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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

ACONTECIMENTOS - 402: O VOO DA MORTE

O Brasil e o mundo ainda repercute o acidente com avião que vitimou quase toda a delegação do Chapecoense. Mas tragédias aeronáuticas, infelizmente, não são uma novidade para o povo brasileiro. A comoção - e a memória - do povo é que normalmente se expressa conforme a fama de quem esteja envolvido na tragédia. Tragédias envolvendo anônimos, por mais que choquem e/ou ainda que sejam mais intensas em suas proporções, acabam caindo rapidamente no esquecimento e, pior, na impunidade.

Nesse capítulo da série especial Acontecimentos, te convido a relembrar uma tragédia que ocorreu na manhã de uma fatídica quinta-feira, dia 31 de outubro de 1996, há vinte anos.

O voo da morte


O acidente com o avião modelo Fokker 100 da TAM em Sâo Paulo completou 20 anos. Ao todo, 99 pessoas morreram na tragédia com o voo 402, que decolou às 8h26 do dia 31 de outubro de 1996 do Aeroporto de Congonhas com destino ao Rio de Janeiro, e caiu 24 segundos depois sobre oito casas da Rua Luís Orsini de Castro, no Jabaquara, cerca de 2 km adiante, na Zona Sul de São Paulo. Morreram 96 pessoas que estavam no avião entre passageiros e tripulantes, e mais três pessoas em terra.

Não ficou nenhuma testemunha para descrever o que aconteceu com os noventa passageiros do voo 402 da TAM durante os 25 segundos em que eles viajaram da pista de Congonhas, em São Paulo, para uma explosão no solo, 2 quilômetros adiante. Mas há elementos para afirmar com certa dose de certeza que os ocupantes do Fokker 100, todos mortos no desastre, estavam se preparando para o pior. 

Entre os corpos levados ao Instituto Médico-Legal de São Paulo, a maior parte mantinha uma posição parecida. Os corpos estavam inclinados para a frente, com os braços esticados e as pernas curvadas. Suspeita-se que os passageiros possam ter sido orientados a se posicionar para um pouso de emergência. É aquele momento em que cada um dobra o tronco sobre os joelhos, envolve a cabeça com as mãos, fecha os olhos e se prepara para o pior. Como os corpos foram carbonizados, eles teriam fixado a posição inclinada, característica da emergência, diziam os médicos do IML.

Apertem os cintos e preparem-se para morrer


No caso do Fokker 100 da TAM, a preparação para a emergência teria sido recebida com a mais alta dose de pânico possível nessas situações. Uma coisa é preparar-se para uma descida de emergência num aeroporto ou num descampado qualquer. Outra, muito diferente, é esperar o pouso de emergência quando se voa baixo, com a turbina roncando e o avião adernando, sobre uma região forrada de casas e edifícios. 

Nessas condições, a ordem carregava uma informação adicional: os passageiros estavam autorizados a temer a morte. Se isso serve de algum consolo, o terror durou pouco. A rigor, o jato nem chegou a decolar de verdade. Apenas saltou para as casas do bairro do Jabaquara, tendo a pista de Congonhas como rampa de lançamento. Rompeu o ar com dificuldade por 2 quilômetros, a pouco mais de 20 metros do solo. E, então, afundou sobre as casas.

No momento do resgate, os corpos que os bombeiros retiraram dos escombros fumegantes estavam irreconhecíveis em sua maioria. "Morreram carbonizados, como uma tocha humana que é mergulhada em querosene em chamas", explicou Juarez Maldonado, o legista do Instituto Médico-Legal, que trabalhou na preparação dos mortos na tragédia. 

Cerca de cinquenta corpos, entre os noventa passageiros e seis tripulantes mortos no acidente, estavam tão mutilados que só foram identificados a partir da arcada dentária, ou nem isso. "As vítimas que continuaram irreconhecíveis tiveram de passar por exames de DNA", explicou Maldonado.
 
A identificação tornou-se tão complicada que em alguns casos foi preciso apelar para detalhes em que um leigo jamais pensaria. Um amigo de José Antônio Moreno, o comandante do avião, chegou a avisar que pilotos usam cintos de segurança mais sofisticados do que os passageiros.

"Parece um suspensório", lembrou, "com uma chapa de metal na altura do estômago, e não no lugar da que prende o cinto dos passageiros." O legista considerou a informação relevante. "Um cinto assim vai estar encravado entre o estômago e o intestino do corpo, e isso ajudaria a identificar o piloto", respondeu o legista, disposto a usar qualquer sinal disponível em seu trabalho de fazer o reconhecimento daquela fileira de vítimas. 

