de cada desdobramento da estorinha, para poder comentar os últimos detalhes com amigos e colegas de trabalho; em rodas de conversa; dentro de bares, tomando uma cervejinha; na fila do banco ou dentro de algum transporte coletivo lotado.
E, como em épocas de Copa do Mundo todo brasileiro é técnico de futebol, neste caso todo mundo "se torna" investigador policial. Cada pessoa tinha sua própria versão para responder a pergunta do momento:
"Quem matou Isabella?".
Desde o assassinato de Tais – personagem vivida pela atriz Alessandra Negrini, na novela "Paraíso Tropical", de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, atração do horário nobre na Rede Globo naquele ano ("Quem matou Tais?", era o grande segredo que movimentava os capítulos finais da trama) –, o brasileiro não exercitava tanto sua lógica investigativa.
Para aplacar tamanha avidez por novidades, haja exposição do tema na mídia. Todos os dias, a estorinha da morte da criança era contada e recontada, na TV, no rádio, na internet e nos jornais impressos, do mesmo modo como ainda hoje é tratado o resultado do "paredão" do famigerado reality, uma partida de futebol decisiva, um capítulo final de novela ou mesmo um detalhe picante da vida de uma "celebridade" televisiva.
O que pouca gente consegue entender é que há uma inversão neste caminho. Não foi entre o público que surgiu o interesse pela morte de Isabella, demandando uma produção contínua de notícias sobre o caso. Foi, sim, a própria mídia quem construiu esse interesse, levando o público a uma comoção. Quem preferir pode chamar esta prática de manipulação, mas, no jornalismo, ela tem o nome de "agendamento".
O caso
Em março de 2008, Isabella de Oliveira Nardoni, de cinco anos, morreu após ser jogada do sexto andar de um prédio na zona norte de São Paulo. Seu pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta, Anna Carolina Jatobá, foram condenados pela morte e estão presos. O casal até hoje alega inocência e tenta recorrer da decisão. O crime gerou grande comoção popular. Vários episódios do caso foram marcados por manifestações pedindo justiça.
Na noite de 29 de março de 2008, Isabella foi jogada da janela do apartamento onde moravam seu pai, a mulher e os dois filhos do casal. A menina estava sob os cuidados do pai, com quem ficava a cada duas semanas.
Na mesma noite, a polícia descartou a hipótese de acidente: a tela de proteção da janela havia sido cortada. O pai e a madrasta passaram a madrugada depondo, cada um dando a sua versão para o fato. O casal afirmou que havia ido ao mercado com as crianças, conforme foi comprovado pelas câmeras de segurança do local. Ao retornarem, Alexandre subiu primeiro com Isabella, que havia dormido no carro. Ele a colocou na cama, trancou a porta do apartamento e desceu novamente para buscar os outros filhos, que aguardavam dentro do carro com a mãe. Disse que não havia nada de anormal no apartamento.
Ao subir novamente, pai e madrasta viram que Isabella não estava na cama. Foi quando perceberam que a tela do outro quarto estava cortada e que a menina havia sido jogada. Alexandre então ligou para o seu pai. O casal desceu e começou a gritar – Anna Carolina pedia para chamarem o resgate, enquanto Alexandre dizia que não era para ninguém sair nem entrar no prédio pois havia ali "um ladrão". Segundo Alexandre, alguém que tinha uma cópia da chave entrou no apartamento no momento em que ele se ausentou.
Dois dias depois, a polícia afirmou que gotas de sangue foram encontradas pelo apartamento. Segundo laudo preliminar feito do Instituto Médico Legal (IML), a menina foi estrangulada antes de ser jogada pela janela. Posteriormente, peritos concluíram que Isabella, além de sufocada, também sofreu agressões antes de ser lançada.
Um vizinho contou à polícia que ouviu gritos de uma criança dizendo "para, pai" antes de Isabella ser jogada. Disse ainda que o casal brigava constantemente e que, antes do crime, os dois tiveram uma briga "de desespero".
