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quinta-feira, 30 de junho de 2016

FILMES QUE EU VI - 13: "CURTINDO A VIDA ADOIDADO"

Despretensioso, um filme típico para ser exibido em alguma sessão de filmes com o nome de "Sessão Aventura", "Sessão da Tarde", "Cine Aventura"... E, sim, ele já foi exibido inúmeras vezes nas sessões de filmes com esses títulos. Eu, infelizmente, não fui vê-lo no cinema. Assisti pela primeira vez na Sessão da Tarde. Amei! Mas, como sabemos, a Rede Globo tem por hábito picotar os filmes para que eles caibam em sua grade de programação. Então eu corri até uma vídeo locadora e loquei a fita de VHS, para assistir, sem cortes, no vídeo cassete.

Sabe aqueles dias que você abre as cortinas do quarto, vê um dia perfeito mas sabe que nem vai poder aproveitar? É num desses que Ferris decide que, qual o que, vai aproveitá-lo sim, senhor. Assim sendo, ele se faz de doente e consegue a permissão dos pais pra faltar na escola. Assim que os dois tontos saem de cena, Ferris começa a falar com o público (é, você!) e em 3 minutos dá uma lição simples de como matar aula. No caminho pro banho o cara faz um monólogo genial sobre escola, carros, política e Beatles. 

Um dia eu tentei anotar algumas das coisas mais legais que ele falava, mas quando vi que já tava quase no meio do filme e eu não parava de escrever, resolvi deixar pra lá pelo bem do meu pulso. Mas não é só isso. "Curtindo a Vida Adoidado" - pasme! - é um filme filosófico. Não, eu não estou procurando vida em Marte. À primeira vista, o filme pode parecer uma aventura cheia de sequências pra lá de engraçadas e eletrizantes. Entretanto, tem muito mais. Por favor, tenha paciência para ler o texto deste artigo até o final e depois - mesmo se você já tiver assistido - corra e dê um jeito de assistir a este filmaço outra vez. 

"Carpe diem" (aproveite o dia) 


Em 1990, a então primeira-dama dos Estados Unidos, Barbara Bush, dirigia-se a uma plateia de estudantes da Universidade Wellesley, em Massachusetts, quando resolveu expor aos presentes uma interessante visão filosófica sobre o mundo: 
"Encontrem a alegria na vida, porque como disse Ferris Bueller em seu dia de curtir a vida adoidado (on his day off – no original), 'A vida se move muito rápido; se você não parar e olhar em volta de vez em quando, você pode perdê-la!'" 
A esposa do presidente George Bush [pai] se referia à visão de mundo de Ferris Bueller (Mattew Broderick, brilhante), protagonista daquele que é considerado um dos maiores filmes adolescentes já produzidos: Curtindo a vida adoidado. Com uma estrutura narrativa simples, a obra nos leva ao dia em que Ferris, sua namorada Sloane (Mia Sara) e o neurótico amigo Cameron (Alan Ruck), decidem matar aula e sair para farrear nas ruas de Chicago. 

O diretor John Hugues (✰1950-✟2009 - "Esqueceram de Mim" [1990], "Ninguém Segura Este Bebê" [1994]) vinha de uma série de obras-primas sobre a vida nos colégios americanos, já tendo rodado "Mulher Nota Mil" (1985), "O Clube dos Cinco" (1985) e Gatinhas e gatões (1984), além de ter escrito "A Garota de Rosa Shocking" (1986). Em todos os seus projetos, o cineasta buscou retratar a escola como um espaço no qual afloram os aspectos mais negativos do contrato social. 

Em "A Garota de Rosa Shocking", por exemplo, o colégio é um microcosmo exacerbado de tensões sociais, em que um singelo namoro entre uma garota pobre e um rapaz rico é alvo de maledicências e complôs. Em "O Clube dos Cinco", cinco personagens, cada qual representativo de um estereótipo do colegial (o nerd, o encrenqueiro, a patricinha, o esportista e a maluca) são colocados numa sala de detenção ao longo de uma manhã. Lá descobrem uma profunda amizade e decidem lutar contra o preconceito de uma "sociedade" que quer separá-los em grupos e tribos isoladas. 