O comandante do Fokker 100 acabou sendo reconhecido pela arcada dentária. Em outro caso, os técnicos do IML estavam analisando os tecidos de uma das vítimas quando o bisturi bateu em um objeto metálico encravado no peito. Era uma corrente de ouro que havia derretido por causa do calor das chamas. Essas providências dão uma ideia da violência do desastre, no qual o jato se espatifou em chamas sobre oito casas e pequenos prédios. O reconhecimento dos corpos levou em média dez dias.

"Emergência..." 


Na noite de sexta-feira, o repórter Caco Barcellos apresentou, no Globo Repórter, as últimas frases conhecidas, do piloto José Antônio Moreno. 

"Emergência", disse ele. "Estou em emergência... Vou retornar." Há uma pausa e, em seguida, Moreno prossegue: "Estou desviando da escola...", diz o piloto, descrevendo uma manobra pela qual salvou a vida de oitocentas crianças que naquele momento assistiam a aulas na escola Dr. Ângelo Mendes de Almeida.
 
Ainda era cedo para conhecer as causas do acidente. As duas caixas-pretas já tinham sido encontradas, os destroços foram recolhidos para análise, mas a Aeronáutica precisava de tempo para informar o que se passou com o 402. A investigação levou noventa dias. As primeiras pistas, contudo, indicavam que o avião sofreu uma pane num equipamento da turbina direita. Um ex-mecânico da Vasp, morador da região, informou ter observado que o Fokker 100 decolou com o "reverso" do lado direito aberto. 

Outro mecânico de aeronaves, Antonio Bueno, que trabalhava nos hangares de Congonhas, chegou a sair correndo pela pista, desesperado. "O reverso abriu! O reverso abriu!", gritava ele, como se os pilotos do avião pudessem ouvi-lo. Impotente, o mecânico viu o jato adernando e afundando entre as casas segundos depois.

Conforme explicaram os especialistas, o "reverso" é um sistema de freio que deve ser acionado na hora do pouso. Durante o voo, a turbina joga o jato de ar para trás, fazendo o avião ir para a frente. Uma vez ligado o sistema de reversão, duas peças metálicas fecham a saída de ar da turbina e o jato é jogado para a frente, fazendo a aeronave perder velocidade, até parar, com aquele barulho infernal que os passageiros de jato estão acostumados a ouvir no momento da freada. 

A reversão das duas turbinas deve ser acionada simultaneamente. Quando, em função de uma falha técnica, o equipamento é ligado em pleno voo, apenas de um lado, como pode ter acontecido com o jato da TAM, uma turbina tenta empurrar o avião para a frente enquanto a outra faz esforço para que ele pare. É como um carro em alta velocidade ser freado em apenas duas rodas enquanto as rodas do outro lado continuam a receber o impulso do motor. Nessa situação, o jato inicia um movimento de rotação para o lado da turbina com defeito. Tem saída?

Se as tentativas de fazer a turbina voltar a funcionar normalmente fracassarem, só restará uma saída: desligar a turbina em reversão. Com uma só turbina, um jato pode decolar e voar com segurança por até uma hora. Mas na hora da decolagem uma pane desse tipo é muito mais grave, porque o avião precisa de potência total para subir. E o comandante do Fokker 100 não teve mais do que alguns segundos para identificar o problema e reagir. 

Se são fiéis os relatos dos mecânicos que assistiram à decolagem, o problema ocorreu no momento em que os pneus saíram do chão, quando não era mais possível voltar atrás freando o jato. O voo durou 25 segundos, mas o tempo de reação útil dado ao comandante foi possivelmente muito menor, porque a partir de um certo momento o avião perde velocidade, e, nesse caso, o problema pode tornar-se incontornável. "Esse tipo de pane na decolagem é extremamente crítico e requer uma ação imediata do piloto", disse o comandante Hélio Ruben de Castro Pinto, do Sindicato dos Aeronautas, especialista em prevenção de acidentes.

Se a turbina foi de fato revertida na decolagem, como indicam os testemunhos, surge um novo mistério. O que pode ter acionado o mecanismo de reversão? Os técnicos que na semana seguinte já começavam a examinar as hipóteses capazes de explicar o acidente trabalhavam com duas possibilidades principais: 
  • na primeira, teria havido quebra de uma trava mecânica na turbina. 
  • Na segunda hipótese, alguns dos 34 computadores do Fokker que controlam o sistema hidráulico e mecânico cometeram um erro de leitura, acionando o sistema. 

