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sábado, 13 de agosto de 2016

O SESSENTÃO ENXUTO

 Vou mentir para vocês não meus queridos amigos, é preciso uma certa dose de coragem para falar dessa obra. Isso porque estou ousando falar (e ao mesmo tempo indicando) uma das melhores obras que já pude ler. Mas devo advertir, que vou somente dar uma pincelada e tratar um pouco do sentido da obra. Para o desafio de "entendê-la", é um indispensável desafio lê-la. 

A primeira coisa que devo contar foi que li esse romance a primeira vez há uns 30 anos! Voltei a lê-la anos depois, e meu contato mais recente com ela tem mais de 5 anos. Por isso, pode ser que a memória falhe né? A segunda é que este foi um dos livros que li por obrigação. Isso mesmo! Minha professora de literatura da oitava série do curso ginasial (atual ensino fundamental) fez toda a minha turma ler o livro para fazer uma prova. Bendita seja a dona Marilda, esteja ela onde estiver! 

Mas antes de falar da criatura, vamos conhecer um pouco do criador. 

O criador


Médico de formação, João Guimarães -Rosa (✰1908-✟1967) foi também diplomata antes de se dedicar à literatura, tornando-se um dos mais célebres escritores brasileiros e lusófonos. 

Descrito pelo próprio autor como uma "autobiografia irracional" em entrevista ao jornalista alemão Günter Lorenz em 1965, o romance traduz a complexidade de seu idealizador, morto precocemente aos 59 anos e três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras, cerimônia que estranhamente adiou por quatro anos. 

"Ele foi eleito em 1963 e adiou a sua posse até 1967. Quando finalmente decidiu marcar a festa da posse, escolheu uma quinta-feira, o que é bem estranho. Quem o acompanhava na época tinha a impressão de que ele estava se despedindo", explica Marcelo Marinho, professor e pesquisador em Literatura Comparada na Universidade da Integração Latino-Americana (UNILA) e especialista da obra do autor. 

"Guimarães Rosa dizia que as pessoas não morrem, elas se tornam encantadas. Então, no domingo seguinte à posse, ele também se torna 'encantado'", salienta o pesquisador, lembrando que, embora o laudo médico tenha apontado infarto, a morte de Guimarães Rosa permanece inexplicável. 

A mistura entre a genialidade artística e a personalidade misteriosa do escritor levou Marinho a estudar a obra em profundidade. Em 20 anos dedicando-se ao tema, o pesquisador já passou por várias camadas de leitura do romance, descrito já nas primeiras páginas como um "almanaque grosso, de logogrifos e charadas". Segundo Marinho, esta já seria uma especular pista de leitura sobre a própria personalidade do escritor.

Seu nascimento 


Na pequena localidade de Cordisburgo, um município de Minas Gerais, nasceu Guimarães Rosa no dia 27 de junho de 1908. Primeiro dos seis filhos de Dona Francisca Guimarães Rosa e de Floduardo Pinto Rosa, o pequeno João apresentou, desde muito cedo, aptidão para o estudo de Línguas. Começou a estudar francês por conta própria e logo depois aprendeu holandês. 

Em 1918, seu avô e padrinho Luiz Guimarães o trouxe para Belo Horizonte para continuar os estudos. Nessa fase da vida ele frequentava muito as bibliotecas da cidade, dando continuidade ao seu hábito para a leitura e aumentando ainda mais a sua paixão pelos livros. 

Entretanto, o notável conhecimento de línguas estrangeiras não influenciou a primeira escolha profissional de João Guimarães Rosa: a medicina. Formado em 1930, o primogênito de Dona Francisca exerceu a profissão de médico durante quatro anos. Boa parte deste tempo, ele passou no sertão de Minas Gerais, onde desenvolveu os seus conhecimentos sobre a vida do sertanejo. Já nessa época, João Guimarães Rosa dedicava-se à literatura. 

O fascínio pela linguagem tornava-se um sério concorrente ao exercício da medicina. Incentivado por um amigo próximo, impressionado com os seus conhecimentos, João Guimarães Rosa prestou concurso para o Itamaraty em 1934, obtendo o segundo lugar. As obrigações da carreira diplomática impuseram-lhe o abandono da medicina, e, de certa forma, aproximaram o escritor de sua verdadeira vocação: as artes da linguagem. 

Depois de tornar-se diplomata, João Guimarães Rosa colecionou prêmios literários, adquiriu notoriedade e foi reconhecido por grande parte da crítica literária como o maior escritor brasileiro do século XX. 

