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domingo, 20 de agosto de 2023

CONTÉM SPOILERS — "AMOR, ESTRANHO AMOR", DE WALTER HUGO KHOURY

(foto/divulgação)
Uma questão polêmica gera confronto entre diferentes pontos de vista sobre um mesmo tema. Capaz de motivar a escrita de um artigo de opinião, ela envolve, necessariamente, um assunto de interesse público, ou seja, uma demanda em que ao menos uma determinada comunidade esteja envolvida, e diferentes soluções ou respostas, cada uma das quais reunindo posições favoráveis e contrárias. Assim, trata-se de estabelecer — sempre por meio do debate — qual delas deverá ser assumida pela comunidade afetada.

Ou seja, em resumo, uma polêmica é um conteúdo onde se debatem ideias acerca de um tema que esteja em alta na sociedade. É uma discussão "rica" em conhecimento e apontamentos que geram divergências críticas, contrapontos e opiniões diferentes. Uma questão polêmica é sempre uma frase curta que pode ser uma afirmação ou uma pergunta. Essa frase deve levar o leitor a várias interpretações, deixando–o a tributar uma discussão que, quase sempre é divergente a de outra pessoa. 

Mas, a polêmica não se restringe apenas no âmbito do conceito literário, uma vez que ela tem o poder de direcionar (e até mesmo objetivar) atitudes no contexto social, determinando escolhas, nem sempre sendo elas as mais relevantes, prudentes ou sensatas. Por isso, quando nos vemos diante de uma polêmica é de primordial importância que conheçamos todos os lados dos que e do que nela estão envolvidos, para que, assim, possamos, então, agir em meio a elas, com um mínimo de equilíbrio, equidade e sensatez.
Polêmicas vazias, são frutos de mentes estéreis.

Características da questão polêmica

• Controversa: ideias opostas/contrárias à do outro. São opiniões divergentes. 
• Subjacência: que fica implícito (escondido). 
• Convergência: que segue numa mesma linha de direção. 
• Aberta: polêmicas que podem ser discutidas com intenções claras e rápidas. 
• Fechada: polêmicas que abrem discussão sobre temas mais centralizados em assuntos do cotidiano.
Este preâmbulo se fez necessário para eu introduzir os temas sobre o filme do qual irei falar em mais um capítulo da minha série especial de artigos "Contém Spoilers", pois, no quesito polêmica, esse filme tem quatro décadas que a alimenta: "Amor, Estranho Amor", dirigido pelo brilhante cineasta brasileiro Walter Hugo Khouri (✩1929/✞2003), com certeza, ainda que nunca o tenha visto, você, com certeza, já ouviu falar dele. Mas, será que o que ouviu falar realmente o define?

E, antes que você já vá torcendo o nariz, é importante conhecermos a obra em questão, cujo brilhantismo filosófico e psicanalítico foi esfumaçado pela polêmica de recortes feitos fora de seu contexto, só para se contrapor ao destaque na fama de uma então desconhecida modelo em ascenção, que à época era namorada de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé (✩1940/✞2023), determinada pseudo debutante a atriz, que anos mais tarde ficaria conhecida como "a rainha dos baixinhos", é imprescindível que conheçamos a biografia de seu criador.

Sobre o autor


Walter Hugo Khouri durante as filmagens 
de "As Filhas do Fogo", em 1978
(Foto: Acervo família Khouri)

As melhores mentes da arte parecem condenadas ao esquecimento, certamente por conta da demanda utilitarista que consome poéticas densas e as substitui por um regozijo raso e imediato. 

No cinema, essencialmente um produto da comunicação de massa, essa condição do sucateamento da memória é explícita. Se por um lado novos artífices se revelam a cada ano, com seus trabalhos crivados de uma identidade própria, por outro, figuras de renome que abriram caminhos às novas gerações parecem diluídas na ingratidão historicista.