Os acusados
No dia 2 de abril, a prisão temporária do pai e da madrasta foi decretada por suspeitas de envolvimento na morte de Isabella. Eles se entregaram e divulgaram cartas nas quais alegavam inocência.
"Todos estão me julgando sem ao menos me conhecer...",
escreveu o pai.
"Amo ela como amo aos meus filhos...",
afirmou a madrasta.
Após oito dias presos, Alexandre Nardoni e Anna Carolina foram libertados por um habeas corpus. Na saída da delegacia, uma multidão os esperava gritando "justiça".
Com o avanço das investigações, peritos encontraram resíduos da tela de proteção na roupa de Alexandre e sangue de Isabella em sua bermuda. Segundo a polícia, a tela foi cortada pelo assassino e não havia indícios de uma terceira pessoa na cena do crime.
Em depoimento, Ana Carolina de Oliveira, mãe de Isabella, disse acreditar que o casal estava envolvido na morte de sua filha. Ana Carolina disse ainda que ela e sua mãe já haviam sido ameaçadas de morte por Alexandre. O motivo foi terem matriculado Isabella em uma escolinha sem que ele fosse consultado. Familiares de Ana Carolina confirmaram seu depoimento e disseram que desaprovavam à época o relacionamento dela com Alexandre.
Alexandre... |
No dia 18 de abril, o casal foi indiciado pela morte da menina. Na mesma data, a polícia afirmou que havia sangue de Isabella no carro de Alexandre. Em maio, a Justiça aceitou a denúncia do Ministério Público contra o casal, que voltou a ser preso.
Para a polícia, Isabella foi ferida na testa com algum objeto pontiagudo, como uma chave, quando ainda estava no carro. Ao subir com a menina para o apartamento, uma fralda teria sido usada para estancar o sangue. Uma vez na sala do apartamento, Isabella teria sido estrangulada por cerca de sete minutos por Anna Carolina enquanto Alexandre cortava a tela de proteção da janela do quarto.
A menina então teria sido levada por Alexandre até o quarto. Ela ainda estaria viva, mas inconsciente. Após subir na cama rente à janela, o assassino teria segurado Isabella pelos pulsos e, com o corpo dela virado para ele, jogou a menina do sexto andar. Isabella caiu de lado no jardim do prédio. Ao ser encontrada, ela ainda estava viva, com a bacia e o punho direito fraturados, mas morreu a caminho do hospital.
...e Anna Carolina em entrevista concedida à revista IstoÉ |
Em março de 2010, Alexandre e Anna Carolina foram levados a júri popular. Após cinco dias de julgamento, o juiz Mauricio Fossen sentenciou Alexandre Nardoni a 31 anos, 1 mês e 10 dias de prisão, e Anna Carolina Jatobá, a 26 anos e 8 meses. Eles foram condenados por homicídio triplamente qualificado
– "pelo meio cruel (asfixia mecânica e sofrimento intenso), utilização de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida (surpresa na esganadura e lançamento inconsciente pela janela) e com o objetivo de ocultar crime anteriormente cometido (esganadura e ferimentos praticados anteriormente contra a mesma vítima)" –,
de acordo com a sentença.
Houve também o agravante de a menina ser menor de 14 anos. Alexandre recebeu uma pena maior pois o crime foi contra sua própria filha. Os dois ainda foram sentenciados a 8 meses de detenção em regime semiaberto por fraude processual, por terem alterado a cena do crime. Na sentença, o juiz afirmou que as penas ficariam acima da base definida no Código Penal em razão da "culpabilidade" do casal e das circunstâncias, em que os réus, disse, demonstraram "frieza emocional e insensibilidade acentuada".
Em abril de 2010, o juiz negou novo júri e, em setembro do mesmo ano, o Tribunal de Justiça negou recurso para anular o julgamento do casal, que está preso em Tremembé.
