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segunda-feira, 9 de setembro de 2019

LIVRO QUE EU LI / FILME QUE EU VI - "A COR PÚRPURA"

A década de 1980 foi bastante marcante na cultura geral: nas artes - literatura, teatro, música, cinema e até na teledramaturgia - é sem dúvida os anos 80 a melhor fase das novelas brasileiras, com destaque para os sucessos "Baila Comigo" (1981, Manoel Carlos), "A Gata Comeu" (1985, de Ivani Ribeiro), "Roque Santeiro" (1985, Dias Gomes), "Vale Tudo" (1988, Gilberto Braga), "Que Rei Sou Eu?" (1989, Cassiano Gabus Mendes) e "Top Model" (1989, Antônio Calmon) e "Tieta" (1989, Agnaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn) - todas produções exibidas pela Rede Globo. 

Neste artigo, onde mesclei duas séries especiais - Livros Que Eu Li e Filmes Que Eu Vi -, vou falar sobre umas das grandes produções literárias e cinematográficas da década de 1980, "A Cor Púrpura" ("The Color Purple"). O filme que marca o início da fase madura de Steven Spielberg traz uma história forte e emocionante, magnificamente construída e filmada, além de tratar de temas que permanecem relevantes ainda hoje, mesmo três décadas depois.

O livro


O livro "A Cor Púrpura", escrito por Alice Walker em 1983 e reeditado em 2016 pela editora José Olympio, é um dos mais conhecidos da literatura norte-americana recente, tendo ganhado o prêmio Pulitzer quando foi publicado no país. Sua protagonista Celie conquistou uma legião de fãs e é fácil entender o porquê. 

A história se passa no período entre os anos 1900 e 1940. Celie é uma mulher negra, semianalfabeta, que mora no sul dos Estados Unidos. Desde sua infância, ela é estuprada pelo padrasto e depois forçada a se casar com Albert, um viúvo violento que bate nela cotidianamente e a trata como uma pessoa inferior que está ali para fazer suas vontades e cuidar dos serviços da casa e de seus filhos. Na narrativa, Celie chama o marido de Sinhô - o que evidencia a natureza da relação dos dois que não é de amor e de parceria, mas sim de poder e opressão.

A estrutura do livro


Este livro é estruturado de forma epistolar, ou seja, durante toda a obra os acontecimentos são mostrados nas cartas escritas por Celie e depois por sua irmã Nettie. Mesmo que o leitor não se sinta atraído pela leitura de cartas ou não tenha tido boas experiências com livros epistolares, deveria dar uma chance para esse livro. A cor púrpura apresenta personagens cativantes inseridos em um enredo comovente e dramático. Embora existam momentos extremamente dolorosos, trata-se de um livro que provoca dor, mas também consegue arrancar sorrisos.

É muito fácil sentir empatia por vários personagens e as cartas não são entediantes, burocráticas ou sequer formais. A forma com que Celie escreve sobre si mesma e sua vida é delicada e natural. Alice Walker expõe a lacuna deixada pela falta de educação formal por meio de erros, principalmente de ortografia, cometidos por Celie ao escrever. Como fazem parte do contexto proposto pela história, as inadequações não devem incomodar, mas aproximar o público de Celie.

Ainda na própria estrutura, o livro não aposta na alternância de interlocutores a cada carta ou quase isso. Pelo contrário: durante a parte inicial, Celie dirige suas cartas a Deus de maneira contínua e somente depois há uma troca de cartas com a irmã Nettie, que também não é cansativa. Essa escolha da autora é atraente; as cartas não se sobressaem ao conteúdo e fica a sensação de que é Celie que nos conta sua história.

Mensagem contundente e explícita


Na primeira parte de "A Cor Púrpura", as cartas que Celie direciona a Deus mostram desde os maus-tratos que ela sofria na infância até a vida adulta, desta vez como uma mulher casada com um homem autoritário e violento. Com todo esse histórico, a autoimagem de Celie é bastante abalada e distorcida e ela se vê como uma mulher descartável e não enxerga a própria resiliência. A chegada de Shug Avery, uma cantora ousada e sensual que tem um caso com seu marido, irá provocar uma reviravolta em Celie e despertá-la para novas possibilidades.

Celie se sente fascinada por Shug Avery antes mesmo de conhecê-la e, quando as duas se aproximam, a personalidade de Shug, sua espontaneidade e recusa em seguir papéis pré-definidos para as mulheres abrem os olhos de Celie para a opressão a que ela está submetida. Outra personagem que cumpre esse papel na vida de Celie é Sofia, que se casa com Harpo, filho de Sinhô. Sofia é uma mulher destemida que se recusa a obedecer Harpo, o que gera vários problemas entre o casal. Já Celie e Shug Avery constroem uma amizade muito singela e bonita, o que ajuda Celie a lidar até mesmo com sua sexualidade. Aos poucos, a personagem traça um percurso de (des)construção e acompanhá-lo é encantador.