É o caso do brilhante cineasta Walter Hugo Khouri, filho de pai libanês e mãe italiana, realizou mais de 20 longas desde a metade final dos anos 1950, atravessando modismos e movimentos que o colocaram à margem por conta de sua associação com um cinema menos revolucionário e mais existencialista. 
Os psiquicamente perturbados personagens de Khouri não refletem o grosso da população. Com exceções, são todos membros da classe burguesa, homens e mulheres atravessados por uma sensação de vazio inextinguível.
Entre a metade dos anos 1960 e final da década de 1980, houve em São Paulo um período de intensa produção cinematográfica independente. Essa produção ficou conhecida como cinema da Boca do Lixo, em referência à região onde eram localizadas as produtoras de tais filmes, um quadrilátero que inclui a rua do Triunfo e a rua Vitória no bairro da Luz no centro da cidade. Essa produção foi equivalente a aproximadamente 40% da produção nacional da época, sendo um grande sucesso de público e tendo ficado nacionamente conhecida como "pornochanchada".

Trata-se de um período eclético com produções de vários gêneros. Abrindo mão de uma coerência temática, foram produzidas comédias, dramas, policiais, faroestes, filmes de ação, kung fu, terror, entre outros, conteúdos diversificados, porém sempre pautados pelo erotismo.

Uma vez que esse cinema tinha que se auto-sustentar, a produção da Boca ficou marcada por filmes baratos que atingiam grande sucesso de público. Característica marcante desse cinema, o erotismo funcionava como regra para satisfazer o gosto popular. 
O convívio com elementos marginalizados, prostitutas e criminosos que ocupavam a região, estigmatizou o cinema da Boca como um cinema de baixa qualidade, com excesso de pornografia e narrativas que visavam o comercial.
Dentre essa produção comercial, destacam-se alguns cineastas com propostas mais autorais: experimentais e introspectivas. Obras que não deixavam de carregar os elementos de erotismo, porém utilizavam-no apenas como pano de fundo. Por exemplo, a produção autoral do cineasta Walter Hugo Khouri.

Khouri nasceu em São Paulo, no ano de 1929, e, como já dito, ao longo de sua carreira realizou 25 longas-metragens. Iniciou sua carreira trabalhando na produção do filme "O Cangaceiro" pela Companhia Vera Cruz e dirigiu seu primeiro filme independente em 1951, "O Gigante de Pedra". Como autor completo, escreveu o roteiro, dirigiu, operou a câmera e orientou a montagem dessa e diversas outras obras.

Características da obra Khouriana

Sua filmografia pode ser dividida em três fases principais, nas quais pretendia filmar a decadência moral da classe mais abastada da sociedade brasileira, além de transformar a estética de erotismo em um incômodo pessoal, psicológico.
Dessa forma, Khouri — diferentemente do que fora produzido no Cinema Novo — estabelece um estilo que descreve outra face do Brasil: 
o caráter existencial, a problemática dos indivíduos de classe média alta.
Em 2023, o cineasta paulista completaria 94 anos. Mas até o mais dedicado estudante de cinema, hoje, perguntará: "Quem foi ele?". A despeito de novas pesquisas que resgatam e reinterpretam a história do cinema brasileiro, a poética de Khouri amarga um ostracismo virtual imposto por anos de uma análise superficial de sua trajetória. 

Considerado cerebral e elitista, o cineasta é dono de uma das obras mais complexas, instigantes e plurais do cinema mundial, influenciadas pelo que de melhor houve na produção de filmes de vanguarda.
"Os filmes se fazem através de mim. Não sou eu quem os faço". 
Assim falava Walter Hugo Khouri, que estudou filosofia na USP, mas em vez de concluir seus estudos no extenuante ambiente acadêmico, optou por migrar sua percepção da aridez existencial para as telas do cinema. 

No início dos anos 1950, quando a cena paulista acumulava alguns dos melhores e mais ambiciosos estúdios, a saber, Vera Cruz, Cinematográfica Maristela e outros, o diretor debutou com uma produção já grandiloquente, "O Gigante de Pedra" (1954).

Ao longo dos anos 1970, Khouri teria de conciliar o recorrente exame psicológico com a demanda por um erotismo mais explícito. No entanto, não abriu mão do estilo que adotara e, com frequência, a lascívia da qual se valeu chega a sufocar o espectador, tamanha a brutalidade velada de um sexo fugaz que em nada serve aos instintos imediatos, mas revela o lado tenebroso das relações físicas fugidias. 

