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quarta-feira, 22 de junho de 2016

DISCOS QUE EU OUVI - 12: CAZUZA - IDEOLOGIA

A década de 1980 foi um marco para o país. O Brasil estava no período de fim da Ditadura e início da democracia. Concomitantemente, estava surgindo o rock brasileiro, trazendo ideias e costumes novos. Nesse cenário, surge o cantor e compositor Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, que por meio de suas músicas, representava o pensamento social da época. 

Para expressar a insatisfação política da época, Cazuza usou seu discurso de cidadão brasileiro no intuito de disseminar seus ideais suas músicas compostas em um cenário de efervescência política, social e cultural, em que ecoavam, nas ruas, a reivindicação por mudanças políticas no país e pela sobrevivência da democracia. 

Ideologia?


Para o seu terceiro álbum solo, Ideologia, lançado em 1988, foi possível compreender que as canções foram compostas a partir de uma formação ideológica de engajamento social, revelando um sujeito interpelado pela ideologia de liberdade e igualdade democrática. As 12 faixas do disco tratam sobre temas atemporais no aspecto subjetivo como vida, morte, amor, loucura, solidão, além de problemas político-sociais, tendo sido compostas durante o período em que Cazuza esteve internado, nos Estados Unidos, para tratamento do vírus HIV, em 1987. 

Nessas condições, Cazuza assume a posição de um sujeito que enuncia a partir de uma formação discursiva reflexiva e contestadora. Para isso, o artista coloca em evidência, nas canções desse álbum, as mazelas sociais vividas durante o período de repressão aos movimentos reivindicatórios das classes trabalhadoras urbanas e rurais.

Tudo o que acontecia no Brasil, no mundo e principalmente na vida de Cazuza está em Ideologia. O garoto que queria mudar o mundo agora se vê frágil, diante de um país sem ideologia definida. A crise dos partidos políticos e a queda da ditadura militar aparece já nos primeiros versos da letra. 

Toda a ideologia pregada por Cazuza, como a de sexo, drogas e Rock n’ Roll vai por água abaixo, quando ele percebe que é impossível viver assim. As pessoas que Cazuza via como heróis agora foram deixados para trás e o garoto que sonhava em ser herói agora tem de conviver com uma das maiores doenças da década de 80, a AIDS.

Sair de uma banda no auge do sucesso não deve ser tarefa fácil, mas Cazuza pouco ligava para opiniões de terceiros. Filho de João, então homem forte da Som Livre, e Lucinha Araújo, ele viveu a vida como quis e do jeito que achava certo, então sair do Barão Vermelho era o menor de seus problemas em meados dos anos 1980.

Ideologia nasceu de outro Cazuza. Em 1987, o cantor descobriu que era portador do vírus da AIDS, e isso mudou sua maneira de viver seus últimos dias. Saiu o cara boêmio e entrou um cara mais introspectivo e com outra visão de mundo – no início da proliferação da doença, havia pouquíssimas informações sobre o HIV e sua forma de contágio, e falavam coisas absurdas (como ser o vírus gay, por exemplo). Nessa época, receber um diagnóstico de soropositivo era receber uma sentença de morte!

Mais intimista, o trabalho refletia o momento mais calmo do vocalista ao gravar duas bossas, por exemplo, e disco foi gravado logo após a chegada dele de Boston, nos Estados Unidos, local que visitaria algumas vezes para o tratamento contra a AIDS. O álbum também refletia o tempo que o Brasil e o mundo viviam nos anos 1980 com a Guerra Fria, crise econômica e todo tipo de problema sociopolítico imaginável.

Produzido por Ezequiel Neves e Nilo Romero, Ideologia é cheio de falhas e alguns problemas de produção reconhecidos pelos dois – o tempo curto entre a volta, a possibilidade real de o cantor morrer logo e a turnê já agendada acabaram apertando os prazos de entrega. Mas os problemas acabaram tornando-se trunfos para as vendas. O disco vendeu o suficiente para conquistar o Disco de Ouro naquele ano. 

A faixa-título, "Brasil" e "Faz Parte do Meu Show" ganharam o público e até os dias atuais são tocadas nas rádios nacionais, mostrando que Cazuza ultrapassou a barreira do músico comum. E parte da crítica que ainda mantinha dúvidas sobre o que seria dele fora do Barão, acabou se rendendo ao talento dele. Ele ainda gravaria mais dois álbuns, um ao vivo (O Tempo Não Pára) e um de estúdio (Burguesia). Cazuza morreu em julho de 1990, aos 32 anos, em decorrência das complicações do vírus da AIDS.

Vamos ao faixa a faixa


Feita em parceira com Roberto Frejat, [1] "Ideologia" é uma canção muito forte por retratar um período de quase dez anos entre os anos 1970 e 1980 – o refrão é muito poderoso: "Ideologia, eu quero uma pra viver". 

