Pessoas de caráter ilibado, acima de qualquer suspeita, profissionais, autoridades, membros do corpo eclesiástico e outros têm aparecido na mídia, com certa frequência, apontados como pedófilos.
Dicionários definem pedofilia como perversão que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças e exercer prática efetiva de atos sexuais com crianças, prática essa repelida por nossa sociedade.
Já a ciência médica classifica a pedofilia como transtorno da preferência sexual, uma afecção mental e comportamental que consiste em preferência sexual por crianças, quer se trate de meninos, meninas pré-púberes ou no início da puberdade.
Por outro lado, para algumas religiões, a pedofilia pode ser vista sob o ângulo do pecado, da transgressão a uma ordem dogmática.
Indo além...
Trata-se, no entanto, de simplificações, uma vez que vários são os contextos segundo os quais a questão pode e deve ser analisada para um início de entendimento. Seria necessário ousar enfrentar temas multi-disciplinares das ciências humanas e investigar aspectos históricos, psiquiátricos, psicológicos, jurídicos, filosóficos e até religiosos. É claro que neste pequeno artigo não é esse o propósito, mas gostaria de enfatizar que o errôneo entendimento do significado dessa palavra vem trazendo sérias confusões. Existe o crime de pedofilia no Brasil? É o assunto sobre o qual se busca aqui fazer alguma análise.
Deve ser considerado, numa abordagem inicial, que somente o ato pode vir a constituir crime e a intenção, por si só, por mais nociva que seja, não é abarcada pela lei, assim como, por exemplo, alguém que possua o desejo de matar não está sujeito a pena se não realizar esse desejo. Já o mesmo não ocorre com a religião que, em certos casos, diante do eventual pensamento pecaminoso, impõe penitência.
Assim, da mesma forma que não há, necessariamente, crime no que é considerado pecado, também não há crime na doença. O doente deve ser tratado e, se constitui risco para si ou para a comunidade, medidas devem ser tomadas para neutralizar a ameaça, mas tal dever-ser só existe no campo do direito criminal se um ato efetivo é concretizado.
Uma analogia interessante pode ser feita com os casos de doenças infecto-contagiosas, certos distúrbios mentais ("loucura furiosa") e até mesmo os vícios com drogas lícitas (fumo, álcool, etc.), males que direta ou indiretamente afetam a sociedade, mas dependem da boa vontade de políticos, familiares e dos próprios doentes para serem debelados.
A dinâmica da cultura e da moral
Antes da abordagem especificamente jurídica, é necessário um preâmbulo, no que tange ao contexto de pensamento necessário neste tipo de questão. O homem, há muito, vive em sociedade imerso em uma cultura que ele encontra pronta ao nascer e que se modifica muito lentamente com o passar do tempo. Essa cultura, qualquer que seja, inclui, entre outras partes constituintes: linguagem, costumes, valores morais e lei.
Fujamos, pois, da tentação de "naturalizar" esses elementos, ou seja, por ingenuidade acreditar que certo valor moral ou jurídico provém de uma "natureza humana" ou de uma essência desde sempre presente no homem por um dom de Deus. Lembremos que muitos no século retrasado consideravam o direito "natural" e, ainda hoje, alguns sem maiores estudos na área da filosofia jurídica entendem, por exemplo, que "é óbvio" considerar o direito à vida "natural" e não uma construção cultural.
Interessante que muitos desses que assim pensam não hesitam em defender a pena de morte, o porte de armas e, mais sorrateiramente, o extermínio sumário da bandidagem que lhe traz riscos e onera os cofres públicos. Não deixam, também, de comer carne animal, o que mostra o quão relativo e essencialmente cultural é o chamado "direito à vida". Tal observação faz crer que essas naturalizações escondem, em geral, a busca do nosso próprio bem, o que é espelhado no bem da nossa família, dos nossos amigos, ou, mais remotamente, da nossa nação ou da nossa espécie.