Esse torturante claustro dos impulsos da carne marca "As Deusas" (1972), em que o cineasta recorre a uma fenomenologia característica de filósofos como Merleau-Ponty (filósofo francês, ✩1908/✞1961). Um casal em crise e uma psicanalista sensual envolvem-se num processo de autoanálise involuntária, isolados num sítio, onde somente a natureza irá assistir a um processo relacional falho. 

Assim também é em filmes como "O Último Êxtase" (1973), "O Prisioneiro do Sexo" (1979) e "Convite ao Prazer" (1980) [Já assisti a todos!], todos protagonizados pelo mesmo Marcelo, de sua juventude à maturidade, em busca de uma transcendência pelo sexo, que se revela inalcançável.

Nos anos 1980, já um consagrado artífice, Khouri elevou sua provocação e seu estilo rebuscado aos limites possíveis dentro de uma indústria cinematográfica que começava a dar sinais de decadência irremediável. Com "Eros, o Deus do Amor" (1981), colocou o espectador na pele de Marcelo, em câmera subjetiva, e consolidou seu talento para fotografar a beleza feminina como jamais outro cineasta havia feito. 
Mas é a polêmica do filme seguinte, o protagonista deste artigo, "Amor, Estranho Amor" (1982), que ainda sustenta uma vaga lembrança de quem é Walter Hugo Khouri, talvez por um equívoco imperdoável das instâncias legais. Lembrado como o filme pornográfico de uma estrela do universo infantil, o filme não é nem pornográfico, nem a tal estrela é sua protagonista.
Muito longe disso, "Amor, Estranho Amor" é um filme sobre a memória fragmentária de um garoto que descobre o mundo dos adultos pela verdade da prostituição de sua mãe e da corrupção política que circula pelas alcovas de um prostíbulo de luxo, confrontada com a história recente de um Brasil dominado pelo totalitarismo varguista. 

A atribulada situação jurídica que culminaria no embargo do filme caminhou ao lado de uma condição lastimável de produção que assolaria o cinema brasileiro a partir do descumprimento das leis de reserva de mercado da extinção da Embrafilme, em 1990.

É possível destacar desse período o mais famoso filme de Khouri, "Noite Vazia", de 1964, onde estabelece o erotismo humano como uma forma de auto-flagelação, longe de uma exposição descompromissada e vulgar, o sexo em sua obra é cru, dói, e chega aos mais íntimos desejos do inconsciente humano.

Tal presença do sexo como elemento norteador dessas buscas existenciais é a condição que aproxima o diretor às fontes de financiamento da Boca do Lixo, fato esse que determina sua terceira fase, dos anos 1970 ao fim da década de 1980. 

Nesse momento o cineasta diminui seu estilo europeu, e investe na produção da chamada "pornochanchada", primeiramente para corresponder às exigências dos produtores da Boca do Lixo e de seu público. 

Apesar de assumir a lógica do erotismo explícito, Khouri mantém sua marca extremamente pessoal, obstinado a não abrir mão de sua visão de mundo. Utilizando o erotismo a partir do incômodo, o diretor garante o interesse do público, o investimento da Boca e a impressão de seu cinema autoral.

Auter ego?


Fato interessante da filmografia de Khouri é a presença de um personagem constante, Marcelo. O personagem é considerado o alter ego do diretor, movido principalmente pelo narcisismo masculino, busca uma afirmação sexual que vai além da conquista. Sua filosofia niilista é uma fachada que esconde seu verdadeiro interesse, a conquista sexual.

Após a Boca do Lixo, o cineasta realiza, no início da década de 1990, algumas co produções internacionais, como "Forever" (1990).

Walter Hugo Khouri morreu aos 73 anos, em São Paulo, no dia 27 de junho de 2003, deixando 26 filmes, ao menos dois roteiros inéditos e várias ideias inacabadas. 

Sua proposta revela a intensão de um cinema total, um tipo de produção composta de elos que se unem num projeto único. Em todas as suas obras, ouvimos recorrências na trilha sonora e entendemos a coincidência de personagens e ações. 

Ao longo dos próximos anos, seu acervo deverá servir a estudos de maior fôlego e a esforços para reabilitar essa poética tão plural e crítica como poucas produzidas no contexto histórico do cinema nacional.