Em determinado momento da história, Celie começa a trocar cartas com sua irmã mais nova Nettie. Celie acreditava que a irmã havia morrido, mas depois descobre que Nettie tornou-se uma missionária e vive na África. Além de aproximarem as duas irmãs, as cartas de Nettie são bem escritas e deixam clara a diferença do grau de instrução entre as duas. Enquanto Celie é semianalfabeta, Nettie teve a chance de aprender a ler e escrever corretamente.

O título da obra não é acidental e a cor púrpura surge em contextos variados durante a história. Percebe-se como a presença da palavra/cor púrpura é uma alegoria de todo o processo de autoconhecimento e de (des)construção por que passa Celie. "A Cor Púrpura" apresenta uma história sobre racismo, subserviência e violência contra as mulheres e até hoje essas questões permanecem atuais e urgentes.

O filme


Em 1985, Steven Spielberg, ainda no início de sua carreira, já era admirado por crítica e público por seus vários sucessos estrondosos de bilheteria, mas também com enorme valor artístico, como, por exemplo, "Tubarão" (1975), "Os Caçadores da Arca Perdida" (1981) e "E.T. – O Extraterrestre (1982)". Porém, tendo dirigido filmes de suspense, comédia, fantasia e aventura, o drama permanecia como o único gênero inexplorado por Spielberg. 

Aliás, para alguns críticos da época, este fator impedia que o diretor tivesse maior sucesso nas temporadas de premiação. Diante dessa situação, Spielberg decidiu mostrar o seu valor e assumiu o comando de "A Cor Púrpura", longa baseado no famoso livro de Alice Walker.

Sinopse


O filme conta a história de Celie (Whoopi Goldberg), uma mulher negra que mora no sul dos Estados Unidos e que sobreviveu ao abuso e intolerância do pai. Porém, depois que seu patriarca arranja um casamento com o machista Sr. Albert Johnson (Danny Glover), as coisas vão de mal a pior para ela, sofrendo violência física e psicológica. Contudo, em meio a tantos abusos, Celie mantém a esperança de reencontrar sua irmã Nettie (Akosua Busia) e vê na cantora Sugar Avery (Margaret Avery) um meio de resistir àquele ambiente violento.

Das páginas para as telas - Spielberg "errou a mão"


Segundo o próprio Spielberg, "A Cor Púrpura" foi o maior desafio de sua carreira e é bem visível o porquê. A história apresenta passagens pesadas, duras, cruéis e, infelizmente, reais. Até então, o diretor só havia trabalhado com pura ficção e, aqui, estava diante de situações que ocorreram com várias mulheres negras, por mais que o livro não seja inspirado em fatos reais. Ou seja, temos um diretor que jamais trabalhou com um drama desse porte, comandando um filme extremamente intenso e em um universo que ele não possuía conhecimento. Por isso, fica claro como Spielberg foi a escolha errada para o projeto.

Uma das críticas habituais proferidas ao diretor é sua necessidade de criar momentos sentimentais, otimistas ou doces, algo que não incomoda tanto em longas como "A.I. Inteligência Artificial" (2001), mas em "A Cor Púrpura" soam até mesmo ofensivos. Há uma cena, por exemplo, em que Harpo pergunta para seu pai, Albert, um homem violento e cruel, como lidar com o desrespeito de sua esposa; a resposta do pai é direta: "bata nela"Veja bem, um pai violento está transmitindo para seu filho o que há de pior em sua personalidade; um momento pesado, certo? 

Contudo, Spielberg roda a sequência com uma incômoda leveza. A fotografia é calorosa, destacando o belo céu que cobre os personagens, e a trilha de Quincy Jones mostra-se pateticamente alegre, parecendo que o realizador não tinha noção da dramaticidade do momento.

Verdade seja dita, esse fator é recorrente durante toda a projeção, uma vez que o diretor opta por não mostrar o que precisa ser mostrado. Os momentos mais dramáticos são ignorados, como a dura passagem de Sofia pela prisão, que quase a matou, enquanto sequências extremamente desnecessárias são estendidas, como a cena em que várias pessoas entram em uma igreja cantando, finalizada a frase "está vendo papai? Pecadores também tem alma"

Roteiro inverosímel 


Aliás, o roteiro, escrito por Menno Meyjes, proporciona uma péssima redenção para Albert, um símbolo do machismo dentro da história, que torna-se espontaneamente consciente no terceiro ato sem uma construção satisfatória, soando como algo aleatório.