Os "desvios" da moral sexual
Abordando, pois, o tratamento dado à pedofilia no contexto cultural específico do tempo-espaço em que vivemos, é forçoso lembrar que resquícios de antigas formas de pensamento incluem entre as suas bases o repúdio a qualquer forma de prazer sexual que não seja apto à reprodução. Assim, casos de sexo entre pessoas do mesmo sexo (homossexualidade), sexo com idosos (gerontofilia), com mortos (necrofilia), com crianças (pedofilia), com animais irracionais (zoofilia), todas eles são modalidades pecaminosas.
Neste diapasão, as manifestações do desejo banido são ou já foram rotuladas como perversões, doenças ou distúrbios, como a homossexualidade, a gerontofilia, a necrofilia, a pedofilia, o bestialismo (ou zoofilia). A sociedade, portanto, estabelece em suas normas jurídicas, escritas e não escritas, bem como as morais, que aquele que apresenta tais desajustes é um mal social.
Algumas de tais vedações estão relativizadas em função da evolução dos costumes. Ocorre, entretanto, que o banimento cultural, arraigado através das gerações, resiste ainda, em grande parte. Notem-se, por exemplo, os frequentes casos de violência contra casais homossexuais que se apresentam como tal em local público.
Os diferentes "tratamentos" para os "desvios"
Cada mal social, dependendo do momento cultural, é encarado com determinado viés, podendo ser "psiquiatrizado", "criminalizado" ou "tolerado". É difícil o entendimento das razões que levam a uma ou outra consequência. Parece que os atos aptos, segundo o modelo cultural vigente, a causar o que a sociedade encare como dano ou perigo, tendem a ser criminalizados.
Já os comportamentos diferentes da norma estatística tendem a ser "psiquiatrizados" (o que caracteriza, em grande parte dos casos, juízo de valor discutível, haja vista importantíssimas contribuições dadas à humanidade por indivíduos tidos por loucos). Por fim, aquilo que parcela significativa da população faz mas causa mal-estar em ambientes "bem comportados" costuma ser tolerado, como é o caso da prostituição.
A homossexualidade, por exemplo, já foi classificado como doença e, inclusive, classificado com um código "CID" (classificação internacional das doenças), portanto "psiquiatrizado", sendo ainda "criminalizado" em alguns países. Depois de muita mobilização de alguns grupos sociais, a relação entre pessoas do mesmo sexo passou a ser "tolerada", exemplo que confirma a fluidez de conceitos morais como bem e mal, verdade e doença.
Vale notar que a diferença prática entre a doença ("psiquiatrizada") e o crime é a consequência: o doente deve ser tratado (e internado, se necessário à aparente paz social) e o criminoso deve ser punido (encarcerado).
Aparece aqui fortemente clara a ideia de culpa, em vários sentidos, sobretudo no jurídico: o doente não tem culpa da sua doença ao passo que o criminoso tem culpa do seu crime.
O "tratamento" da pedofilia e suas consequências
A cultura atual considera pedofilia uma doença. É difícil explicar por que certos comportamentos não aceitos socialmente são considerados doenças, ainda mais neste caso, onde aparece forte presença de perigo de danos. Uma hipótese possível é que falte à sociedade uma explicação, uma compreensão do fenômeno e a CID seja a saída mais simples. Aceitando, pois, a "pedofilia-doença" como premissa e sem adentrar em juízos de valor sobre o aparentemente inexplicável, podemos considerar que:
- Não se pode ser a favor de uma doença ou contra ela, assim como não somos ontologicamente contra a AIDS, a hanseníase ou a síndrome de Down, muito menos a favor das mesmas, apenas a reconhecemos como realidades.
- Não há o crime de pedofilia, embora atos erroneamente rotulados como tal possam, em certos casos, constituir crime, que inclusive não são passíveis de pena se causados por doença ou retardamento mental.
