Recorrendo a jornais da época e à documentação produzida pela censura, analiso neste artigo as diferentes re-significações elaboradas sobre o excelente filme "Pra Frente, Brasil". Entendo que as variadas percepções sobre a obra denunciam a existência de um embate entre memórias acerca do regime civil-militar ainda ao longo da denominada "transição para a democracia".
Pretendo, neste artigo, analisar de que forma o impacto do filme "Pra Frente, Brasil", de Roberto Farias (✩1932-✟2018), potencializou um debate dentre as diferentes visões acerca da década e meia de repressão do regime civil-militar.
Análise histórica
O impacto causado pelo filme
Os protagonistas Natália do Valle, Reginaldo Farias e Antônio Fagundes em cena |
O longa-metragem é uma das primeiras películas da fase inicial da "transição" a discutir a memória sobre os "anos de chumbo". Obra de ambientação histórica que aborda uma realidade até então ocultada, desencadeou uma série de manifestações que apontavam para a existência de diferentes maneiras de apropriação do passado.
Essas reações podem indicar uma fotografia da cultura política do país nos anos 1980. Com a crescente liberalização do regime, observa-se a proliferação tanto de perspectivas sobre o passado quanto de projetos políticos alternativos àqueles implementados ao longo da ditadura. O encaminhamento da transição coloca na ordem do dia o crescente questionamento do papel do Estado enquanto guardião desse passado, viabilizando a emergência de diferentes memórias sobre o período autoritário.
Essas reações podem indicar uma fotografia da cultura política do país nos anos 1980. Com a crescente liberalização do regime, observa-se a proliferação tanto de perspectivas sobre o passado quanto de projetos políticos alternativos àqueles implementados ao longo da ditadura. O encaminhamento da transição coloca na ordem do dia o crescente questionamento do papel do Estado enquanto guardião desse passado, viabilizando a emergência de diferentes memórias sobre o período autoritário.
De outro lado, dentro de uma análise que se orienta pelos estudos que enfatizam o papel do espectador na construção de significados de uma obra artística, entendo que uma película raramente desencadeia uma única forma de interpretação, ou seja, mesmo que o conjunto de indivíduos envolvidos na sua produção esteja completamente afinado com a perspectiva que deseja ser apresentada pelo diretor, ainda assim o seu caráter polissêmico poderá contribuir para a existência de diferentes percepções fílmicas.
Roberto Farias, o filme e sua trajetória
Carlos Zara e Reginaldo Farias em uma das impactantes e polêmicas cenas de tortura do filme: realismo |
O longa-metragem "Pra Frente, Brasil" teve produção, direção e roteiro do cineasta Roberto Farias. Foi elaborado ao longo dos anos de 1979 e 1982 com base em financiamento da extinta Embrafilme.
Portanto, num momento em que a historiografia denomina por fase de "transição" política dos governos civil - militares, calcados na Doutrina de Segurança Nacional, para um período pós-autoritário.
Portanto, num momento em que a historiografia denomina por fase de "transição" política dos governos civil - militares, calcados na Doutrina de Segurança Nacional, para um período pós-autoritário.
Considerado como um dos participantes do Cinema Novo, Farias já produzia filmes há dez anos quando manteve contato com os cinemanovistas via Glauber Rocha. Apesar de não se considerar como um dos articuladores do movimento, ele foi um dos encaminhadores da constituição da Di Filmes em 1965.
Farias chegou a dirigir diversos filmes comerciais entre 1967 e 1972 cuja característica era justamente uma estética calcada no modo de representação institucional (hollywoodiana). A chegada de Farias ao comando da Embrafilme (1974-1979) teria ocorrido por ser ele um dos poucos cineastas que não devia dinheiro para a empresa.
Estudiosos assinalam como um dos principais motivos para a sua indicação foi por ser ele, em 1974, o então Presidente do Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica. O objetivo do Governo Geisel, ao indicá-lo, seria o de estreitar os laços entre os cinemanovistas e o Estado dentro de um ponto de vista da valorização da cultura nacional.