Um homem do mundo sertanejo


Ainda que tenha sido um homem do mundo, João Guimarães Rosa escreveu, quase exclusivamente, sobre o universo sertanejo. A cultura produzida pelos jagunços, pela roça e pelos trabalhadores do eito inspirou uma dezena de escritos. A experiência com o sertão, adquirida por ele durante o período em que foi médico em Minas Gerais, marcou definitivamente o projeto literário de Guimarães Rosa. O autor de Grande Sertão: Veredas morreu subitamente em seu apartamento em Copacabana, três dias após a sua posse na Academia Brasileira de Letras.

Agora sim...

A criatura (segundo a perspectiva desse humilde leitor) 


2016 marca os 60 anos de Grande Sertão: Veredas. Essa data vem a propósito para apreciarmos seu trunfo máximo: o foco narrativo. Manipulado por Riobaldo, narrador protagonista, esse elemento estrutural servirá para analisar o romance e expandir nossa compreensão de seus muitos desdobramentos. 

O Riobaldo que se antepõe ao interlocutor que veio de longe para conhecê-lo, é um homem idoso, deitado em rede na varanda da sede de sua fazenda, procedendo às honras da casa. A face final do protagonista já velho é essa, de homem apaziguado e assentado na vida, dono de terras com muitos agregados e dependentes. 

Nesse romance tudo decorre da escolha do foco narrativo, que acaba sendo seu alicerce e seu fundamento. Quem conta a história que lemos? É Riobaldo, que fala em primeira pessoa. E de quem é a história que ele conta? É a dele mesmo. Portanto, Riobaldo se apodera de dois pontos de vista: o do narrador e o do protagonista. Dessa alternância resulta todo o volumoso romance.

Uma leitura fácil de difícil compreensão


Do cinema (1965)...
Mais um elemento complicador vem se juntar logo de saída a essa dupla perspectiva: o interlocutor, a quem o narrador dá o tratamento cerimonioso de "o senhor". Todo o romance assumirá a forma de um relato autobiográfico feito a uma pessoa, invisível e calada, que é quem provoca a narração. Anônima, essa pessoa veio de fora do sertão, procurando por Riobaldo e dispondo-se a extrair dele a história de sua vida. O depoimento que então se desenrola subentende um diálogo que é apenas pressuposto e contido dentro do monólogo – iniciado e nunca fechado pelo primeiro sinal gráfico do texto, um travessão, índice de fala. 

Como não podia deixar de ser, as diferenças culturais entre ambos são numerosas: um deles é sertanejo tosco, o outro, cidadão cultivado. E é de assinalar, portanto, a semelhança do interlocutor com o antropólogo ou o psicanalista. 

Essa equação nos habilita, em primeiro lugar, a entender a intriga bastante emaranhada. Em segundo lugar, a travar conhecimento com os demais personagens, aos quais a voz de Riobaldo dá vida. Em terceiro lugar, a compreender quem ele próprio é. Com Riobaldo estabelecemos, enquanto leitores – mesmo cientes de que se trata de um romance, portanto de uma história inventada – um pacto sob palavra. Isso posto, podemos começar a leitura. 

Riobaldo não é um narrador direto ou fluente: demora muito a entabular sua história, é manhoso, tenta driblar o interlocutor. Boa parte do livro decorre antes que se resolva a abrir o jogo. Mas, enquanto isso, ele vai expondo ao leitor sua personalidade atual, a que assume depois de velho, quando se retira de tarefas anteriores, quando foi jagunço e chefe de jagunços. O romance começa pelo fim, quando todo o enredo já se passou e Riobaldo vive de reminiscências. 

Do fim ao princípio


...do teatro (1985)...
Chegou à fazenda, vindo da cidade, um personagem a que estamos chamando de interlocutor, pois ele não tem nome, procurando por um antigo chefe de jagunços de quem ouvira falar. Quer entrevistá-lo, indagando sobre seu passado, suas batalhas, das peripécias em que tomara parte, de onde viera, quem tinham sido seus pais, quais seus amores; enfim, como vivera sua vida. O interlocutor é então quem instiga a narração, e ela se faz em sua intenção, em resposta às múltiplas inquirições que vai formulando, para precisar melhor certos passos ainda vagos do enredo. 

Desse modo, poderíamos dizer que, embora demore a se configurar, o interlocutor poderia ser compreendido como a primeira personagem a ser delineada por Riobaldo. Quem é ele? Não é um sertanejo como Riobaldo, fica logo claro. Chegou de longe, da cidade, conduzido por um jipe. Veio para conhecê-lo e para estimulá-lo a falar de suas experiências. Usa óculos, tem título de doutor e toma notas em uma caderneta, incessantemente. 

