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terça-feira, 30 de agosto de 2016

DISCO QUE EU OUVI - 19: LEGIÃO URBANA, "A TEMPESTADE OU O LIVRO DOS DIAS"

Sim, eu já falei sobre outro disco da Legião Urbana aqui nessa série (e certamente voltarei a falar), mas em se tratando de Legião Urbana, não dá para falar e/ou escolher um disco apenas, pois cada disco da banda tem um significado muito importante. "A Tempestade ou o Livro dos Dias" é mais que simplesmente o último disco da carreira da banda. É um disco que podemos considerar como a despedida do próprio Renato [Russo] Manfredinni Júnior (★1960-✞1996).

O livro dos dias 


O ano era 1996 e Renato já sucumbia à fase terminal da doença contra a qual, por sua própria decisão, decidiu parar de lutar. Naquele ano, a medicina já tinha avançado no combate ao vírus HIV, Renato decidiu que não queria mais lutar. 

Poucos registros nacionais concentram uma carga tão melancólica quanto "A Tempestade...", debilitado por conta do tratamento contra a Aids e visivelmente desesperançoso, o cantor, poeta e trovador solitário faz de cada faixa no decorrer da obra uma despedida, algo explícito nos versos de Oswald de Andrade registrados no encarte do álbum: 
"O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus"

Uma das obras mais extensa do grupo, com quase 70 minutos de duração, o disco se perde em meio a composições amargas como 'Longe do Meu Lado', 'Quando Você Voltar' e 'A Via Láctea', todas gravadas sob grande esforço do cantor, com os vocais já debilitados por conta da doença. Com a participação ativa de Carlos Trilha, tecladista e produtor que havia acompanhado Russo nos trabalhos em carreira solo, o álbum parece cercado dentro de uma atmosfera própria, com Dado Villa-Lobos apostando na densidade das guitarras e Marcelo Bonfá no uso de uma percussão pouco convencional para a banda.
 

A tempestade


Lançado em 20 de setembro de 1996, menosprezado mediante fatos irrefutáveis "A Tempestade ou O Livro dos Dias" é a melhor produção fonográfica da Legião Urbana. 

O disco que foi a despedida de uma carreira vitoriosa, foi concebido diante de poucas notícias a seu respeito. Naquela época a internet estava engatinhando; seus músicos (que até hoje são assim) sempre foram celebridades discretas - mesmo que isso pareça ser incompatível - mantiveram o segredo sobre a doença de Renato e seu estado terminal. 

Até que em meio a divulgação do sombrio, conceitual, nada comercial disco de capa azul, no dia 11 de outubro de 1996, Renato Russo faleceu vítima das muitas doenças que se alugam na Síndrome da Imune Deficiência Adquirida. 

Mas o disco é bastante especial não somente por isso. 

Faixa a faixa


Porquanto a Legião voltaria em sua primeira faixa a destilar sua ironia, para falar de coisas tristes como doença e desesperança em um rock modelo british 90's. (1) 'Natália' traz Renato no contra-baixo, que está mais audível que sua quase mirrada voz. Em outros tempos o talentoso cantor iria gritar e espumar mediante a polvorosa canção. Não foi desta vez. Ao menos sua linha de baixo é marcante e condizente com seu pedigree musical. 

Em (2) 'L'Avventura' a melancolia. Uma das marcas maiores da LU desde o primeiro disco ("Legião Urbana" - 1985), o arranjo de cordas (feitas pelo teclado) de Carlos Trilha sublinha perfeitamente a desilusão cantada por Renato. Os acordes já se prestam a outros tipos de utilidade: a Legião sai do lugar comum do pop onde a harmonia consonante se basta. Aqui os climas se estabelecem nas texturas delicadas de Dado Villa Lobos ou na sequíssima levada de Bonfá. 