Agora sim, conheçamos mais sobre o filme e o que há além da polêmica que ofuscou todo o seu brilhantismo como uma das grandes obras da sétima arte brasileira.

"Amor, Estranho Amor"

Algo bem mais que "o filme da Xuxa"


Xuxa, na premiere do filme (foto/divulgação)
O poder da ignorância. Durante anos, eu ouvi o tão propalado discurso de que uma Xuxa, ainda desconhecida e novinha (16 anos!), participara de um filme pornô e fizera sexo com um menino imberbe (12 anos!).
Durante este tempo todo, esta retórica foi alimentada pela própria apresentadora. Graças à sua sanha desenfreada em apagar qualquer vestígio de que um dia esta obra existira. Vergonha Arrependimento? Mais promoção? Não sei bem. Talvez, um pouco de tudo isso.
A questão, parece, é que ela sempre julgou ter uma imagem a zelar. Afinal, era a de "Rainha dos Baixinhos". Contudo, nesta história toda, quais são os fatos verdadeiros? O que é realidade e o que é lenda? 
O fato verídico é que, em 1982, ela contracenou, sim, com o então garoto Marcelo Ribeiro. A lenda é que, acreditem, não há nada de vergonhoso ou desonroso no conteúdo deste longa-metragem. Muito pelo contrário.
Em uma sexta-feira de fevereiro, dia 12, de 2021, 39 anos após seu lançamento nos cinemas, finalmente, após um imbróglio jurídico que se arrastava há décadas, "Amor, Estranho Amor", foi exibido na televisão brasileira. Coube ao Canal Brasil, da TV paga, a veiculação desse exemplar conhecido popular e equivocadamente como "o filme da Xuxa", assim nem tanto pela nem tanto relevante participação da tal "Rainha dos Baixinhos" no elenco, mas principalmente pela força que a celebridade fez ao longo dos últimos anos para apagar esse episódio de uma carreira que estava começando. 
Estima-se que entre 1991 e 2018 ela tenha gastado US$ 60 mil anualmente para continuar como detentora dos direitos autorais do título, desse modo tendo poder sobre sua circulação e, como neste caso, privando-o da possibilidade de encontrar novos públicos. 
Segundo relatos da própria Xuxa, ela foi convencida por seu então namorado na ocasião, Pelé, a participar da produção, vivendo a prostituta iniciante dada de presente ao menino de 12 anos, logo servindo para ele possivelmente ter sua primeira experiência sexual. 

Obviamente, os esforços censórios da apresentadora foram no sentido de preservar intacta a imagem cândida com seu público-alvo. De fato, ela não achava prudente deixar circular um trabalho em que contracena nua (praticamente o tempo todo) com uma criança, especialmente no período em que estava prestes a se lançar ao estrelato na TV.

Nada mais que uma coadjuvante em cena, Xuxa chegou ao cúmulo de mover uma ação judicial contra o Google, tentando obrigar a empresa a exterminar qualquer vínculo de seu nome com "Amor, Estranho Amor"

Primeiro, ela impôs a censura por intermédio do poderio financeiro. Segundo, buscou apagar rastros do trabalho, querendo o atirar no esquecimento. Mais recentemente, em 2018, abriu mão de pagar pelos direitos e até advogou publicamente a favor do acesso ao longa-metragem no qual contracena com os veteranos Vera Fischer, Tarcísio Meira (✩1935/✞2021) e Mauro Mendonça, entre outros nomes bastante conhecidos, como Wálter Foster (✩1917/✞1996). 

Aliás, numa entrevista concedida ao portal Papo de Cinema durante o 26º Festival de Vitória, Fischer comentou o assunto, sem papas na língua, quando perguntada: 
"Outros atores muito importantes também estavam naquele filme, como Tarcísio Meira , Íris Bruzzi e Mauro Mendonça. Foi um desrespeito com todos esses profissionais (ela se refere ao embargo). Além de ter ganhado o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Brasília, recebi também o Troféu Air France, que era um dos mais disputados naquela época. Ou seja, é claro que fiquei chateada, pois quero que, quem ainda não o assistiu, conheça essa obra".
Concordo plenamente com ela! Ainda bem que hoje, a obra está disponível para quem quiser conferir o quão rica ela.

