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terça-feira, 10 de março de 2015

EVANGELIQUÊS, VOCÊ CONHECE?

"Varão, o manto foi um fluir de Deus. Estava todo mundo no óleo e foi maior reteté. Só tinha vaso de bênçãos. O fogo desceu!" Se você é um leitor minimamente acostumado com o dia-a-dia das igrejas evangélicas, certamente já ouviu conversas deste tipo. Trata-se do evangeliquês, conjunto de jargões usados por crentes que, muitas vezes, preferem cunhar as próprias expressões para descrever suas experiências espirituais. É quase um dialeto, ininteligível para quem é do mundo - aqueles que não seguem a Jesus, também chamados de ímpios. Ou mesmo filisteus, epíteto pouco conhecido que se tornou, para muitos crentes, sinônimo de gente distante de Deus. Ah, sim - filisteus, no Antigo Testamento, eram um povo inimigo de Israel, você sabia?  O glossário evangélico é mais rico no segmento pentecostal, onde a espontaneidade dos cultos e a maior abertura para manifestações sobrenaturais criam toda sorte de situações mais inusitadas.

Criativas e meio esquisitas, as gírias evangélicas surgem para descrever situações vividas, quase sempre, nos cultos. Brados, interjeições e onomatopéias curiosíssimas são passadas de boca em boca, mesmo com bases teológicas e hermenêuticas eventualmente questionáveis. Até quem é mestre na língua portuguesa acaba franzindo a testa diante do evangeliquês. "Olha não entendi absolutamente nada", admitiu o respeitado professor Pasquale Cipro Neto, apresentador de TV e rádio e colunista. Pasquale tornou-se nacionalmente conhecido por tirar dúvidas e citar particularidades do vernáculo tupiniquim. Mas, diante de algumas gírias evangélicas que lhe foram passadas, ficou na mesma: "Sem conhecer o significado de alguns termos, não dá", resignou-se, bem humorado. 

Os jargões dos crentes


Por falar nisso, você sabe o significado e origem da palavra "jargão"? Ela surgiu entre os séculos 12 13, quando era empregada para descrever o gorjeio dos pássaros, cujo significado, evidentemente, ninguém sabia. Mais tarde, virou sinônimo do linguajar dos marginalizados, como pedintes ou ladrões, assemelhando-se ao que hoje chamamos de gírias. No século 19, com o início dos estudos sociolinguísticos, houve a curiosidade de se entender os jargões como um tipo de suplemento ao vernáculo, a língua padrão, geralmente usado por grupos específicos. Entre os linguistas, em geral, a gíria é bem aceita. Afinal, as línguas evoluem por meio dos neologismos, palavras novas que surgem e, depois de algum tempo, acabam se popularizando. 

A maioria dos termos do evangeliquês são usados espontaneamente, para definir uma característica pessoal ou um estado de espírito. Varão, para quem não sabe, é um termo empregado em algumas traduções bíblicas e significa "homem". Pois muitos irmãos se tratam assim, por varão ou varoa. Quando se fala em vaso, por exemplo, o crente pentecostal não se refere àquele recipiente para plantas. Nas igrejas avivadas, vaso é a pessoa que costuma, por meio de dons espirituais como a revelação ou a profecia, ser usada por Deus. É uma associação com algumas passagens bíblicas que falam em vasos e oleiros, sempre no sentido da plenitude espiritual. E é ao vaso que muitos recorrem para pedir oração. Ser considerado um vaso, é, portanto, motivo de orgulho para o crente.

E o que dizer do fogo? Quem ouve determinadas músicas, no evangeliquês, corinhos, vai pensar que o crente é piromaníaco. Entre os evangélicos, incendiar, nada mais é do uma singela alusão ao fogo do Espírito Santo e queima também, entretanto, o crente só queima aquilo que é ruim. Mas o fogo é o mesmo, ou seja, o do Espírito. Uma famosa música gospel fez muito sucesso no meio dos crentes e não saia dos púlpitos. 11 em cada 10 igrejas - mesmo aquelas mais tradicionais - já cantaram a canção que poderia ser tudo, menos um hino do Corpo de Bombeiros: "Incendeia, Senhor, a minha vida; Incendeia, Senhor, a tua casa; Incendeia, Senhor, a tua igreja." No evangeliquês trata-se de um clamor para que Deus encha sua casa com seu poder. Pode parecer simples, para quem conhece, mas para quem não conhece, trata-se de uma língua estranha -  e aqui, nada a ver com o dom espiritual.