(3) 'Música de Trabalho' não tem estética semelhante nas canções compostas pela LU. O acompanhamento parece ser sampleado (e até certo ponto sem peso). Os arranjos de Renato, Dado e Bonfá primavam por rimar instrumentos e letra. Aqui as cordas só aparecem no refrão, apenas para docificar 
"E quando chega o fim do dia eu só penso em descansar e voltar pra casa pros seus braços". 
Alguns personagens citados (como a polícia) passaram batidos, talvez mediante a condição do cantor, audivelmente debilitado. Em tempos politicamente corretos e na inversão do padrão de valores éticos, talvez hoje Renato sofresse alguma espécie de sanção, tal qual aconteceu com 'Conexão Amazônica' ("Que País É Este?" - 1987) 

(4) 'Longe do Meu Lado' é a balada que não pegou. Não por falta de qualidade. Uma canção com o verso 
"A paixão quer sangue e corações arruinados e saudade é só mágoa por ter sido feito tanto estrago" 
não pode ser considerada ruim, mas infelizmente as rádios receberam como single a igualmente tristonha 'A Via Láctea'. 'Longe do Meu Lado' traz o dueto entre o baladeiro Marcelo Bonfá (também compositor do clássico 'Vento No Litoral' - V - 1991) e Renato Russo. Destaque absoluto para o arranjo de cordas, embora não creditados. 

(5) 'A Via Láctea' era a canção-confissão. Ainda hoje não consigo entender a coragem das rádios receberem uma música cujo um dos versos dizia 
"Hoje a tristeza não é passageira, hoje fiquei com febre a tarde inteira". 
Ela não é a melhor faixa do disco em nenhum quesito e parece que a palavra de Renato foi definitiva. Uma verdadeira carta de adeus. O baixo parece aqueles timbres que vem em teclados amadores e não duvido se a música não é mais "demo" do que propriamente uma faixa trabalhada em estúdio. 

(6) 'Música Ambiente' é o tipo do título que denota falta de tempo para achar um nome melhor. Para quem gosta de histórias curiosas isso acontece normalmente com os compositores. Eles escolhem nomes provisórios enquanto terminam seus corpos musicais. Em outras ocasiões a letra aparece primeiro e depois a música e a letra. 'Música

Ambiente' é uma canção pop da LU, com Marcelo Bonfá muito animado na possibilidade de 'duelar' com o rithm track e sua própria pulsação. Temos mais e mais teclados (existem alguns keybords que chamam este registro de warm strings) cortejando o wah-wah de Dado Villa Lobos. Aliás, este é o disco mais discreto do guitarrista, que também se encarregou da pré-produção, apoiado pelo incansável Carlos Trilha. O verso 
"E quando eu for embora, não não chore por mim" 
resume bem o clima do disco. 

(7) 'Aloha' é a configuração presente em todos os discos da banda. Alguns desabafos políticos 
("Assim é bem mais fácil nos controlar e mentir, mentir, mentir...") 
e um discurso messiânico (o termo midiático é o que verdadeiramente se encaixa no profile do cantor carioca) 
"Será que ninguém vê o caos em que vivemos / os jovens são tão jovens e fica tudo por isso mesmo". 
O disco em termos de som, até aqui, é uma delícia. É possível perceber todos os detalhes, a franzina guitarra de Dado, as cordas ''infinitas" de Trilha e o acompanhamento marcial de Bonfá. Canção perfeita. 

(8) 'Soul Parsifal' é uma parceria inédita entre Russo e a cantora Marisa Monte. Talvez seja clichê demais mas a forma mais classificável da canção e do arranjo é MPB. Embora muito bonita, é mais uma música que não recebeu oportunidade das rádios. 

(9) 'Dezesseis' foi o outro single do disco. A LU foi muito conhecida por fazer em suas canções trilhas sonoras para personagens inventados por Renato. Alguns liam tais criações como pequenas facetas da personalidade do compositor, associando esta canção a mais uma despedida. Não acho que seja o caso. Até porque durante todo o disco o autor já tem a oportunidade de cantar na primeira pessoa e assumir (como assumiu) todo o seu sofrimento. Além da explícita homenagem ao Fab Four cantando o verso 'Strawberry Fields Forever', dos Beatles. 