E se a faixa-título abria falando do Brasil e do mundo, [2] "Boas Novas" era puramente confessional ("Eu vi a cara da morte / E ela estava viva / Eu vi a cara da morte / E ela estava viva... viva!).

[3] "O Assassinato da Flor" parece ter sido feita para fazer parte da discografia do Barão Vermelho, mas acabou sendo aproveitada na carreira solo. E é bem animada e dançante, diferente da densa [4] "A Orelha de Eurídice", que tem um violino dando o tom da faixa. Mais experimental até aqui, [5] "Guerra Civil" tem uma mistura de rock com ritmos brasileiros, mostrando que o vocalista estava disposto a mostrar que poderia trabalhar fora de sua zona de conforto.

  • "Brasil, mostra sua cara..."


Se um bom cantor/banda tem um hino em sua carreira, [6] "Brasil" é o hino de Cazuza, retratando bem o País de uma época (e até de hoje, por que não?). O arranjo aqui é o grande trunfo ao transformar a faixa em algo bem para cima, não dando a impressão de um tom crítico. Dentre os acertos na curta carreira, sem dúvida alguma, aqui está o maior deles.

A música se tornaria ainda uma referência ao ser o tema de abertura de uma das novelas mais famosas de todos os tempos na Rede Globo, "Vale Tudo" (1988/1989), de Gilberto Braga, interpretada por Gal Costa.

Mudando completamente de ritmo no lado B, [7] "Um Trem para as Estrelas", parceria com Bebel Gilberto, parece uma bossa nova gravada por João Gilberto – pai de Bebel (grande amiga do cantor). Um rock à la Rolling Stones, [8] "Vida Fácil" é outra canção bem dançante e, aqui, não parece que Cazuza está doente ou tem qualquer problema grave. 

Fora os hits, [9] "Blues da Piedade" é a que chama mais atenção em tudo por ser um tipo de música que não é muito fácil de memorizar, tampouco é muito vista no Brasil, mas ela é espetacular e o verso "Vamos pedir piedade / Senhor piedade/ Pr’essa gente careta e covarde" é de tirar o fôlego.

E se a sequência vinha sendo boa, [10] "Obrigado (Por Ter Se Mandado)" parece um lado B do Barão Vermelho e é a mais fraca de todo disco, mas as coisas até que melhoram um pouco na piegas [11] "Minha Flor, Meu Bebê", que soa como uma música feita para ser cantada pelo Kid Abelha – pensando bem, não ficaria ruim na voz de Paula Toller. 

Por uma incrível coincidência, a canção mais tocante de toda carreira de Cazuza apareceu finalizando Ideologia. [12] "Faz Parte do Meu Show" (que também estava na trilha sonora de "Vale Tudo") era para ser cheia de guitarras, mas Cazuza e Walter Franco, convidado para trabalhar nessa faixa, resolveram dar um ar mais bossa nova. O resultado é um material da mais alta qualidade.

Conclusão


Sobre o álbum, Cazuza disse:
"Quando fiz 'Ideologia', nem sabia o que isso queria dizer, fui ver no dicionário. Lá estava escrito que indica correntes de pensamentos iguais e tal… A música, por sua vez, é muito pessimista, porque, na verdade, é a história da minha geração, a de 30 anos, que viveu o vazio todo. É meio amarga porque a gente achava que ia mudar o mundo mesmo e o Brasil está igual; bateu uma enorme frustração Nos conceitos sobre sexo, comportamento, virou alguma coisa, mas deixamos muito pelo caminho. A gente batalhou tanto e agora? Onde chegamos? Nossa geração ficou em que pé?"
Para autores que utilizam o termo sob uma concepção crítica, ideologia pode ser considerada um instrumento de dominação que age por meio de convencimento (persuasão ou dissuasão, mas não por meio da força física) de forma prescritiva, alienando a consciência humana.

Para alguns, como Karl Marx, a ideologia age mascarando a realidade. Os pensadores adeptos da Teoria Crítica da Escola De Frankfurt consideram a ideologia como uma ideia, discurso ou ação que mascara um objeto, mostrando apenas sua aparência e escondendo suas demais qualidades.

Já o sociólogo contemporâneo John B. Thompson também oferece uma formulação crítica ao termo ideologia, derivada daquela oferecida por Marx, mas que lhe retira o caráter de ilusão (da realidade) ou de falsa consciência, e concentra-se no aspecto das relações de dominação. 

"Ideologia" foi o início do que seria os últimos meses de Cazuza vivo, mas esse trabalho em especial foi fundamental para ele merecer os aplausos ainda em vida. Hoje, ele é reconhecidamente um dos grandes compositores da música brasileira, papel que antes só cabia aos grandes barões da MPB. Ele apareceu e fez seu trabalho, mas seu legado – usando um clichê – é eterno.

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