Falando no trabalho dos roteiristas, a protagonista é escrita de maneira absolutamente passiva. As situações apenas acontecem com Celie, ao invés da personagem mover a história para frente. Obviamente, ser uma observadora dentro de uma narrativa não é um problema, porém, sendo assim, o drama vivido pela protagonista deveria ser potencializado, algo que Spielberg não tem coragem de fazer. O material fonte, por exemplo, explora com precisão como a violência física e psicológica marcava as relações entre os personagens, algo que não é sentido aqui.
Contudo, nem tudo é descartável na visão romântica de Spielberg sobre "A Cor Púrpura". Tematicamente, a obra é absolutamente relevante e ousada para a época. Além da clara questão racial, o longa aborda a terrível cultura patriarcal e a necessidade da união feminina diante disso. Perceba como, inteligentemente, Spielberg traz os homens em primeiros planos que enquadram apenas partes específicas de seus corpos, como as mãos ou a cintura, transformando-os em seres intimidadores. 

Já as mulheres são filmadas em planos conjuntos que reforçam sua união. Aliás, o diretor é hábil em impedir que o longa fique maçante, utilizando diversos movimentos de câmera e uma edição fluída para criar um ritmo diligente. Para completar, os lindíssimos enquadramentos em contraluz inserem uma aura espirituosa à película que combina com a parte religiosa da obra.

Já o roteiro apresenta situações que reforçam a união das personagens femininas e como uma serve de apoio para a outra. Enquanto Sugar mostra para Celie sua beleza interna e externa, resultando em um romance pouco desenvolvido, mas relevante, a protagonista proporciona para a cantora cuidados e um carinho que ela nunca teve. Ou seja, há um enorme senso de sororidade aqui e a bela sequência final, trazendo Celie, Sugar e Squeak juntas a espera de Nettie, reforça essa temática do longa.

O elenco


Falando nas personagens femininas, há que se destacar o excelente desempenho do elenco, criando interpretações marcantes, sendo o melhor elemento do longa. Whoopi Goldberg destaca com perfeição as mudanças sofridas por Celie, passando de uma mulher intimidada para uma pessoa decidida, transmitindo isso com uma sutileza encantadora, através de olhares ou sorrisos discretos. 

Enquanto isso, Oprah Winfrey impressiona com a interpretação mais pesada da obra, apresentando Alicia como uma pessoa imponente e corajosa, mas tornando-se assustadoramente amedrontada no terço final, transformando-se quase em outra pessoa. Já Margaret Avery evoca sensualidade e amor próprio com sua Sugar Avery sem deixar de transparecer sua carência e dor pela forma com que a julgam. Por fim, Danny Glover é preciso ao construir em Albert um homem vil, cruel e de pouca empatia, representando o machismo daquele universo.

Conclusão


Se o objetivo de Steven Spielberg em "A Cor Púrpura" era mostrar que também podia dirigir drama, seu objetivo foi atingido, levando 10 indicações ao Oscar e agradando parte do público e da crítica. Aliás, a experiência adquirida aqui certamente serviu de aprendizado para seu trabalho dramático seguinte, "Império do Sol" (1987). No entanto, em se tratando da adaptação do livro de Alice Walker, o diretor claramente não era a melhor escolha para este tipo de projeto, falhando na construção da dramaticidade, apesar dos bons momentos.
  • "A Cor Púrpura" ganhou versão musical inédita no Brasil. O espetáculo está em cartaz na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro. A obra, que foi adaptada para o cinema em 1983 por Spielberg e virou musical da Broadway em 2005, ganha agora a versão brasileira de Arthur Xexéo com direção de Tadeu Aguiar. A superprodução traz 18 atores, oito músicos, 90 figurinos e um grande palco giratório.

Fichas técnicas


  • "A Cor Púrpura (The Color Purple)" – EUA, 1985
  • Direção: Steven Spielberg
  • Roteiro: Menno Meyjes
  • Elenco: Whoopi Goldberg, Danny Glover, Oprah Winfrey, Margaret Avery, Willard E. Pugh, Akosua Busia, Desreta Jackson, Adolph Caesar, Rae Dawn Chong, Dana Ivey, Leonard Jackson, Bennet Guillory, John Patton Jr., Carl Anderson, Susan Beaubian, James Tillis, Phillip Strong, Laurence Fishburne
  • Duração: 154 min


A Deus toda glória.
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