CRÍTICA
Matéria do JB noticiando a censura do filme |
Enquanto alguns teimam em relativizar o horror instaurado nos tempos da ditadura (1964-1985), volta e meia surgem novos capítulos desse passado brasileiro que não se deve esquecer, pois é importante à memória da nação. Nesse sentido, como exemplar fílmico de recorte histórico, "Pra Frente, Brasil" assume expressivo papel de exumação, uma vez que captura inúmeros espectros da época citada.
No lugar e hora errados, Jofre (Reginaldo Farias, irmão do diretor), na trama, é tido como possível comunista e levado aos porões onde a tortura era método para fazer inocentes e "culpados" falarem. Seu irmão Miguel (Antônio Fagundes) e sua esposa Marta (Natália do Valle) tentam encontrá-lo pelos meios legais, mas esbarram na dificuldade imposta pela polícia conivente, a mando das artimanhas ditatoriais.
O filme, a censura e os censores
O filme foi liberado para exibição sem cortes em 14 de fevereiro de 1984 |
A interdição do filme "Pra Frente, Brasil", segundo diversas análises contemporâneas ao momento de sua produção, foi obra da linha-dura. A proibição se deu sob alegação de que o conteúdo do filme contrariava o artigo 41, alínea D do Decreto 20.493/46, uma vez que contribuía para
"provocar incitamento contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades constituídas e seus agentes".
Tudo isso ocorreu ao longo do ano de 1982. Conforme assinalado anteriormente, para ser exibido, o filme tinha que passar previamente pela Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP) vinculadas à Polícia Federal. Uma vez na DCDP, a película foi submetida basicamente a cinco pareceres, fora a avaliação feita pela própria diretora da Divisão de Censura, Solange Maria Teixeira Hernandes.
Sinopse sob censura
Feita essa primeira e breve explanação da obra, passarei às considerações tanto sobre narrativa quanto ao seu conteúdo, ambas elaboradas por quatro das cinco análises censórias emitidas pelo DCDP.
Em 1970, o Brasil inteiro torce e vibra com a seleção de futebol no México, enquanto prisioneiros políticos são torturados nos porões da ditadura militar e inocentes são vítimas desta violência. Todos estes acontecimentos são vistos pela ótica de uma família quando um dos seus integrantes, um pacato trabalhador da classe média, é confundido com um ativista político e "desaparece".
Em 1970, o Brasil inteiro torce e vibra com a seleção de futebol no México, enquanto prisioneiros políticos são torturados nos porões da ditadura militar e inocentes são vítimas desta violência. Todos estes acontecimentos são vistos pela ótica de uma família quando um dos seus integrantes, um pacato trabalhador da classe média, é confundido com um ativista político e "desaparece".
Segundo a responsável pela avaliação da pertinência, ou não, de liberação do filme para o Festival de Cannes, o filme narra que, paralelamente ao transcorrer da Copa do Mundo, um embate entre "facções políticas de esquerda e direita" estaria se desenvolvendo no Brasil (Qualquer semelhança ao atual cenário político não é nem de longe apenas mera coincidência). Jofre seria um cidadão apolítico (assim como eu) que, em função de um contato superficial e fruto do acaso com o "subversivo" Sarmento (Cláudio Marzo - ✩ 1940-✟2015), é atingido pela ação da repressão por ser considerado "erroneamente" um "terrorista".
Na busca por informações sobre a relação entre os dois, o primeiro é barbaramente torturado com "pau de arara, socos, pontapés, choques elétricos". Jofre morre vítima "das ações de fanáticos de direita, participantes de uma facção clandestina".
Na busca por informações sobre a relação entre os dois, o primeiro é barbaramente torturado com "pau de arara, socos, pontapés, choques elétricos". Jofre morre vítima "das ações de fanáticos de direita, participantes de uma facção clandestina".
Procurando por seu irmão, Miguel descobre que os dois trabalhavam para uma grande empresa que contribuía "obrigada" e "sob ameaça" para a referida facção clandestina "sob pretexto de acabar com a subversão no país".
Essa organização "ministrava aulas de tortura e convidava colaboradores para participarem das sessões, inclusive americanos". A polícia demonstra indiferença quanto ao desespero tanto de Miguel (irmão de Jofre) quanto de sua mulher Marta, distorcendo inclusive os fatos. Vou parar por aqui, pois, se eu continuar será spoiller e o melhor de tudo é mesmo você assistir ao filme.