Como é que ficamos sabendo de tudo isso? Pela voz de Riobaldo, que dirige ao interlocutor comentários sobre uso de óculos, título de doutor, anotações feitas na caderneta. Sendo o romance constituído por uma fala só, emitida por Riobaldo, o conjunto dos acontecimentos é decretado por essa fala.

Criador e criatura 


...da televisão (1985)...
Tudo indica que João Guimarães Rosa tenha contrabandeado um simulacro seu para dentro do livro. E isso porque muitas vezes se colocou na posição de ouvinte de um narrador sertanejo, cujo relato instigou. Apesar de oriundo de uma vila no sertão, o escritor partiria para a cidade, primeiro para São João del Rei e em seguida para Belo Horizonte, em função de seus estudos secundários e depois superiores, em medicina. E mais tarde, ao ingressar na carreira diplomática, passaria a residir no exterior, antes de morar no Rio de Janeiro, onde passaria a última fase de sua vida. 

Atinando a certa altura com o opulento veio entre o histórico e o fabuloso que seria a fonte de sua obra – as sagas do sertão –, para ali voltou inúmeras vezes, tangendo boiadas, internando-se pelas terras mineiras, interrogando as pessoas, registrando as histórias que ouvia e as peculiaridades da linguagem. Suas cadernetas de anotações, hoje depositadas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo, tornaram-se um tesouro. Uma das fotos mais divulgadas mostra-o em uma dessas excursões, a cavalo, com a indefectível caderneta pendurada por um barbante ao pescoço. Ademais, sim, usava óculos e, como já sabemos, era médico. 

Mas o interlocutor lança mão de outros saberes para ajudar Riobaldo à medida que ambos, conjuntamente, vão concretizando um texto biográfico, que cada um dos dois seria incapaz de levar a cabo separadamente. É do atrito dos dois personagens, tal como aparece unilateralmente na fala ininterrupta de Riobaldo, que toda a narrativa se institui enquanto texto. 

A fala do protagonista, como se viu, inicialmente é relutante, dada à desconversa. Apenas a persistência do interlocutor vai forçando as comportas de tanta história sonegada, decorrente de um emaranhado de motivos que vão desde a perplexidade até vestígios de culpa difusa: incluindo o luto por Diadorim, de cuja morte Riobaldo se viu cúmplice, e o remorso pelo pacto com o diabo. 

Ao fim e ao cabo, ainda bem que ambos se entregaram à ficção dessa empreitada, que só nos beneficia com as belezas de um dos mais extraordinários romances da língua portuguesa. 

Conclusão



...dos quadrinhos (2015)... 
Eu discordo dos revisores. Primeiro, Guimarães Rosa nos brinda com uma obra não apenas "não linear". Riobaldo vai se lembrando dos fatos de forma associativa, um caso após o outro, seguindo o fluxo do seu sentimento e o redescobrir ao rememorar. Ou seja, os fatos surgem diante da importância deles, seguidos pelo entendimento e compreensão do Riobaldo. 

Segundo, ele nos conta o que aconteceu na sua vida já velho. Riobaldo provavelmente não tinha a sabedoria para entender tudo o que aconteceu na hora que aconteceu — mas as suas reflexões, as de Guimarães Rosa, tomam também o corpo, profundidade e entendimento porque ele já é um sábio, um homem experiente. 

É porque ele é experiente no momento que nos conta, que vemos o descobrir da juventude, junto ao redescobrir de agora, mais velho: um entendimento filosófico e de vida presente em Grande Sertão: Veredas — Guimarães Rosa era um gênio.

... para eternidade!

Por fim, digo que é uma obra assim, que apesar de ser difícil no começo pela linguagem, vale MUITO a pena você ler. É um livro que fala de vivencia, de se descobrir na vida — uma obra de característica ontológica, filosófica mesmo. Tenho certeza que você amigo[a] leitor[a] vai se emocionar e aprender muito com ela — se redescobrir enquanto lê. 

Então, não perca tempo. Boa leitura!

***

Saiba mais: Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2010. Espaços e caminhos de João Guimarães Rosa, de Ligia Chiappini Moraes Leite e Marcel Vejmelka, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2009. O foco narrativo, de Lígia Chiappini Moraes Leite, São Paul , Ática, 1985. O léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant’Anna Martins, São Paulo, Edusp, 2001. Mínima mímica – Ensaios sobre Guimarães Rosa, de Walnice Nogueira Galvão, São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

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