Como se caracteriza o pedófilo
O pedófilo é aquele que se sente atraído sexualmente por crianças e não raro se vale de certas características da criança, tais como o baixo grau de discernimento, como meios para atingir seus objetivos, em função de sua doença.
A pedofilia pressupõe, portanto, sob o aspecto social, um dos vícios do consentimento como base para sua constituição, assim como há outros vícios, caracterizadores de outras situações, a saber:
- O estuprador (criminoso) explora a fragilidade física.
- O cliente da prostituta (tolerado) explora a fragilidade econômica.
Os "crimes sexuais" e a pedofilia
Alguns crimes, de natureza sexual, têm sido erroneamente chamados pela população ou pela imprensa de "crimes de pedofilia". É preciso notar que isto é totalmente impróprio. Crimes sexuais são típicos de pessoas "sadias". O pedófilo, ao praticar esses crimes, não é imputável, pois é "doente" e deverá ser, portanto, "tratado". Sendo assim, o crime sexual nada tem a ver com a pedofilia.
Entre os crimes mais arrolados erroneamente como pedofilia está a divulgação e/ou o consumo de material pornográfico com o uso de crianças e adolescentes. Em geral, os praticantes de tal crime não são pedófilos.
Outra questão interessante a ser esclarecida é a chamada "idade de consentimento", que varia de acordo com o país. Abaixo dessa idade, o ato sexual é considerado presumidamente violento e equiparado ao estupro. A idade de consentimento no Brasil é 14 (catorze) anos, porém, muitas decisões judiciais têm relativizado esta presunção, ou seja, considerado a possibilidade de não a aplicar, nos casos em que a suposta vítima tem, comprovadamente, total capacidade de entender e consentir, embora menor de tal idade.
Do mesmo modo, os autores deste crime não costumam ser pedófilos.
Já a corrupção de menores é um crime que não se confunde com o estupro presumido. A corrupção diz respeito ao desvirtuamento das qualidades morais de adolescente entre 14 e (catorze) e 17 (dezessete) anos, através de ato libidinoso. Tendo em vista o precoce entendimento dos jovens atuais, este artigo praticamente não é aplicado, já que dificilmente pessoas nessas faixas etárias são suscetíveis de desvirtuamento por tais atos.
Entretanto, casos que causam mal-estar ou são "escandalosos", por envolver religiosos e/ou relações homossexuais, têm sido rotulados como de "pedofilia", embora muitas vezes tal classificação seja errônea e não raro até mesmo se trate de fatos atípicos (não criminosos).
Note-se, por exemplo, o caso, em tese, de adulto que costuma realizar atos sexuais com adolescentes (masculinos) de 16 anos, que já são acostumados a tais práticas e as fazem voluntariamente. Não há corrupção de menores (eis que os respectivos menores já estavam corrompidos, sob a ótica legal) e não há atentado ao pudor por presunção (a idade de consentimento já foi superada); da mesma forma, não há, de modo algum, pedofilia, pois nenhum dos envolvidos é criança, nem sob o ponto de vista jurídico (menor de 12 anos) nem sob o biológico, eis que se trata de homens que já superaram a puberdade.
Entretanto, uma situação de tal natureza é encarada com escândalo por envolver relações homossexuais e tal escândalo é ainda maior se envolver um religioso, já que os resquícios de "bons costumes" levam a opinião publicada a crer ser a homossexualidade prática por demais "impura" para um padre ou um pastor.
É preciso destacar, ainda, que o crime sexual contra a criança e o adolescente é previsto em lei, em vários artigos, que são plenamente vigentes e devem ser, evidentemente, aplicados, nos casos sobre os quais tais normas incidem; mas isso, como já foi desenvolvido, pouco ou nada tem a ver, na grande maioria das situações, com a pedofilia.
O "turismo sexual" e a prostituição
Todos nós brasileiros queremos o desenvolvimento do turismo no país devido aos aspectos benéficos dessa atividade, de ordem econômica e geral, mas gostaríamos que os atrativos a motivar as viagens não fosse a prostituição, muito menos a de crianças e adolescentes, deformação que evidencia graves problemas de caráter social.