Dicionário de evangeliquês


  • Avivalista - é aquele pregador que incendeia a igreja com suas mensagens de poder;
  • Cajado puro - quando o pregador é duro no seu discurso contra o pecado ou a acomodação da igreja, diz-se que ele foi cajado-puro. Afinal, os pastores [de ovelhas, animais] usam cajados para guiar e, eventualmente, castigar as ovelhas de seu rebanho. 
  • Do mundo - diz-se acerca das pessoas que não são crentes. Também designa atitudes, situações ou lugares evitados pelos evangélicos. Boate, por exemplo, é considerado um ambiente "do mundo". Esse jargão é muito usado para distinguir a música profana da música sacra. 
  • Espinho na carne - é qualquer dificuldade na vida do crente - doença, desemprego, familiar não-convertido etc. A expressão foi empregada pela primeira pelo apóstolo Paulo.
  • Fluir - muito popular, o vocábulo abrange uma série de significados. Pode ser o "fluir de Deus". quando o Senhor está se manifestando; o "fluir do louvor", quando as pessoas sentem -se abençoadas e/ou tocadas pelas músicas. E por aí vai.
  • Golias - diz-se dos desafios cotidianos ou espirituais, quando esses se apresentam em proporções maiores que as condições dos crentes em resolvê-los. Alusão à vitória do menino Davi contra o gigante filisteu Golias, história do Antigo Testamento.
  • Inimigo (opositor, adversário) - é o diabo. Eufemismo usado para evitar o uso de termos como "satanás" ou "demônio".
  • Levita - geralmente é o indivíduo que se dedica ao louvor congregacional. A tribo de Levi, um dos filhos de Jacó, os levitas, dentre outras coisas, eram os responsáveis pela música na aldeia de Israel.
  • Maná - fala-se do alimento espiritual e espiritual provido por Deus aos crentes.
  • No Espírito - diz-se do ato de pautar as atitudes de acordo com a vontade divina. Por exemplo, "falar no Espírito" quer dizer que a pessoa falou conforme orientação de Deus. E por aí vai.
  • Na carne (carnudo) - o contrário de "no Espírito", ou seja, significa que a pessoa está sendo guiada pelos seus interesses à despeito da vontade de Deus. Também classifica quem cede aos desejos sexuais.
  • Obra - é uma forma de se chamar qualquer serviço prestado à causa evangélica. Nada a ver com construção civil.
  • Ministério - são as atividades na igreja, tais como, "ministério pastoral", "ministério de louvor" e coisas assim. Nada a ver com os ministérios da organização política.
  • Ô, glória! - é um brado de entusiasmo, empregado em situações de alegria ou êxtase espiritual.
  • Repleplé (ou, sua variante, reteté) - reunião avivada, onde o poder de Deus se manifesta. Trata-se de uma onomatopéia das línguas estranhas que os pentecostais atribuem a um dom do Espírito Santo;
  • Sair do Egito (ou da Babilônia) - expressão baseada no relato do Êxodo, quando o povo de Israel foi liberto da escravidão naquele país ou ainda, no caso de Babilônia, quando foi liberto do cativeiro na cidade conhecida por seus costumes religiosos pagãos. Portanto, significa deixar para trás as coisas do mundo, ou seja, o passado.
  • Subir o monte (ou à montanha) - nada a ver com a prática de alpinismo. Trata-se de um jargão que se refere ao ato de buscar a Deus de maneira mais intensa em lugares altos. A inspiração vem do Antigo Testamento. Jesus também tinha o hábito de subir nos montes para fazer orações. 
  • Tá amarrado! - esse é bem popular e usado até mesmo por quem não é crente. Dispensa explicação.
  • Tá queimado! - idem.
  • Tomar posse (disso ou daquilo) - expressão característica da chamada confissão positiva.
  • Tá ligado - refere-se à concordância com a palavra proferida. É uma variante do clássico "amém", que significa, assim seja. 
  • Escolhido(a) - esse tem duas aplicações: 1) Sinônimo de "chamado", diz-se do crente que foi designado, separado por Deus para algum propósito específico no Reino (tem ainda a variante "eleito"); 2) Diz-se da pessoa que foi "escolhida" por Deus para um relacionamento sentimental com outra.
  • Só o sangue - refere-se àquele crente de personalidade mais difícil. Significa que o irmão é uma pessoa difícil.
  • Comer sal (com alguém) - significa ter tido convivência com determinada pessoa.
  • Fogo estranho - é o contrário do fogo de Deus e refere-se quando alguém apresenta alguma coisa no altar que não seja de procedência espiritual ou santa. Cantar uma "música do mundo" no altar, por exemplo.

Essa é só uma palinha, pois o evangeliquês é bem extenso e, no andar da carruagem, ainda vai aumentar muito, pois se tem uma coisa que nós crentes temos é muita criatividade. 

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