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quarta-feira, 6 de julho de 2016

ACONTECIMENTOS - O BRILHO MORTAL DA IRRESPONSABILIDADE


Neste capítulo da série especial Acontecimentos, vou relembrar um trágico acidente que ainda hoje é considerado a maior tragédia radioativa do mundo: O Caso Césio 137.

Era uma vez...

Escombros da clínica de radioterapia desativada
A cidade de Goiânia (GO) foi palco do maior acidente radioativo em área urbana do mundo. No dia 13 de setembro de 1987, os catadores de papel Wagner Mota Pereira e Roberto Santos Alves encontraram um aparelho usado para o tratamento de câncer abandonado nos escombros de uma clínica de radioterapia desativada. 

Carcaça onde foi encontrada a cápsula com o Césio 137
O que eles não sabiam é que dentro da peça tinha uma cápsula de Césio 137 com 100g de material altamente radioativo. Como a peça era composta de chumbo e metal, os dois ficaram empolgados com o valor que poderiam receber pela venda do equipamento. Eles tentaram quebrá-la ali mesmo, mas não conseguiram. Mas separaram o aparelho em duas partes. Pegaram a parte menor, juntamente com a cápsula de Césio que era acoplada na extremidade da peça, e a transportaram em um carrinho de mão para a casa de Roberto. 

Eles tentaram abrir a peça à marretadas, mas só conseguiram desobstruir um pequeno orifício, que era vedado por um material menos resistente. Os dois amigos começaram a passar mal e não sabiam o motivo de estarem doentes. Cinco dias depois, eles resolveram vender a peça para o ferro-velho de Devair Ferreira. Dois empregados do ferro-velho conseguiram desmontar a peça e deixaram os pedaços em uma prateleira. 

À noite, Devair descobriu que a peça tinha um pó que emitia um brilho azul no escuro. Ele ficou fascinado pela descoberta e resolveu mostrar o pó brilhante para a mulher, Maria Gabriela. Daí em diante, a peça e o pó – nada mais do que fragmentos do Césio 137 – passou a circular entre os parentes e amigos de Devair, que, hipnotizados pelo brilho azul da morte, não faziam ideia do perigo que o material representava. 

Leide das Neves, garotinha de 6 anos foi a primeira vítima fatal
e se tornou símbolo no Caso Césio 137
Uma das pessoas que teve contato com o césio foi a menina Leide das Neves Ferreira, de seis anos, sobrinha de Devair, que chegou a ingerir . Preocupada com os problemas de saúde que sua família começou apresentar, Maria Gabriela decidiu levar a cápsula do césio para a Vigilância Sanitária. 

Quando o alarme de contaminação foi dado já era tarde demais. A radiação já tinha se espalhado para centenas de pessoas. A tragédia repercutiu no Brasil e internacionalmente. Nessa época, o mundo ainda se recuperava do desastre causado por um vazamento na usina nuclear de Chernobyl, na antiga União Soviética, ocorrido um ano antes. No início de outubro de 1987, os pacientes mais graves forma transferidos para o Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Entre eles, estavam Devair, Maria Gabriela e Leide. Maria Gabriela e a sobrinha Leide não resistiram aos efeitos da radioatividade e morreram. Ivo, pai de Leide, também morreu. 
Devair Alves, já sob os efeitos da contaminação,
em entrevista ao Globo Reporter

Devair recebeu alta do hospital e morreu sete anos depois. Os dois empregados do ferro-velho de Devair também morreram. Oficialmente, o acidente com o césio deixou 675 pessoas contaminadas e quatro vítimas fatais. Mas nós últimos 20 anos, 59 pessoas morreram por causa de doenças desenvolvidas a partir da contaminação. 

Até hoje, existem mais de 170 pedidos de indenização na Justiça e muitas pessoas ainda sofrem com doenças geradas pelo contato com o material. Em Goiânia, as vítimas do Césio se reuniram em uma associação e reivindicam um atendimento médico mais digno do governo e lutam pelo fim do preconceito.

Mais que um conto...


Para a verdade dos fatos, é necessário deixar registrado que o governo na época não sabia ainda o que estava acontecendo. Até que no dia 29 de setembro, um dia após Maria Gabriela e Geraldo (catador de recicláveis que morava no ferro-velho) terem levado a peça que continha o Césio à Vigilância Sanitária. O físico Walter Mendes, de férias na cidade, solicitou um contador Geiger (medidor de radioatividade) do escritório da Nuclebrás de Goiânia, emprestando-o a Vigilância Sanitária. E ai sim, foi constatado a radioatividade.

A propagação do césio-137 para as casas próximas onde o aparelho foi desmontado se deu por diversas formas. Merece destaqueo fato do CsCl ser higroscópico, isto é, absorver água da atmosfera. Isso faz com que ele fique úmido e, assim, passe a aderir com facilidade na pele, nas roupas e nos calçados. Levar as mãos ou alimentos contaminados à boca resulta em contaminação interna do organismo, o que aconteceu com Leide de 6 anos de idade. Veja o triste relato da mãe da garotinha que consta nos altos: 