Sim, o filme é muito bom!


A despeito da fama por conta da celeuma com a tal Xuxa Meneghel 
(sim, para mim, devido ao fato de eu a considerar artisticamente irrelevante, ela nunca deixou de ser uma tal), 
"Amor, Estranho Amor" é um filme de valor, sobretudo por sua coragem ao mesclar política e desejo. Tudo isso embalado num processo memorialístico que pode, inclusive, ser responsável por colocar em xeque coisas que vemos — pois, grande parte do filme é a projeção das lembranças do homem adulto em contato com um cenário importante ao período de seu amadurecimento. 

"Amor, Estranho Amor", como em vários provocativos filmes que Khouri fez nos anos 1970 e 1980, é atravessado pelo erotismo volumoso na nossa produção cinematográfica das épocas citadas, algo que, obviamente, em tempos de patrulhamentos e militâncias ideóligicas, seria inimaginável.

Freud explícito


Não há pudores quanto à nudez — inclusive a tão comentada de Xuxa, na cena em que se oferece ao assustado menino vivido por Marcelo Ribeiro —, tampouco com relação a abordar temas considerados tabu, como o Complexo de Édipo. 

Numa cena, após resistir às investidas de uma beldade seminua, o pré-adolescente se deleita com a visão da própria mãe tomando banho. Mas, o gesto está bastante distante da vontade simplista de escandalizar. Funciona mais como indício violento de impulsos íntimos interditados pela sociedade. 

Naquela circunstância, é um espelho para várias conjunturas de natureza diferente, mas de teor simbólico semelhante, tais como os próprios humores da coletividade diante das mudanças sócio-políticas que aconteceriam. 

Trata-se de uma obra ambientada na convulsionada época do Estado Novo, em que o realizador mistura diversos poderes e anseios ali investidos a fim de construir um panorama denso e sedutor, mesclados com imagem e trilha sonora soturnos. 
Aos que buscarem simplesmente o escândalo, um aviso: o filme é muito mais do que a fama adquirida de censurado.

A trama

Uma ode à Psicanálise

Trailer de "Amor, Estranho Amor" (YouTube)
Dirigido e roteirizado por Walter Hugo Khouri, "Amor, Estranho Amor" começa com Hugo (Walter Forster), um senhor de uns 70 anos, chegando a um velho casarão da elite paulistana. Uma vez dentro, vagando pelos cômodos, seus pensamentos voam no tempo e retornam ao distante mês de novembro de 1937, para um Brasil prestes a mergulhar na ditadura do Estado Novo.

Hugo percorre os cômodos vazios do casarão que nos anos 1930 abrigou um bordel de luxo, basicamente frequentado por grandes figurões da vida política brasileira daqueles tempos. Assim como em boa parcela dos filmes dirigidos por Khouri, um dos nossos cineastas mais sofisticados e infelizmente negligenciados, aqui a inocência é confrontada pela sexualidade exacerbada nesse lugar. 

Além disso, o erotismo é enquadrado como elemento importante dentro de um jogo de poderes que evade as fronteiras da propriedade e reverbera extracampo nos gabinetes do legislativo. O protagonista recorre à sua pureza da infância em busca de algo que perdeu pelo caminho.

Juntos, somos transportados e o observamos, criança (Marcelo Ribeiro), chegando ao mesmíssimo lugar. No entanto, conduzido pelas mãos da avó. Até aí, nada demais. Acontece que, como já dito, na tal residência funcionava um bordel de luxo gerenciado por Laura (Íris Buzzi). Lá, a mãe de Hugo, Anna (Vera Fischer), era a principal garota de programa. A preferida do doutor Osmar (Tarcísio Meira), o todo poderoso Governador de São Paulo.

Outra recém-chegada é Tamara (Xuxa Meneghel). Uma lindíssima jovem do interior de Santa Catarina que está ali para seguir os passos de Anna, assim como de todas as mulheres que um dia cruzaram os portões daquele casarão. Além disso, ela também está sendo preparada para ser dada como "presente" ao doutor Benício (Mauro Mendonça), o Governador de Minas Gerais, como parte de uma trama política do dr. Osmar, no sentido de conseguir solidificar o apoio de seu aliado, tendo, assim, chances de assumir o poder e o protagonismo na classe política vigente. 
Qualquer semelhança com o que se vê hoje em dia NÃO É mera coincidência.
É óbvio — e nem poderia ser diferente, afinal, falamos de um pré-adolescente no auge da descoberta de sua sexualidade — que, naquele ambiente de luxúria, Tamara e as demais meninas acabariam fascinando o jovem e povoando seus sonhos outrora inocentes.