Te pego lá fora! 


"Curtindo a Vida Adoidado" talvez seja a mais iconoclasta das obras do diretor. Quase nada acontece no colégio e também este não parece representar qualquer obstáculo ou problema para o personagem. Ferris difere de todos os demais protagonistas masculinos escritos por Hughes, na medida em que sequer tenciona alterar ou questionar as regras sociais. Mas esse comportamento, longe de revelar certo conservadorismo da parte de Ferris, parece atentar para uma percepção libertária da realidade. 

As regras sociais não precisam ser alteradas para o nosso anti-herói porque bastaria quebrá-las. Ferris não passa por dilemas de consciência em nenhum momento da história. Ele não liga para a escola, para os pais ou qualquer sombra de responsabilidade, contrapondo-se ao amigo Cameron, constantemente preocupado com o que os outros (sociedade, professores, pais) irão pensar de suas atitudes. 

Ferris constituiria, portanto, a epítome do ser amoral. Em verdade, no decorrer de suas aventuras, o personagem interpretado por Broderick não prejudica ninguém objetivamente. Mas a essência de seu caráter reside na não-aquiescência das regras mínimas de conduta moral: ele finge estar gravemente doente, causando consternação em seus pais; desrespeita as regras mais fundamentais do colégio; causa, incidentalmente, a marginalização de sua irmã (preterida pelo fato de Ferris ser o centro das atenções), levando-a a um desespero atroz; e ironiza a validade intrínseca do próprio processo educativo. 

Essa última afirmação se sustenta no monólogo inicial do personagem, quando o mesmo esclarece aos expectadores que haverá um teste, no mesmo dia em que ele pretende matar aula. O tema da prova será 'Socialismo Europeu', o que leva Bueller a questionar: 
"Por que eu preciso estudar isso? Eu não sou europeu, eu não pretendo ir para a Europa. E daí que eles são socialistas? Eles poderiam ser fascistas-anarquistas que isso ainda não mudaria o fato de que eu não tenho um carro." 

O carro 


Sem carro e doido pra… curtir a vida adoidado, Ferris liga pro melhor amigo, que também tá matando aula e faz chantagem emocional pro cara ir lá busca-lo. Só que Cameron é um hipocondríaco incurável e realmente acredita que está a beira da morte, ao que Ferris responde 
"você não está morrendo, só não consegue pensar em nada melhor pra fazer". 
Então os dois se juntam pra tirar a namorada de Ferris da escola também e pra isso matam a pobre da avó moça. Afinal, quem nunca matou a vó pra justificar alguma coisa? O problema é que Cameron se enrola um pouco enquanto se fazia passar por pai de Sloane, a namorada do Ferris, daí os meninos são praticamente obrigados a pegar emprestada a Ferrari do pai do Cameron: o Carro! 

Ok, eles não são obrigados, mas o que interessa é que esse é O carro e se torna um dos personagens principais da trama. Eles buscam a moça na escola e partem pro centro de Chicago. O que eles fazem? Difícil é dizer o que eles NÃO fazem. Eles sobem no prédio mais alto do planeta, batem um papo mímico com corretores da bolsa, vão num jogo de baseball, almoçam num restaurante francês trés chic, passeiam num museu e participam de uma parada alemã. Tudo isso com o diretor do colégio e a irmã de Ferris putos procurando o rapaz, doidos pra acabar com a alegria do moço.
 

"As leis inúteis debilitam as necessárias." (Barão de Montesquiel)

 
Ferris, no entanto, não apenas menospreza as regras de conduta oficiais, aquelas emanadas pelo mundo dos adultos, como também negligencia as próprias "leis" do colégio. No decorrer do filme, entendemos que ele é amado por todas as tribos, sem integrar nenhuma delas. Mais do que isso, seu desprezo acaba por englobar o esforço coletivo dos alunos. O que Hugues tenta fazer é retratar a juventude norte-americana dos anos 80, como enunciado já nas primeiras cenas. Ao descobrirmos que ele forjou sua doença, logo somos induzidos a ver a imagem de um aparelho de TV, convenientemente sintonizado no canal hip da época: a MTV. 

