Quando eu li esse livro a primeira vez ainda era adolescente. Li para fazer uma prova de Literatura da 7ª série ginasial (atual ensino médio). A minha primeira leitura foi em tempo recorde: em uma noite. Me lembro que comecei à ler por volta das 19h:00 e terminei lá pela meia noite. No dia seguinte seria a prova. O livro era de um outro aluno que o conseguiu com o pai que tinha pegado emprestado na biblioteca não sei de onde e que deveria ser entregue exatamente um dia depois do dia da prova.
Como eu tinha de devolver o livro para o colega no dia seguinte, não tive outra saída a não ser "devorá-lo". Já pensou se eu não gostasse de ler? Estaria mais ou menos ferrado! Mas, graças a Deus, ler é um dos meus prazeres. Anos mais tarde eu comprei um exemplar do livro (que encontrei na promoção em um sebo) e, dessa vez, o li com um pouco mais de tempo.
Sobre o livro
O romance autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, "Feliz Ano Velho", marcou toda uma geração de leitores e tornou-se obra de referência na literatura brasileira contemporânea.
Publicado originalmente em 1982, o livro é um relato verdadeiro do acidente que deixou Marcelo tetraplégico, a poucos dias do Natal de 1979. Jovem paulista de classe média alta, vida boa, muitas namoradas, estudante de Engenharia Agrícola na Unicamp, ele vê sua vida se transformar num pesadelo em questão de segundos.
Durante um passeio com um grupo de amigos, Marcelo, de farra, resolve dar um mergulho no lago. Meio metro de profundidade. Uma vértebra quebrada. O corpo não responde. Começa ali, naquele mergulho, a história de "Feliz Ano Velho".
A partir do acidente, Marcelo vê sua vida mudar radicalmente. Seus dias no hospital, as visitas que recebeu, as histórias que viveu são relatadas sob uma nova perspectiva: a de um jovem que sempre fez tudo o que podia e queria, e que, agora, sentado em uma cadeira de rodas, vê-se impotente diante dos acontecimentos, dependendo da ajuda de amigos e familiares para reaprender a viver.
"Levei um ano para escrever este livro, tinha 26 anos. Ouvia Clash [banda de punk rock, ícone no final dos anos 70], era punk. Fiz só um tratamento depois de escrever, é meu livro mais visceral. É um livro que tem muitos flash-backs, que apareciam quando eu estava cansado de escrever a história principal, do acidente, e começava a falar sobre outras coisas. É um livro sobre construção de identidade, de fé, não é só um livro sobre o acidente",
afirmou Marcelo em entrevista.
A narrativa
O autor confere à narrativa a mesma energia e o mesmo fôlego com que transpôs a armadilha do destino. O livro foi propositalmente coloquial,
"eu calculei que faltava naquele momento um livro que falasse a linguagem das ruas."
Imóvel numa cama, Marcelo, o personagem, dá asas às lembranças e à imaginação. Foram 12 meses de uma recuperação lenta e dolorosa: dias e noites intermináveis numa UTI, o colete de ferro, a descoberta de que teria como extensão do seu corpo uma cadeira de rodas, os momentos em que chegou a contemplar o suicídio.
Apesar do tema trágico, "Feliz Ano Velho" tem momentos de humor, ternura e erotismo. Marcelo se encarrega de colocar em palavras a relação de amor e respeito à mãe, o carinho das irmãs, a camaradagem e encorajamento da turma, as festas e as fantasias sexuais. O acidente no lago seria o segundo tranco na vida do garoto. O primeiro foi aos 11 anos: o "desaparecimento" do pai – o ex-deputado federal Rubens Paiva – pela período da ditadura militar.
Ao mergulhar no rio, Marcelo bateu a cabeça e acabou fraturando a coluna. De início, sua vida tornou-se confusa e incerta, inúmeras perguntas atormentadoras foram feitas, mas ninguém, nem mesmo a medicina poderia garantir que Marcelo pudesse, um dia, voltar a ter os movimentos dos braços e das pernas.
Ficar dia e noite deitado, imóvel em uma cama hospitalar se tornou uma experiência totalmente desagradável. E quando as coceiras começavam? E quando a dor de barriga vinha? Não ter controle sobre seu próprio corpo deixava Marcelo nervoso, e pior, com medo. O teto era a única visão que nosso protagonista tinha direito, mas a companhia de diversas pessoas queridas fez com que ele não desistisse de lutar.
Aos poucos, com fisioterapia e com o auxilio de tecnologias, Marcelo começou a recuperar a sensibilidades em algumas partes do corpo, sem que tivesse, ao menos, a independência, que era tão importante. Memórias surgiam a todo o momento, a vontade de voltar no tempo, de aproveitar momentos, de ver pessoas amadas. No entanto, era necessário olhar para frente e lutar, mesmo que cansado, mesmo que impaciente.
O acidente lhe deixara marcas, não somente em seu corpo, mas marcas em sua alma, e Marcelo jamais se esqueceria desse ensinamento que o destino lhe atribuíra.
Além da ficção
Primeiramente, é importante lembrar que se trata de uma obra baseada em fatos reais, escrita pelo próprio Marcelo – o protagonista. Portanto, é um livro cheio de histórias paralelas, cheio de emoção e, principalmente, com cenas completamente reais.