Sem vulgaridade e contextualmente relevante


Cartaz oficial de lançamento do longa (foto/divulgação)
O sexo é uma arma para chegar ao poder em "Amor, Estranho Amor". Como qualquer político de alto coturno, Osmar sabe que o sexo e o poder formam uma dobradinha inseparável. Assim, com eleições presidenciais marcadas para o ano seguinte, ele almeja o cargo de supremo mandatário do Brasil. Só que, para isso, precisa do apoio de Benício. Revivendo, assim, a velha política do "café com leite" que ditou os rumos da república em seu início.

Então, após três dias de intensas rodadas de negociações e articulações, ele diz para Anna que proporcionar uma inesquecível noite de amor para o seu aliado será a maneira mais eficaz de garantir a solidez da futura união visando o pleito. As palavras não foram estas, mas o sentido sim.
Assim como quase todos as películas de Khouri, este exemplar possui sexo e nudez. De fato, eles podem, às vezes, soar gratuitos. Entretanto, não há vulgaridade. Aliás, quase no começo do filme, Tarcísio Meira e Vera Fischer realizam aquela que talvez seja a mais bela cena de amor do cinema brasileiro. 

Ao som de uma música cuidadosamente escolhida pelo maestro Rogério Duprat (✩1932/✞2006), fiel colaborador do diretor. Este momento é coroado por um choro copioso de Hugo que, em silêncio, viu tudo. Ainda sem entender seu significado real.

Estranho amor, mas belo

Já a tão propalada primeira noite do menino realmente ocorre. Agora, será que ele e a Xuxa de fato consumam o ato? Bem, eu vou me reservar ao direito de não revelar (Mesmo porque, penso que isso não faz absolutamente nenhuma diferença... não para mim!). 
Vejam o longa e tirem suas próprias conclusões. Se existe alguma coisa aqui que poderia gerar polêmica, esta é uma cena envolvendo mãe e filho com fortes questões edipianas. Aliás, estas são recorrentes na obra do cineasta. (Aliás, o incesto, aqui sugerido, é consumado em "O Prisioneiro do Sexo" (1979), filme de alta voltagem erótica em que Tarcísio Meira não apenas confessa o desejo de ir com a filha para cama, mas efetiva consensualmente o ato interditado.)
Seja pelos aspectos já citados, ou pela exímia direção de Khouri, que sobrepõe os olhares do velho e do novo Hugo e nos faz partícipe desta comunhão; ou ainda pela trilha sonora de Duprat, que remete os espectadores instantaneamente à década de 30; "Amor, Estranho Amor" é um longa-metragem vigoroso. Certamente uma obra-prima do cinema nacional que, às custas da ignorância alheia, foi difamado e completamente esquecido e/ou estigmatizado. Uma pena!
  • Em tempo: na época de seu lançamento, o filme rendeu o prêmio de melhor atriz para Vera Fischer, no Festival de Cinema de Brasília. Um sinal de que muita gente o recebeu sem preconceito.
Enfim, desliguem seus celulares e excepcional diversão.

Sim, vale muito a pena ver


Numa cinematografia aguerrida como a brasileira, não inscrita nos círculos hegemônicos de produção e distribuição, é infelizmente comum a demora à realização de filmes. 

Mesmo nomes importantes às vezes penam durante anos entre um êxito e outro, o que torna a trajetória de Walter Hugo Khouri ainda mais fascinante.

Os personagens de Khouri não refletem o grosso da população. Com exceções, são todos membros da classe burguesa, homens e mulheres atravessados por uma sensação de vazio inextinguível. Movidos frequentemente pelo desejo sexual, eles, contudo, não conseguem saciar uma fome que pouco tem a ver com a carne, no fim das contas, embora passe inevitavelmente também por ela. 