O quarto do protagonista é repleto de pôsteres de bandas de rock da década, e somos inclusive apresentados a uma tomada de Ferris tomando banho, quando decide fazer um topete moicano com o shampoo, emulando os punks de então. Diferente da denúncia do consumismo, tão corrente nas críticas feitas à juventude dos anos Reagan, Hugues encontra na falta de perspectiva, limites e preocupação social, aquilo que seria a fonte de seus problemas e a poesia máxima de uma geração. Se, por um lado, os garotos e garotas dos anos 80, diferente de seus pais, não querem mudar o mundo, eles pelo menos querem aproveitá-lo ao máximo. Tratava-se a geração pós-baby boomer

Ferris, Nietzche e o super-homem 


Nascidos após a Segunda Guerra Mundial, os baby boomers foram os jovens do ciclo de manifestações de 1968, os que protestaram contra a Guerra do Vietnã, as ditaduras militares sul-americanas, e a linha dura soviética, em Praga. A eles coube o mérito de popularizarem, quando não de inventarem, o rock’n roll, de capitanear a revolução sexual e de inaugurar novas bandeiras políticas, como o direito das minorias, o desarmamento nuclear e a defesa do meio ambiente. 

Para Hugues, os filhos daqueles jovens cabeludos, que gritavam palavras de ordem em direção à Casa Branca, seriam exponencialmente mais subversivos. E nesse contexto, Ferris carregaria em si a quintessência da despreocupação juvenil, beirando a figura do super-homem de [Friedrich Wilhelm] Nietzsche [ateu, filólogo, filósofo, crítico cultural, poeta e compositor alemão do século XIX, autor da frase: "Deus está morto!"]. 

Apresentado em seu trabalho "Assim falou Zaratustra" (publicado pela primeira vez em 1888), o super-homem seria o estágio mais avançado do indivíduo humano. Aquele que rejeita todos os princípios morais, que despreza a religião, os valores e a ciência. Para Nietzsche, o super-homem representaria o apogeu da liberdade, e a negação daquilo que seus contemporâneos viam como o progresso da espécie humana. 

Não se trata aqui de sugerir que Hugues decidiu adaptar "Assim falou Zaratustra" para as telas de cinema, transformando a obra de filosofia em um filme para adolescentes, mas de identificar certos paralelos que ecoam na personalidade de Ferris. Vejamos seu amigo Cameron. Desde o início da película o jovem se configura na antítese do protagonista, sendo refém de uma hipocondria crônica e do medo de que seu pai descubra que ele afanou seu carro. Ao término do filme, ele e Ferris, por acidente, acabam jogando a Ferrari de um precipício. 

A curva do personagem de Cameron está então completa. Seguindo todas as lições que lhe foram passadas por Ferris no decorrer do dia, o personagem não decide buscar a "salvação" por meio da consciência (atentando para o fato de que seus problemas são, em realidade, ínfimos, se comparados com o de milhões de outros jovens no mundo); ou mesmo buscar o respeito de seu pai por meio de um diálogo aberto e sincero. 
Ao final, Cameron vence o remorso, não sentindo qualquer culpa pelo que fez ao carro de seu pai. Chega a ser sugerido que ele e o pai "terão uma boa conversa mais tarde", porém, o mais importante já foi atingido: tal qual Ferris, Cameron está também livre das amarras morais que o prendiam. 

O próprio antagonista do filme, o diretor da escola Ed Rooney (Jeffrey Jones), carregaria em si a defesa intransigente da ordem, odiando o personagem de Ferris não por ele representar um risco à escola, mas por se recusar a seguir as regras sociais impostas sobre os alunos. O fato de Rooney continuamente perder Ferris de vista, enquanto o procura pelas ruas da metrópole, atesta para o absoluto abismo geracional dos anos 80: Rooney, um baby boomer, deduz que Ferris estará no fliperama com outros garotos. Chegando lá, cutuca o ombro de alguém de cabelo curto e jaqueta e dizendo “Agora eu te peguei!”. Para sua surpresa não só não é Ferris Bueller (que estava em um estádio de baseball) como a pessoa que ele cutucou era uma garota. 