A prostituição é uma das práticas penalmente toleradas no Brasil, entretanto não o é quando se trata da prostituição infantil ou adolescente. Neste caso, comete crime aquele que utiliza este tipo de "serviço". Sendo assim, é preciso, com políticas sociais, combater a prostituição, em geral, e, especialmente a de menores, fazendo o uso do direito penal, seja ela explorada por turistas ou não.
O chamada "turismo sexual" é mais um exemplo de situação tratada com viés e deturpação no que diz respeito à pedofilia. Estrangeiros são presos por ter relações sexuais com brasileiras de 14 a 17 anos e, a título de exemplo, há o caso de um turista preso ao ser "flagrado" conversando com jovem de 15 anos em praia do nordeste. Este tipo de patrulhamento excessivo vai muito além da saudável e necessária proteção à infância e juventude.
É um exagero que, no entanto, não desvirtua o sempre necessário combate à prostituição, sobretudo a de menores e o uso desta por turistas - o que vem sendo denominado pela não tão adequada alcunha de "turismo sexual". Entendemos que não deve ser molestado o turista que viaja a procura de diversão o que inclui, não raro, a atividade sexual, desde que dentro de limites do que é socialmente aceito ou, pelo menos, tolerado, em igualdade de condições com os nacionais.
Lembremos, ainda, que o direito penal só trata desta questão no caso específico daquele que tira proveito da prostituição de menor de 18 anos (homem ou mulher) e ressalte-se que o tema, mais uma vez, nada tem a ver com o fenômeno da pedofilia.
Conclusão
O juiz em face da pedofilia
Não há um artigo legal específico que defina um crime como "crime de pedofilia". Por outro lado, nos casos em que a conduta é caracterizada como estupro presumido, divulgação (e/ou consumo) de pornografia infantil, uso da prostituição infantil ou corrupção de menores e há indícios de que o autor do fato o tenha praticado por doença mental, como tal comprovada, cabe a mesma regra usada em outros crimes: aplica-se a medida de segurança e não a pena.
A doença aqui referida pode ser a pedofilia, já que esta é considerada como tal pela psiquiatria. Neste caso, são aplicadas as mesmas normas instrumentais usadas em geral para a comprovação das demais doenças mentais, ou seja, há necessidade de incidente e laudo psiquiátrico no qual o profissional usa o manancial epistemológico respectivo, em que é – em suma – avaliada a imputabilidade, capacidade do sujeito discernir e se autodeterminar, uma das características da culpabilidade.
Sendo assim, cabe ao magistrado levar em consideração que crianças e adolescentes devem ser protegidos, como pede a Sociedade, nos limites da lei. Isto envolve as normas éticas utilizáveis pelo magistrado de um modo geral, que implicam na aplicação serena da justiça, no entendimento de que os "desvios" a serem corrigidos são humanos (e o próprio juiz os tem) e evitando a influência de sentimentos pessoais de repulsa, bem como excluindo pressões que possa sofrer da mídia.
Em se tratando de direito penal, ainda é preciso lembrar que se aplica um princípio específico chamado o da "estrita reserva legal", que significa, em resumo, uma interpretação restritiva (ou "pró-réu") dos que o direito chama de "fatos típicos". Nos casos aqui analisados, isto quer dizer que conceitos como "corromper", "pornografia" ou "prostituição" só podem ser levados em consideração para condenar quando tais palavras correspondam, sem a menor sombra de dúvida, ao fato praticado.
Para finalizar, é preciso que o juiz identifique quando se trata de fato praticado em virtude de doença mental, aplicando nestes casos o tratamento e não a punição, como manda o direito. Aplica-se, outrossim, a punição, quando esta igualmente decorrer do direito.
[Fonte: Jus Brasil, Scielo]
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