"Amor, Estranho Amor" apresenta alguns elementos recorrentes em seus filmes ou, quando não constantes, que já haviam aparecido como indícios da visão desse realizador.

As burguesias entediadas, traições como modo de chacoalhar a inércia, relações edipianas, a infância como repositório de lembranças reconfortantes (às vezes simultaneamente dolorosas), o cenário externo como projeção da dominante psicológica dos personagens, a insatisfação atingindo os picos da exasperação. 

Tudo isso, constantemente visto em outros longas do cineasta, está presente em "Amor, Estranho Amor". Walter Hugo Khouri criou personagens femininas fortes, cientes de seu poder e indispostas diante dos grilhões da sociedade machista. Também apresentou homens com comportamentos irresponsáveis, verdadeiros pilares de uma elite torpe e "umbigocêntrica". 

Seu olhar nunca esteve direcionado ao entendimento específico das tensões entre classes e gêneros. Pelo menos não tão abertamente. Evitou hastear panfletos, flâmulas ou o que os valha. Demonstrou interesse pelo aspecto humano identificável nessas fissuras, naquilo que não necessariamente está disponível a olho nu. 

De todo modo, deixou espaços generosos para o espectador estabelecer conexões íntimas com essas pessoas imaginadas, não demonstrando simpatia exagerada por elas, mas tampouco as "cancelando" por serem mesquinhas, exageradas, histriônicas, alienadas, classicistas, machistas ou violentas. 

Enfim, não sentencia tendo em vista os erros, mas faz questão de resgatar das profundidades esses lados menos bonitos das personalidades contempladas. Justamente por ir na contramão do cinema revolucionário  — no discurso e pretensamente na forma  — celebrado como essencial nos anos 1960, e por, à sua maneira, dançar conforme a música para seguir produzindo cinema, foi relegado ao segundo escalão dos cineastas. Absurdo, pois Khouri é digno de lugar cativo no Olimpo.

Conclusão

Ao filme o que é do filme


Certamente, "Amor, Estranho Amor" não merecia ter entrado no imaginário brasileiro como "o filme da Xuxa". Antes tarde que nunca, hoje — bendita seja a internet — temos  a oportunidade de assistir a ele em condições apropriadas — bem que, passada a pandemia, poderiam rolar exibições no cinema, né? 
Tomara que passe a ser valorizado pelos méritos, não pela mesquinhez de quem colocou acima da arte os moralismos e a vontade de manter ilibada uma [hoje já ofuscada pela implausibilidade do tempo] imagem junto ao público infantil.
 E, um conselho? Procure saber mais sobre esse gênio que foi Walter Hugo Khouri, alguém que fez filme de suspense ("O Anjo da Noite", 1974), flertou com o horror ("As Filhas do Fogo", 1978), fez um scif-fi existencialista sem efeitos visuais ("Amor Voraz", 1984), lançou filme quando o então presidente Fernando Collor de Mello inviabilizou o cinema por aqui ("Forever: Juntos para Sempre", 1991), além de muitos feitos alcançados. Aqui, criador e obra recebem, por honra ao mérito, o meu seleto selo de:

Ficha Técnica


  • Título original: Amor, Estranho Amor
  • Direção: Walter Hugo Khouri
  • Elenco: Marcelo Ribeiro, Walter Forster, Xuxa, Tarcísio Meira, Vera Fischer, Wálter Foster, Mauro Mendonça, Iris Bruzzi, Xuxa Meneghel e Marcelo Ribeiro 
  • Distribuição: Embrafilme
  • Data em que estreou: 01/11/82
  • País: Brasil
  • Gênero: drama
  • Ano de produção: 1982
  • Duração: 97 minutos
  • Classificação: 18 anos
[Fonte: Revista Cult, por Donny Correia é doutor em Estética e História da Arte pela USP, autor de Zero nas veias (Patuá) e Corpocárcere (Patuá); Instituto de Cinema, por Isabella Thebas; Papo de Cinema, por Marcelo Müller Jornalista, crítico de cinema e membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministra cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ e no Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017) e "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018). Editor do Papo de Cinema. Ultraverso, por Bruno Giacobbo]

Ao Deus Todo-Poderoso e Perfeito Criador, toda glória.
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