Total de visualizações de página

segunda-feira, 2 de março de 2015

A CEIA EM EMAÚS

Essa passagem foi tema da mensagem pregada por mim no culto do domingo, 01 de março de 2014, ocasião em que celebramos a ceia do Senhor. Ao adaptá-la para um artigo, trago um enfoque mais abrangente, o que não me possibilita em uma pregação por causa do fator tempo (implacável).

Talvez, um dos relatos mais conhecidos de Lucas seja a história dos dois discípulos na estrada de Emaús. Aqui temos o retrato da realidade de muitos de nós em diversas circunstâncias de nossa caminhada rumo ao céu - vacilantes na fé, descrentes, desanimadas, sem sentir a presença do Cristo Ressuscitado entre. Através desse relato, o dr. Lucas nos reanima, mostrando-nos que não estamos e nem somos abandonados até mesmo quando estamos caminhando na direção contrária às promessas de Deus.

Vejamos a passagem desse drama em cinco atos - um drama que nos mostra a pedagogia de Jesus. Analisemos-na mais de perto:

Primeiro ato: vv 13 -19a: “Introdução”


O relato começa com as palavras “nesse mesmo dia”. Devemos já fazer uma parada e nos perguntar “que dia”? Para nós seria o dia da Ressurreição, mas para os dois discípulos era simplesmente o terceiro dia da morte de Jesus! Dia de desânimo, de tristeza. “Os dois iam para um povoado chamado Emaús, distante onze quilômetros (480 mt) de Jerusalém”. É válido observar que naquele contexto, Jerusalém não trazia boas recordações ao discípulos. Ela era sinônimo do martírio e morte de Jesus. E, ao menos naquele instante e para eles, era o que Jerusalém representava.

Também é bom lembrar que o bom judeu não podia caminhar mais do que um quilômetro no dia de sábado. Portanto, era impossível que eles viajassem no dia anterior. Domingo é a sua primeira oportunidade de sair de Jerusalém, e "não perderam tempo", a aproveitaram bem - já estão voltando para sua casa. A cena começa com a desintegração da comunidade cristã. Tudo acabou, a comunidade se dispersa, não há nem alegria nem esperança.

Quem eram eles? Sabemos do relato que um se chamava Cléofas. E o outro? O Evangelho de João nos conta que a irmã de Maria, mãe do Jesus, chamada Maria de Cléofas, estava junto à cruz (Jo 19:25). Não seria demais acreditar que os dois discípulos fossem um casal, Cléofas e a sua esposa, voltando depois da peregrinação pascal à Jerusalém. Nunca saberemos com certeza, mas é uma hipótese agradável, possível e aceita pela maioria absoluta dos teólogos cristãos sérios.

De repente, no caminho surge Jesus, sem que seja reconhecido. Com isso, Lucas quer dizer que o Cristo Ressuscitado não é um defunto que voltou a viver - mas, Ele tem uma nova maneira de ser, um corpo glorificado. É importante notar como Jesus se comporta, através dos verbos que Lucas usa. Ele “aproximou-se”, “caminhou com eles” e “perguntou”. Ele não veio “dando de dedo”, nem dando explicações bíblicas. Ele criou um ambiente de fraternidade, de comunhão, de intimidade onde seria possível explicar tanto a vida como a Bíblia! Quantas vezes isso falta em nossos grupos, nossas comunidades, nossas ongregaçõees  - não nos aproximamos uns aos outros, mantemos distância, nos individualisamos em meio a coletividade! Não caminhamos juntos, queremos dar soluções sem conhecer a realidade dos nossos irmãos e irmãs! Por isso mesmo, muitas vezes não tem efeito as nossas reuniões solenes, os nossos encontros, os nossos cultos.

O “ato” termina com a pergunta d’Ele: “O que é que vocês andam discutindo pelo caminho?” (v. 17), ou seja, Ele dá uma oportunidade para que eles exponham a sua realidade, sem julgamento, sem moralismo. Ele parte da realidade dos dois.

Segundo Ato: vv 19b -24: “Os discípulos falam”


Diante da oportunidade de explicitar a sua realidade, Cléofas não titubeia. Ele expõe com clareza a sua situação. Diante da morte de Jesus ele frisa uma coisa importante: “nós esperávamos que Ele fosse o libertador de Israel” (v. 21). Eles “esperavam”, portanto não esperam mais nada. Aqui ressoam traços de decepção, desilusão, desânimo, até de uma certa revolta contra Jesus, pois todas as suas esperanças tinham sido desfeitas. Os seus sentimentos vão muito além de uma simples tristeza!

É importante notar também que Lucas explicita bem quem foi que matou Jesus - não foi o povo, foram grupos de interesse bem definidos: “Nossos chefes dos sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado à morte, e o crucificaram” (v. 20)

Para não reduzir a morte de Jesus a uma fatalidade qualquer, ou a algo desejado pelo Pai, é bom examinar mais profundamente esta afirmação do Cléofas: Jesus foi morto, assassinado judicialmente pelos “chefes dos sacerdotes” - um grupo de sacerdotes saduceus, que dominavam o comércio do Templo, lucrando muito com a exploração do povo através da religião, e que viu a sua hegemonia ameaçada pela pregação e pelo profetismo de Jesus. 