Conclusão
O diretor Roberto Farias resgata de maneira magnífica o específico momento em que as desventuras da seleção brasileira de futebol por terras mexicanas, então à caça do tão sonhado tri-campeonato em 1970, serviram tal cortina de fumaça às barbáries militares na luta contra os "subversivos". De início, teme-se que "Pra Frente, Brasil" utilize como muleta essa relação entre a campanha do escrete canarinho e a caótica conjuntura político/social. Porém, felizmente, há emprego sábio e parcimonioso da justaposição, até mesmo como reforço de outros aspectos relevantes: o exílio, os colaboracionistas, as conivências, os desaparecimentos e as mortes que impeliram mancha indelével à bandeira que clama por ordem e progresso.
Tendo em mente a significância do famigerado período, é duro constatar a ineficácia da cinematografia nacional em explorá-lo satisfatoriamente. "Pra Frente, Brasil" se distingue nesse cenário pela habilidade no retrato de um país sob cabresto, e a capacidade de ser fração elucidativa do todo, esse de difícil entendimento absoluto. Ao mostrar Jofre, Roberto Farias se refere aos torturados inocentes, assim como ressoa na luta particular de seus outros personagens a batalha dos marcados pelos anos de chumbo.
E no país do futebol, enquanto o capitão Carlos Alberto Torres (✩1944-✟2015) alçava a taça Jules Rimet, símbolo da glória brasileira no exterior, aqui corria sangue, se disseminavam o sofrimento e a coerção social, vergonhas nacionais marcadas para sempre na história deste país varonil.
Gradativamente e de forma mais recente, mesmo essa perspectiva vem sendo cada vez mais confrontada por outra, que pretende o pleno esclarecimento da violência dos governos civil-militares. O interessante é observar que, 36 anos depois, essa capacidade censória, em nome de uma pretensa preservação da memória institucional, ainda esteja presente através da tentativa de obstrução do acesso às informações relativas a mortos e desaparecidos que traz, em seu bojo, uma rediscussão sobre a Lei de Anistia.
Gradativamente e de forma mais recente, mesmo essa perspectiva vem sendo cada vez mais confrontada por outra, que pretende o pleno esclarecimento da violência dos governos civil-militares. O interessante é observar que, 36 anos depois, essa capacidade censória, em nome de uma pretensa preservação da memória institucional, ainda esteja presente através da tentativa de obstrução do acesso às informações relativas a mortos e desaparecidos que traz, em seu bojo, uma rediscussão sobre a Lei de Anistia.
Enfim, por retratar um dos períodos de mais obscuros da história do Brasil, os chamados anos de chumbo – período pelo qual eu, particularmente tenho grande interesse em pesquisar, talvez por eu ter nascido em seu epicentro (nasci em 1967) –, pela brilhante direção de Roberto Farias e pela atuação memorável de grandes nomes do cinema e da televisão, como Reginaldo Farias, Antônio Fagundes, Natália do Valle, Carlos Zara (✩1930-✟2002) – irretocável como o terrível torturador dr. Barreto – , Cláudio Marzo e Elizabeth Savalla – magnífica como a militante terrorista Mariana – dentre outros, o filme "Pra Frente, Brasil", mais do que um registro histórico, é a prova de que sim, quando se quer, pode-se fazer cinema de qualidade 100 por cento nacional. Mais do que recomendado, essencial.
- Pra frente, Brasil (Clique ➫ aqui e assista ao filme completo)
- Classificação: 16A, 105 minutos
- Direção: Roberto Farias
- Título original: Pra Frente, Brasil
- Gênero: Drama
- Ano: 1982
[Fonte: Redalyc.ogr - Revista de Artigos Acadêmicos por Ricardo Antônio Souza Mendes; Papo de Cinema por Marcelo Müller, jornalista, crítico de cinema, membro da ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro) e da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministra cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ e no Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017) e "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018).]
A Deus toda glória.
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E nem 1% religioso.
Vi este filme anos atrás. Boa lembrança.Vou assistir novamente.
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