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terça-feira, 15 de novembro de 2016

LIVROS QUE EU LI - "OVELHA — MEMÓRIAS DE UM PASTOR GAY"

"Não se julga um livro pela capa." Creio que todos conhecem esse detalhe. No caso desse livro sobre o qual irei enfocar aqui eu diria que não se julga um livro pelo título. Quando vi esse título comecei a fazer meus julgamentos preconceituosos. Mesmo antes de lê-lo, comecei a imaginar que era um livro que fazia apologia à essa "onda" de homossexualidade. Ledo engano o meu. Estava diante de uma obra fascinante, ousada, corajosa e que revela uma realidade conflitante, expondo o pus de uma enorme ferida inflamada por trás de uma dura casca de hipocrisia.

O livro

 "Drogados, assassinos, bêbados, ladrões, mentirosos, adúlteros, caluniadores, falsos, todos sempre foram aceitos na igreja. Gays, não. Amamos o pecador, não o pecado... grande balela."   Pág. 23.
Este livro, estreia impressionante de um jovem e talentoso escritor, é o relato pecaminoso de um decadente. A história de um homem religioso e carismático, temente a Deus, mas amante insaciável de sua própria carne exótica, a carne de outros homens. Um pastor gay, casado com uma ex-prostituta, filho de uma fanática religiosa. 

Neurótico e depravado. E agora condenado. Internado no hospital, debilitado e com um segredo de uma tonelada nas costas, este personagem atormentado decide libertar-se de seus demônios e relatar seu drama. Num relato cru e sem censura, ele literalmente vomita seus trinta anos de calvário e charlatanice na cara da congregação (e de qualquer um que se interesse por um "bom inferno"). Sexo, paranoia, corrupção e destruição são os ingredientes tóxicos dessa obra provocante, polêmica e inovadora.

Como o próprio subtitulo já sugere, o livro nada mais é que um fluxo de memórias sobre a vida de um pastor homossexual. Narrado em primeira pessoa, essas memórias apresentam uma mescla entre o presente e o passado desse pastor que passou a vida inteira se escondendo atrás da religião, mas que apesar de ter "consciência do próprio pecado", viveu todas as experiências possíveis. Mas, como o próprio narrador-personagem prefere explicar, já nos primeiros capítulos:
"Este diário é como uma autobiografia ou carta de suicídio prolongado de quem morre aos poucos, sem ter vivido direito, inspirado por coisas que li e que vivi, de capítulos sem ordem lógica, gosto duvidoso e linguagem questionável" (p.16).
Como a citação pode sugerir, este pastor anônimo se encontra acamado num hospital católico tentando aumentar sua sobrevida após ser acometido pela AIDS. Acreditando, ou aceitando, no seu fim, este sujeito decide que chegou a hora de mostrar sua verdadeira face, até porque agora não fará tanta diferença, pois acredita não estar vivo quando sua máscara cair. E é com essa motivação que ele — pastor, esposo, pai e filho predileto — decide contar sua história, desde quando se entendeu gay, passando por suas batalhas internas, conflitos familiares por motivos religiosos, entre outros pontos tão chocantes quanto uma memória desprendida de amarras pode ser.

Já que é para polemizar...


Eu adoro livros polêmicos. Aliás, não gosto de nada que seja óbvio. Se a obra tem a intenção de quebrar paradigmas, adoro mais ainda. Foi exatamente por isso que — vencido meu preconceito pelo título — me interessei em ler "Ovelha..." Esperava uma leitura que me fizesse pensar e que desconstruísse algumas figuras canonizadas. Felizmente, o livro fez exatamente isso, mas com algumas surpresas. Positivas, aliás.

O protagonista é um pastor. Porém, esqueça aquele padrão de pessoa "reta segundo os padrões bíblicos" — o padrão esperado, vislumbrado de todos os pastores e por todos os que os têm. Ele é gay, mente descaradamente para proteger seus segredos, engana seus fiéis e, algumas vezes, até a si mesmo. Contudo, não pense que ele é um mau-caráter. Ao contrário, é um homem extremamente atormentado por seus erros e por suas falhas — às quais reconhece — diante de Deus.