A obsessão do diretor para com Ferris se centra no fato daquele não comportar-se à ordem ideal, em que os alunos têm de ir para a escola, sem importar se eles estão gostando ou não de estar ali. Rooney segue as regras sociais, e é por isso que nunca conseguirá, de acordo com o filme, pôr as mãos em Bueller. Tamanha é a admiração que lhe é posta pelos colegas de classe, não só por isso, mas também por acharem que ele se encontra gravemente doente, que no decorrer da trama vemos o colégio, e depois a cidade, ser tomada por uma campanha publicitária instantânea (aquilo que nos anos 2000 chamaríamos de marketing viral) centrada na frase Save Ferris (Salvem Ferris). 

Nosso super-homem, entretanto, despreza mobilizações de qualquer tipo, como explicitado na frase que abre esta crítica, não dando nenhuma atenção ao carinho e admiração que lhe são conferidos pela massa. Na sequência final, acompanhamos Rooney, derrotado e maltrapilho, mancando até o ônibus escolar, seu único meio de transporte para a escola, onde o diretor lê na capa do caderno de uma criança a frase Save Ferris [salve Ferris]. 

Conclusão 


Quem se dispõe a assistir ao filme até o fim dos créditos tem outra surpresa: Bueller aparece, quebrando mais uma vez aquilo que na linguagem cinematográfica se denomina "a quarta parede". Ele olha diretamente para a câmera, ri da plateia e diz: 
"Vocês ainda estão aqui? Acabou! Vão pra casa!". 
Cabe aqui concluir com a reação subsequente à declaração de Barbara Bush na Universidade Wellesley. Após citar a filosofia de Bueller, o auditório irrompeu em aplausos, ao que a primeira-dama respondeu jocosamente 
"Eu não vou dizer ao George que vocês bateram palmas mais pelo Ferris do que por ele." 
E Bueller, tal qual Zaratustra, no último capítulo da obra de Nietzsche, anuncia: 
"Esta é a minha alvorada; começa o meu dia: sobe, pois, sobre, Grande Meio-dia!" 
Acho praticamente impossível que alguém aqui não tenha visto esse filme, já que se trata de um dos queridinhos da Sessão da Tarde. Ou tratava, pelo menos, já que a Globo tem o poder de caçar e executar cada uma das coisas que prestam na programação, então tem até um tempinho (Um tempão, vai!) já que não escuto falar dele na TV. Se bem que tem séculos que eu não assisto a Globo a tarde. Mas enfim, acho que ouviria o nome "Curtindo a Vida Adoidado" a quilômetros de distância. 
Aí vocês me perguntam: o que tem de clássico nesse filme? Não é uma super produção, não tem sexo, drogas ou rock'n'roll (Quer dizer, tem a clássica sequência em que Bueller dubla a canção "Twyst And Shout", dos Beatles...) violência. Conta uma história pra lá de simples. Então por que eu o glorifico tanto?
 
Exatamente por ele não ser necessariamente tão simples. Dizem que o filme tem atenção especial da geração 80, mas a verdade é que ele é condizente com a realidade de qualquer década. Ferris é um anti-héroi, um rapaz que burla o sistema com um intuito não exatamente nobre, pelo menos a princípio. Mas a verdade é que ele faz o que todo mundo sonha: roubar uma Ferrari tirar um dia de folga só pra se divertir.
"Porque a vida passa bem depressa. Se você não parar e dar uma olhada de vez em quando, você pode perde-la." 
  • "Ferris Bueller's Day Off" (103 minutos – Comédia)
  • Lançamento: EUA, 1986
  • Direção: John Hughes
  • Roteiro: John Hughes
  • Elenco: Matthew Broderick, Alan Ruck, Mia Sara, Jeffrey Jones, Jennifer Grey, Charlie Sheen, Ben Stein
A clássica e icônica cena do filme "Curtindo a Vida Adoidado", de Ferris Bullier (Mattew Broderick) "interpretando" o hit "Twyst And Shout", dos Beatles: inesquecível!

A Deus toda glória!
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