A narração é em primeira pessoa e inteiramente informal, com o uso de gírias da época, e repleta de pensamentos e xingamentos do protagonista. Mas, estranhamente, a linguagem grosseira não me incomodou do modo que pensei que aconteceria. Talvez por ser um relato, a narração teve uma combinação perfeita com a história, algo complementar e necessário. Contudo, não posso deixar de mencionar a dificuldade de entender algumas memórias de Marcelo, justamente por serem descritas desta forma.
Como mencionado, o enredo não é linear. Há uma divisão entre passado e presente, que foi muito mal arquitetada, deixando o livro confuso, e, em algumas situações, sem sentido. Cada vez que um personagem novo entrava em cena – e são muitas pessoas que vão visitar Marcelo – histórias passadas enchiam as páginas. Não consegui acompanhar algumas memórias, muito menos, decorar todas as "namoradas" mencionadas pelo narrador.
Alguns pontos importantes em "Feliz Ano Velho" são os fatos históricos vividos ou comentados. O pai de Marcelo, como exemplo, era um deputado famoso, que desapareceu no período da ditadura militar no Brasil; e o próprio escritor fazia parte de organizações estudantis com grande influência na pré-redemocratização do país. Isso contribuiu para que eu pudesse reconhecer melhor o cenário em que a história vivia.
Marcelo foi um protagonista totalmente peculiar. Tinha um gênio forte e ideias conflitantes, mas principalmente, era um personagem misterioso. No inicio, assustei-me com sua arrogância, seu machismo, mas depois consegui me entrosar melhor com sua personalidade e entender melhor seu modo de pensar. Inclusive, peguei-me assistindo o amadurecimento do personagem, e é surpreendente a diferença do protagonista dos começos das páginas e as do final.
Sexo, drogas, rock & roll, adrenalina
Há, sim, apologia às drogas e ao sexo, afinal, nosso protagonista não é alguém muito comportado. E então, dessa maneira é mostrado com nitidez como se comportavam alguns jovens daquela época. No final das contas, Marcelo me lembra muito Cazuza, até porque também tinha o dom para música.
Não gostei da estética do livro, no entanto. As páginas eram estreitas, as letras difíceis de enxergar, e a capa feia, mas de material resistente.
Gostei de ter contato com essa história, especialmente porque traz ensinamentos e reflexão. Talvez se a história do livro fosse editada, e sua estrutura mudasse, o enredo se tornaria muito mais palpável e de fácil assimilação. Mas "Feliz Ano Velho", é sem dúvidas, um livro curioso e especial. Ao lê-lo, entendemos o que se passa na mente de um tetraplégico, do quanto é difícil essa posição na sociedade. Amei ver as criticas que Marcelo atribuía ao nosso governo e ao nosso comportamento, assim como amei o final do livro. Não havia como ter um final mais impactante.
A história do livro termina aproximadamente um ano após a data do acidente com Marcelo ainda reclamando do seu infeliz destino, porém entendendo que só ele poderia superar esse fardo e teria que fazer o possível para se adaptar à nova realidade.
O livro virou filme
Filme "Feliz Ano Velho" completo
Em 1987 o filme chegava às telonas com a direção de Roberto Gervitz e estrelado por Marcos Breda, Malu Mader e Betty Goffman. Apesar de o filme ser homônimo ao livro, o nome do personagem principal foi alterado e Marcelo "virou" Mário, na interpretação de Marcos Breda, aliás, muito elogiada pelos críticos da época.
E não foi só. "Feliz Ano Velho" também já teve várias adaptações para o teatro, o que o tornou em um best-seller icônico da década de 1980.
Conclusão
Considerações Finais
Conforme dito acima, "Feliz Ano Velho" é um livro já tido com um clássico da literatura nacional contemporânea, sendo traduzido para diversas línguas, porém ao terminar a segunda leitura fiquei um pouco em dúvida se o livro é digno de todo esse culto. A história é bem contada e trata-se de um relato detalhado de um jovem passando por uma situação terrível que já aconteceu com muitas outras pessoas e reconheço que o autor tem uma aura pop, fala de sexo sem pudor e não tem medo de se expor ao ridículo, vai ver que é daí que vem esse carinho especial dos leitores pelo livro.
É curioso notar as gírias usadas pelo leitor no decorrer de seu texto, como "afins", que denota interesse em alguém ou "dar uma bola" que nada mais é que fumar um baseado, entre outras. O autor também mostra que apesar de jovem estava antenado com cinema e música, citando, inclusive, a tropicália - movimento que começava a despontar à época.
O título vem de uma sacada do autor ao passar o réveillon no hospital, ele se pega cantando a famosa canção: "Adeus ano velho / Feliz ano novo" ao contrário: "Feliz Ano Velho / Adeus Ano Novo". Resumidamente é disso que se trata o livro, um jovem que se vê privado da sua vida extremamente ativa por uma ironia do destino, sem ser piegas, somente relatando suas angústias e dificuldade físicas.
Apesar de achar o livro superestimado ele tem um tema interessante (em 2015 ele ganhou uma nova edição pela Alfaguara, em 272 páginas) e o autor imprime um ritmo fluente e descontraído, o que torna a leitura ágil e agradável. Por mais defeitos que apresente, é uma obra pequena, envolvente, e de leitura rápida (como disse, eu consegui ler em uma noite). Vale muito apena investir! Indico a todos os públicos.
A Deus toda glória.
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E nem 1% religioso.
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