Intrigante, desafiador, confrontador


Esta foi minha primeira impressão quando comecei a ler o livro (que tomei emprestado com uma amiga). A leitura apenas confirmou o que senti inicialmente, ao passo que uma série de outros sentimentos conflitantes entre o amor e o ódio, a hipocrisia e a sinceridade foram se somando a cada relato.

O autor, Gustavo Magnani (21 anos!) é o paranaense idealizador e administrador do site, do canal e da página Literatortura. Quem acompanha a página já sabe que a relação dele com as palavras é incrível, mas nada se compara à qualidade do trabalho que ele realizou no seu primeiro romance.

Os personagens


Apesar de ser um livro de memórias fictícias, Gustavo realizou um excelente trabalho na construção dos personagens secundários, em especial daqueles que tiveram influência direta na construção da personalidade do pastor ao longo dos anos. São eles: Mãe, cujo nome não é mencionado; O Bêbado, que faz referência ao pai do protagonista (pouco, mas significativamente mencionado); Bianca, ex-prostituta e atual esposa do protagonista; Lucas, irmão e melhor amigo do pastor, além de ser o único que sabe de sua condição; e o mais mencionado e importante, Davi, o que se aproxima do "amor verdadeiro" do personagem principal.

De todas essas relações, as que mais me chocaram e encantaram (na mesma medida) foram as relações entre mãe-filho e entre irmãos, pois com elas o autor mostra que até o amor, quando em desequilíbrio, pode ser prejudicial.

Obviamente, o autor não faz isso de forma leviana. Uma simples observação basta para notar que Gustavo o faz para chocar o leitor, objetivando uma reflexão. O que autor consegue, por sinal, sem muita dificuldade. Não é difícil pensar em certa hipocrisia que há no meio religioso, em como algumas pessoas enganam, se enganam e, principalmente, como o sofrimento e a vergonha pode moldar o homem.

Além dessa reflexão indireta, o protagonista propõe uma série de reflexões diretamente. Ele desafia o leitor a pensar na nossa sociedade mentirosa e enganadora; questiona padrões, derruba construções sociais e, principalmente, em tom muito irônico, faz fortes críticas à igreja no seu sentido constitucional.

Conclusão


São reflexões como essas que fazem desse livro ímpar. À cada nova memória, o autor vai apresentando novas camadas da vida do personagem e sociedade em que ele está inserido, possibilitando uma quantidade infinita de reflexões sobre as temáticas, que podem ou não ser coletivas. Tanto é que, mesmo com dois dos assuntos mais polêmicos da atualidade — religião e sexualidade —, o livro ainda possui uma leveza, chegando ao divertimento em boa parte da leitura. 

Só para não deixar de comentar: O que foram aqueles capítulos? Capítulo do prazer; Os gays querem dominar o mundo; Chuca; Gozei; e O sermão que nunca tive coragem de dar. Divertidamente emocionante. Ousadamente intrigante.

Espero ter deixado claro que tanto a ideia da história quanto sua execução pelo Gustavo fazem desse livro uma obra prima. Mas outros fatores também influenciaram positivamente, sendo o projeto gráfico o que mais me chamou atenção. A Geração Editorial conseguiu acertar em todas as escolhas: capa, fonte, espaçamento, entre tantos outros detalhes.

Se o conteúdo do livro, com todas essas características, é muito bom, a parte física também não deixa a desejar. A capa é bonita e imita o padrão de bíblias antigas. A diagramação está bonita e muito confortável, o que proporciona uma ótima leitura. Além disso, o livro conta com uma boa revisão.

No mais, só me resta deixar a indicação, com uns adendos:
  • 1) Aos que se proporem a lê-lo, leiam de mente aberta e estejam preparados para amá-lo e/ou odiá-lo de forma única. Eu amei e espero que essas memórias mexam com vocês de alguma forma. 
  • 2) Ao lê-lo, você será levado a um reflexivo confronto entre o cristianismo que você professa e o que você vive.
Não é um livro fácil. Foi feito para leitores corajosos. Se tiver em busca de uma leitura cheia de clichês evangélicos, passe longe desse livro. 

  • Ficha Técnica
Título: Ovelha – Memórias de um pastor gay
Autor: Gustavo Magnani
ISBN: 9788581303253
Editora: Geração Editorial
Ano: 2015
Páginas: 232

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