Também foi morto pelos “chefes” ou “magistrados”, ou seja, os membros do Sinédrio, que governava os judeus nos assuntos internos, onde a maioria pertencia ao partido elitista dos saduceus (não dos fariseus), colaboradores com o poder Romano, lucrando bastante com isso. Então Jesus foi morto não por acaso, mas porque ameaçava os privilégios da elite dominante! A cruz era a consequência lógica da vida de Jesus!

Outro elemento importante é o fato de que eles sabiam do túmulo vazio - dois dos apóstolos já tinham verificado a história das mulheres. Mas isso não dizia nada para eles! Aqui se destaca que a nossa fé não se baseia no túmulo vazio! É a nossa fé na Ressurreição que explica por que o túmulo estava vazio, e não o túmulo que dá consistência à nossa fé! Ou seja, a fé dos discípulos a caminho de Emaús era consistente e coerente com seus anseios em relação à promessa da ressurreição.

Terceiro Ato: VV 25-27: a Bíblia


Agora, e só agora, depois de ter criado o ambiente e escutado a realidade, é que Jesus usa a Escritura. Ele frisa que eles “custam para entender e demoram para acreditar em tudo o que os profetas falaram” (v. 25). Notemos bem - não custaram para “saber”, mas para “entender e acreditar”. Pois eram judeus piedosos, que, mesmo sendo analfabetos (os habitantes das aldeias circunvizinhas a Jerusalém era composto de pessoas humildes e sem instruções pedagógicas), conheciam de cor os salmos e as profecias. O seu problema era que embora conhecessem o livro da Bíblia, e também o livro da vida, eles não conseguiam ligar as duas coisas. Então Jesus “explica” as Escrituras - isto é, Ele não dá uma aula de exegese, mas faz a ligação entre a vida deles e a Bíblia, iluminando a sua realidade com a Palavra de Deus.

Quarto Ato: vv 28-32: a partilha


Chegando em Emaús, os discípulos convidam Jesus para entrar a e jantar com eles. Se realmente se trata de um casal, então seria entrar na sua casa, no aconchego do seu lar, e não numa hospedaria, como normalmente a gente supõe. Aqui temos o ponto central da história - pois até agora a explicação bíblica, por tão bonita que pudesse ter sido, não mudou a vida deles. Mas agora sim. Jesus se põe à mesa e: “tomou o pão e abençoou, depois o partiu e deu a eles” (v. 30). De propósito, Lucas usa as palavras que recordam a ultima Ceia. É a experiência da partilha, da comunhão, a renovação da Aliança! Agora o milagre acontece: “Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus” (v. 31).

Neste mesmo momento, Jesus desaparece da frente deles! Por que? Porque, uma vez feita a experiência da presença do Cristo Ressuscitado no meio deles, eles não precisavam mais da “muleta” da sua presença física. Agora eles caem dentro de si e reconhecem que “estava o nosso coração ardendo quando Ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?” ( v. 32) A Bíblia, sem dúvida, é capaz de fazer “arder o coração”, mas para “abrir os olhos” é necessária também a experiência de comunhão, da unidade, da celebração, da partilha!

Quinto Ato: vv 33-36: a missão


Se a história terminasse aqui, seria a história de uma experiência bonita feita por duas pessoas. Isso não basta. Tal experiência da presença do Senhor Ressuscitado exige a formação de uma comunidade fraterna de missão. Os mesmos dois que de manha fugiam de Jerusalém, lugar da morte, da perseguição, do fracasso, de tardezinha se põem no caminho de volta! O que mudou em Jerusalém durante o dia? Nada! Continua sendo o lugar de perigo, de morte, de perseguição. Mesmo sendo o epicentro da promessa. Mas, mudou a cabeça (coração, interior) dos dois. Em lugar de uma fé pré-pascal, eles agora têm uma fé pós-pascal. Em lugar de desânimo, há entusiasmo e coragem, pois experimentaram a presença do Jesus Ressuscitado. A história que começou com a Igreja se desintegrando, termina com a Igreja se reintegrando, se unindo, na paz e na alegria, pois puderam confirmar: “Realmente o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão” (v. 34). E os dois de Emaús puderam contar:“O que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus quando ele partiu o pão” (v. 36).

Rasga-se a cortina


Emaús simboliza um retrocesso. Um retorno ao passado. Por pior que fosse Jerusalém, lá era o lugar da promessa. Lá foi onde ocorreu a ressurreição. Lá era o lugar da promessa. Por mais confortável que fosse Emaús, onde tudo era comum e, portanto, praticamente mais fácil para os dois discípulos (zona de conforto), não fora o lugar escolhido por Deus. Logo, o Altíssimo não tinha compromisso com Emaús.

Essa história serve para nós como paradigma de uma célula, da Escola Bíblica Dominical, dos cultos... da Igreja. Jesus liga quatro elementos essenciais - a realidade, a Bíblia, a celebração da comunhão e a intimidade. É na união entre estes elementos que se revela a presença do Cristo Ressuscitado e a vontade de Deus. É na interação destes aspectos da vida cristã que a Bíblia se torna “Lâmpada para os pés, e luz para o caminho” (Sl 119:105). Procuremos unir estes elementos nas nossas reuniões de culto - e não apenas ou especificamente nas celebrações da Ceia -, e descobriremos como se concretiza o desejo do Salmista: “Oxalá vocês escutem hoje o que Ele diz” (Sl 95:7).

Nenhum comentário:

Postar um comentário