De quem foi o erro?

O que faria o computador cometer tal erro ou o que quebraria a trava foi a resposta que a Aeronáutica procurou. Segundo os técnicos envolvidos no inquérito, o laudo explicando o desastre sairiam em cerca de noventa dias.

As vítimas, ilustres anônimos


(Será que alguém - além dos amigos e familiares - ainda se lembra do nome ou do rosto de alguma vítima dessa tragédia?) Na semana seguinte, na emoção que cercou o acidente do Fokker 100, circulava por São Paulo, especialmente entre gente do setor financeiro que perdeu amigos no voo 402, a informação de que uma das possíveis causas do acidente seria a interferência de telefones celulares ou computadores portáteis nos equipamentos eletrônicos da aeronave. 

Afinal, aquele era um voo cheio de executivos do sistema financeiro, que costumam andar equipados com telefones portáteis, agendas eletrônicas e laptops. Todas as pessoas que já tomaram um avião estão acostumadas ao aviso das aeromoças sobre normas de segurança. Entre outras coisas, elas mandam os passageiros desligar celulares ou qualquer aparelho eletrônico, porque há o risco de eles interferirem nos equipamentos de voo.

Um estudo do comitê de regulamentação aeronáutica do governo britânico, publicado no ano de 1997, dizia que em doze anos 97 sustos foram causados pela interferência de objetos eletrônicos a bordo de aviões. Nenhum desses sustos chegou a se transformar em acidente até os dias de hoje, mas há casos de erros passageiros de navegação atribuídos a essa causa. 

A questão a reter é que os telefones celulares e outros equipamentos acionados pelos passageiros podem interferir nos instrumentos de navegação ou de radiocomunicação de uma aeronave, mas não em dispositivos mecânicos. "É impossível que, por exemplo, um celular acione o reversor de uma turbina", afirmam os experientes especialistas técnicos em manutenção de aviões. 

Cenário de horror


A cena era terrível. No início da operação de resgate feita pelos bombeiros, os corpos foram enfileirados no chão sem nenhuma proteção. Mais tarde, chegaram sacos plásticos que serviram para embrulhar os mortos. Corpos ainda em chamas podiam ser vistos no meio da rua, enquanto moradores em estado de choque circulavam por entre a fumaça e o caos. 

Assustadas, pálidas, contavam histórias que nunca mais sairão de sua memória. Depois de raspar nas casas por cima, deixando partes de sua estrutura em algumas delas, o avião praticamente desabou de bico no chão. Só não produziu estrago maior porque voava em baixa velocidade. Como o tanque estava cheio, e a rua onde caiu é uma ladeira, o querosene escorreu e produziu fogo e explosões numa extensão de 200 metros abaixo do conjunto de casas atingido diretamente. Sete carros explodiram nesse rastro. "Parecia um rio de fogo que vinha descendo em nossa direção, destruindo todos os carros que encontrava. Até dos bueiros saía fogo. Não sabíamos se deveríamos entrar ou ficar na rua", disse uma dona de casa.

Outra  dona de casa estava no quintal lavando roupa no tanque quando a turbina do avião arrombou a laje de sua casa. Junto com a turbina foram sete cadáveres. Três foram parar na sala, e quatro no quintal. De repente, uma bola de fogo chegou até ela, como se fosse um maçarico. Era o combustível que vazava. Desesperada, ela se pendurou em uma calha, subiu até a caixa d'água e de lá pulou para o telhado. Para que se salvasse, os vizinhos providenciaram uma grande tábua, que serviu de rampa. "Graças a Deus, minhas duas filhas estavam na escola", dizia.


Um outro morador  decidiu mostrar para sua mulher o carro que tinha comprado, um Logus zero-quilômetro. Os dois saíram do quarto, no 2º andar da casa, e foram para a garagem. Naquele instante, o trem de pouso do Fokker entrou no quarto deles. Ele pegou a mulher pela mão e saiu correndo pelos fundos da residência. Outra moradora conversava com a avó no hall de entrada de sua casa quando a cabine do piloto entrou pela copa. Junto com ela, entraram três cadáveres. Seu irmão, espírita, estava rezando, e a tia, tomando banho. "Só ouvi o barulho e vi a casa desmoronando. Fazia muito calor e o cheiro era terrível", recordou a mulher, que morava naquela casa desde que nasceu. "Quando eu era criança, tinha medo de que um avião caísse sobre minha cabeça enquanto brincava no quintal", contou. Aconteceu.