(10) 'Mil Pedaços' é aquilo que chama de música brega, mas é nela que a Legião se supera em termos de harmonia. Usa recursos tonais interessantes e tem do seu lado um dos melhores intérpretes da música nacional. Poderia ser uma moda de viola, uma música de Ana Carolina e até uma música de algum irmão latino; é uma música da LU com uma sofisticação diferente. 

"Como Gostar da Legião Urbana - e seu estilo - Em Apenas uma Canção". 
Aqui está a configuração master das canções da Legião desde As Quatro Estações (1989). Baixo, teclado, guitarra e violão. Um jeito U2/The Smiths de colocar a guitarra e muitas cordas (strings). Renato não se deu trabalho de mexer nos versos mais coloquiais como 
"Fumar unzinho e ouvir Coltrane" 
ou mesmo 
"Tem uma barata voadora no quarto das crianças e os monstrinhos estão gritando alucinados pra eles tudo é diversão". 
Além do enigmático verso: 
"Às vezes as coisas são difíceis minha amiga mas você sabe enfrentar a beleza dessa vida". 

(12) '1º de Julho' já havia sido gravada por Cássia Eller em seu disco homônimo (1994). Aquela versão tem Roberto Frejat nos violões. Na original - mais uma com cara de demo - Renato toca os violões acompanhado por seu fiel escudeiro Carlos Trilha no rhythm track (uma espécie de bateria eletrônica). Como a gravação é anterior a do disco, ouvimos Renato mais disposto e com sua força interpretativa calibrada. O título da canção veio do dia previsto para o nascimento de Chicão, filho da cantora, morta em "circunstâncias misteriosas" no ano de 2001. 

(13) 'Esperando por Mim' é para mim uma das mais emocionantes do disco. Os versos - tão confessionais quanto alguns de todo o disco - é de prantear tal a clareza e a sinceridade de letras como 
"Hoje a tarde foi um dia bom sai pra caminhar com meu pai conversamos sobre coisas da vida e tivemos um momento de paz". 
A guitarra de Dado chora notas iguais; escondida entre um muro de violões. A canção é muito bela e muito triste. Igualmente nesta dose. 

(14) 'Quando Você Voltar' é mais uma vez o lado brega da LU respirando. Talvez a canção mais 'fraca' do disco. No entanto, vale pelo caminho diferente que a banda parecia estar seguindo. É o arranjo sem arranjo. Já que aqui temos um acompanhamento puro em cima de uma harmonia e uma melodia. Colocaram a cifra na frente dos instrumentos e contaram: 1,2, 3 e foi. Há quem goste. 

(15) 'O Livro dos Dias' traz o ótimo arranjo de bateria de Marcelo Bonfá (até ele nesta produção acerta muito) para canção que encerra o disco. Temos a banda muito entrosada em uma música muito silenciosa na sua percepção primeira. Dado e suas pequenas notas com muita doçura e delicadeza, até na formação dos arpejos e dos harmônicos. A partir do verso 
"Não esconda a tristeza de mim"
o arranjo de cordas é quase apoteótico, os agudos tomam de sobressalto o canto de Renato e temos um encerramento muito digno de toda discografia da Legião Urbana: beleza, talento e tristeza. 

Conclusão 


A banda lançaria no ano seguinte as canções que sobraram deste disco que foi chamado "Uma Outra Estação" (1997). Na verdade, o álbum com desenhos de Marcelo Bonfá, trazia as canções que não entraram na "Tempestade ou O Livro Dos Dias", pois em um primeiro momento, era pretensão da banda lançá-lo em versão dupla. 

Um disco triste, longo, com vocal guia em quase todas as faixas, que por esses motivos tinha tudo para ser um disco ruim. Ao contrário disso, vemos um Renato Russo escrevendo letras quase etéreas, e canções de uma sensibilidade de fazer o mais forte sentir-se fraco. 

Recentemente a Legião Urbana re-lançou seus discos em vinil, incluindo até aqueles que haviam recebido o tratamento de compact disc, caso de "A Tempestade..." e "Uma Outra Estação".

A Deus, o Pai, toda glória.
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      E nem 1% religioso.

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