A Mídia no Tribunal do Juri
A mídia precisa, permanentemente, de um tema palpitante para noticiar. Pode ser um escândalo político, um desastre, um grande evento ou... um crime. Depois do desastre aéreo da Tam e da sequência de escândalos políticos do mensalão, do caso Renan e dos cartões corporativos, tentou-se emplacar o escândalo do dossiê, com a ministra Dilma Rousseff como personagem principal e o PT como coadjuvante. Mas o tema era de pouco apelo popular e a tragédia envolvendo Isabella veio "no momento certo", para ocupar o espaço principal dos noticiários. A menina superou a ministra; o crime familiar superou os erros do corporativismo político no Governo Federal.
Nestes episódios de grande exposição, a mídia explora cada tema até a exaustão. Depois disso, os descarta. Afinal, quem, hoje, se importa com personagens como Marcos Valério, Delúbio Soares ou mesmo com João Hélio, aquele menino que foi arrastado por diversas ruas no Rio de Janeiro, preso ao cinto de segurança de um veículo, em uma morte que causou comoção semelhante a de Isabella (garanto sem medo de errar, que há quem nem sequer se lembra dessa tragédia).
João Hélio tinha 6 anos quando foi morto, em fevereiro de 2007. Junto à comoção por seu assassinato, vieram os apelos para que a legislação penal brasileira fosse revista, se tornando mais rigorosa com os criminosos adolescentes. Na época, o Congresso Nacional ensaiou alguma movimentação neste sentido. Mas, como em todo agendamento jornalístico, o caso se esgotou em termos de mídia antes de ser concluído nos tribunais de justiça. Hoje, não se discute qual o destino dos assassinos de João Hélio muito menos se clama por uma revisão em nosso código penal.
A imprensa age em função de audiência, quanto maior ela for maior será o seu lucro e divulgar a versão acusatória traz mais ibope e a espetacularização da notícia, o que não colabora em nada com a sociedade, a não ser no agravamento de uma sensação de insegurança, de impunidade e de corrupção generalizada.
Outro crime da mesma proporção e consequência foi o de Bruno Fernandes, ex-goleiro do Flamengo – acusado em 2010 como mandante pelo assassinato da "modelo" Eliza Samúdio, sua ex-namorada. Ele também possuía todos os requisitos para responder em liberdade, agravado ainda por não haver a materialidade do crime, uma vez que não tinha corpo, encontrava-se recluso até hoje, quando o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Marco Aurélio Mello, concedeu decisão liminar (provisória), que contribuiu para sua soltura no dia 24 de fevereiro, da Apac (Associação de Proteção e Assistência ao Condenados) de Santa Luzia (MG), fazendo com que "a novela" sobre o caso Eliza Samúdio entrasse novamente em cartaz no panteão midiático.
Conclusão
Há muitos casos similares a estes que não são divulgados, portanto não chegam ao conhecimento da sociedade, ao final um grande número é absolvido.
O fato é que se a mídia não tivesse feito a divulgação massiva do assassinato da pequena Isabella, o destino do casal Nardoni poderia ter tomado outro rumo. Os meios de comunicação uniformizaram as opiniões prejudicando da pior forma um julgamento que não foi eivado de imparcialidade.
Em virtude dos fatos mencionados pode-se dizer que a mídia não assumiu efetivamente a sua função social que é de levar a notícia aos espectadores de forma imparcial, sem emitir juízo de valor. O fato de existirem tantas pessoas e jornalistas acompanhando o caso e, principalmente, o julgamento pôde ter proporcionado um sentimento de medo de restar frustrada a opinião pública e majorar a impunidade que assola o nosso país. Os réus não precisavam de sentença para serem condenados, este resultado já foi adquirido desde a prisão preventiva.
[Fonte: "A prova é a Testemunha", Illana Casoy, 2010, Editora Larousse, 240 páginas]
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