"Naquele dia, dei uma bronca no Ivo (irmão de Devair) porque ele não tinha ido vê-lo, e meu cunhado e a Maria Gabriela estavam doentes. Quando ele voltou, já trazia o césio no bolso, achando que alegraria todos. Depois de tocar no césio, minha filha Leide foi comer um ovo que preparei para ela, que andava ruinzinha para comer. Não notei que ela não tinha lavado a mão, mas achei estranho a cor escura do caldo que escorria entre os dedos que seguravam o ovo, e acabei dando uma bronca. Mas já era tarde. A partir dessa noite ela arroxeou a boca. Poucos dias depois morreu. O efeito físico que sofri do acidente? Essa ferida no coração." Lourdes das Neves Ferreira

Oficialmente, segundo a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), quatro pessoas morreram, e além delas, das 112.800 pessoas que foram monitoradas, em 6.500 foram encontradas contaminação discreta, mas apenas 250 apresentaram contaminação corporal interna e externa que mereceram maior atenção e acompanhamento. Destas, 49 foram internadas e 21 exigiram tratamento médico intensivo.

Os trabalhos de descontaminação dos locais afetados produziram 6.500 toneladas (somente recentemente reconhecida pela CNEN ) de lixo contaminado com apenas 19 g de césio-137. O lixo armazenado em caixas, tambores, containeres eram constituídos de roupas, utensílios domésticos, plantas, solo, animais de estimação, veículos, materiais de construção (algumas casas foram implodidas, sem que pudesse tirar nada de dentro, nem brinquedos, fotografias...). 
Depósito definitivo onde está armazenado
o lixo radiativo da tragédia
Todo este lixo radioativo foi armazenado em um depósito construído na cidade de Abadia de Goiás, vizinha a Goiânia, onde deverá ficar, pelo menos 180 anos.


Quatorze anos depois, o governo de Goiás incluiu mais 600 pessoas na lista de vítimas. O Ministério Público Estadual (MPE) chegou à conclusão que, policiais e funcionários que trabalharam durante o período da tragédia foram contaminados e alguns morreram em consequência de doenças provocadas pelo Césio. E estas mortes nunca entraram nas estatísticas oficiais.

Por outro lado, o Centro de Assistência aos Radioacidentados Leide das Neves Ferreira, criado pelo governo do estado para acompanhar as vítimas, não admitia relacionar ao acidente com o Césio, as mortes e as doenças denunciadas pelo MPE. Foi então assinado um acordo entre o Estado e o MPE para que as novas vítimas, seus filhos e netos recebessem assistência médica e indenização.

Conclusão

E todos foram infelizes para sempre


Adesson Ferreira, irmão de Devair, o dono do ferro-velho e uma das vítimas
(ao fundo painel com fotos de outras vítimas da tragédia)
 
Às vésperas de completar 30 anos do desastre radioativo, as várias pessoas contaminadas pela radioatividade não recebem os medicamentos, que, segundo leis instituídas, deveriam ser distribuídos pelo governo. E muitas pessoas envolvidas diretamente com o ocorrido, ainda vivem nas redondezas da região do acidente, entre as Ruas 57, Avenida Paranaíba, Rua 74, Rua 80, Rua 70 e Avenida Goiás, sem oferecer nenhum risco de contaminação.

Odesson e as sequelas da contaminação
Este desastre deixou marcas profundas nas pessoas mais diretamente afetadas e que sobreviveram, e em todo município. O que caracterizou este episódio, e deixou evidente a sociedade, foi o despreparo, a inoperância, o improviso e o desinteresse demonstrado pelo poder público com a saúde das pessoas, principalmente manipulando informações.

A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) ficou desnudada diante do grave desastre de Goiânia. Mas não é somente a CNEN, mas todas as atividades nucleares no Brasil continuam surpreendendo negativamente, pois transcorrido 25 anos as atitudes e a postura de hoje são semelhantes a do passado. 

Pouca coisa mudou, em relação à transparência e a prepotência. E o descrédito a esta autarquia é cada vez mais percebido pela população, quando ela se informa e toma conhecimento das atividades desenvolvidas na área nuclear, onde sobressai a visão miliciana de soberania e defesa nacional, em que tudo é sigiloso, tudo é secreto.

O exemplo mais recente que acontece, ou podemos dizer a tragédia anunciada, é o que atinge as populações vizinhas da mina de urânio de Caetité na Bahia. Mas esta é outra estória que devemos estar atentos e evitar que outros brasileiros sejam novamente vítimas da  irresponsabilidade dos nossos ilustres governantes.


Em 1990 foi lançado um filme-documentário sobre o caso. "Césio 137, O Pesadelo de Goiânia", dirigido por Roberto Pires, com a participação de Nelson Xavier, Joana Fomm, Stepan Nercessian, Denise Nilfont, Paulo Gorgulho e Marcélia Cartaxo, com roteiro baseado nos depoimentos das vítimas. 


[Fontes: Arquivos digitais O Globo, Veja, IstoÉ, Jornal do Brasil]

Um comentário:

  1. Incrível essa história do Césio 137. Antigamente achava que as pessoas contaminadas tinham sido muito ingênuas por terem mexido com esse pó brilhante a noite. Mas hoje pensando, acho que infelizmente eu mesmo sabendo bastante sobre radiação,iria esquecer e até passaria o pó nas mãos e braços, pois todos estariam fazendo isso. Ainda mais que naquela época não sabia nada de radiação. Grande artigo, mas como diz no final, foram 19 gramas de césio, não 100 gramas. Faleceram 4 pessoas, mas se somar o Ivo, dá 5, acho que se enganou. Um abraço.

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