"Tudo como dantes no quartel de Abrantes"


Acidentes como o que ocorreu em Congonhas sempre abrem um debate sobre a conveniência de se operar aeroportos em áreas centrais das grandes cidades. Fala-se a respeito do risco que os moradores correm com os aviões passando perto de seus telhados, do incômodo ruído dos motores e da poluição. Esses debates costumam desfazer-se assim que passa a comoção do acidente e os aeroportos continuam a operar na velha rotina. 

Esquece-se a discussão por duas razões: 
  • a primeira é que os passageiros não gostam de partir ou chegar de pistas que ficam a dezenas de quilômetros da cidade. 
  • O segundo motivo está no baixíssimo grau de risco estatístico oferecido por esses aeroportos. 
Assim, a maioria das grandes cidades do mundo tem o seu aeroporto internacional sediado lá nos cafundós e um aeroporto nacional metido bem no meio de casas e prédios.

O risco de desastre aéreo em áreas densamente povoadas existe, mas há um fato que se deve levar em conta. Esse tipo de acidente tem sido muito raro. No Aeroporto de Congonhas, em um ano, há 180 000 pousos e decolagens, que carregam para cima e para baixo quase 6 milhões de passageiros. É tal o número de prédios que o cercam que ele é conhecido dos pilotos como "o paliteiro". Mesmo assim, antes da queda do avião Number 1, da TAM – a aeronave toda azul e assim batizada em homenagem a um prêmio internacional concedido à companhia –, haviam ocorridos apenas outros dois acidentes graves em Congonhas com aviões comerciais, durante todos os sessenta anos de existência do aeroporto. 

Em fevereiro de 1975, um Bandeirante da Vasp caiu no bairro de Campo Belo logo depois de decolar. Morreram quinze passageiros e tripulantes. O outro aconteceu em maio de 1963, quando um Convair da extinta Cruzeiro do Sul caiu três minutos depois de subir. Das 48 pessoas a bordo, 34 morreram. Desses três acidentes, só o da TAM matou gente que estava no chão: cinco pessoas. Em São Paulo, desastres no trânsito ainda matam infinitamente mais do que acidentes aéreos.

Depois do acidente, o Conselho Nacional de Segurança dos Transportes dos Estados Unidos mandou revisar e substituir todos os sistemas de reversão das turbinas dos Boeing 767. As empresas afinaram seus computadores para evitar a repetição de erros como os ocorridos com o avião da TAM. "Agora, os reversores só são acionados quando o avião aterrissa e todo o seu peso estão sobre o trem de pouso", salientam os especialistas em prevenção de acidentes aéreos. 

Quando os avões não tinham essa parafernália eletrônica, os pilotos eram obrigados a executar um excesso de operações manuais. Com os computadores, essas tarefas diminuíram. Agora, começa a preocupação com o excesso de tecnologia. O homem pode até conseguir voar, mas nunca com a perfeição de um pássaro.

Conclusão


O Tribunal de Justiça de São Paulo que condenou a Northrop Grumman Corporation, fabricante do reverso do Fokker 100 da TAM a indenizar famílias de vítimas do acidente aéreo. O valor da indenização por danos morais foi de 333 salários mínimos.

Na época, o valor do seguro obrigatório que a companhia aérea tinha de pagar para familiares de vítimas em casos como esse era de R$ 14 mil - nos Estados Unidos, o valor é de U$ 120 mil; na Europa, de 130 mil. Em 2009, a Associação Brasileira de Parentes e Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos (Abrapava) conseguiu na Justiça aumentar o seguro para R$ 41 mil. Atualmente, o valor do seguro é de R$ 66 mil.

Em nota, a LATAM Airlines (nome atual da companhia aérea TAM) afirmou que "se solidariza com todos aqueles que foram afetados por este trágico acidente 20 anos atrás. Embora consciente de que nada poderá compensar a perda dos entes queridos, a companhia empenhou-se, desde o primeiro momento, em apoiar os familiares de todas as maneiras e concluir o mais rapidamente possível o procedimento de indenização".

"Todas as informações sobre as causas do acidente foram esclarecidas no relatório do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), que também fez as recomendações necessárias sobre as mudanças de procedimentos adotadas pela companhia na época, além de solicitar modificações técnicas à fabricante da aeronave", diz a nota da LATAM.

[Fonte: O Globo, JB, Veja]

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