Que a violência seja um dos fatores mais preocupantes de nosso país, isso ninguém pode negar. Contudo, diante de números alarmantes, outros fatores nos levam à necessidade de refletirmos a respeito não apenas de nosso sistema carcerário, mas todo nosso ordenamento jurídico penal, sob diferentes óticas e diferentes maneiras de agir.
O caso que vamos relembrar em mais um capítulo da minha série jornalística Eu Não Me Esqueci, é mais um daqueles que nos levam a refletir sobre a seriedade e o peso da responsabilidade dos órgãos de imprensa, como meio não só de informação. mas também da formação de opinião das massas.
O caso que vamos relembrar em mais um capítulo da minha série jornalística Eu Não Me Esqueci, é mais um daqueles que nos levam a refletir sobre a seriedade e o peso da responsabilidade dos órgãos de imprensa, como meio não só de informação. mas também da formação de opinião das massas.
Principalmente com o advento da popularização da internet em suas mídias sociais, onde a comunicação e a informação se tornaram mais acessíveis, mais do que nunca a imprensa precisa urgentemente rever os critérios, os limites, os valores e, principalmente, a veracidade dos fatos com quais alimenta os diversos públicos alvos.
A liberdade de expressão é um direito constitucional e, portanto, deve ser respeitado.
A liberdade de expressão é um direito constitucional e, portanto, deve ser respeitado.
Ninguém que tenha um mínimo de bom senso e razoabilidade defende que haja qualquer tipo de censura.
Mais que um enorme equívoco, isso seria um pavoroso retrocesso.
Mas haver uma regulamentação para que haja mais critérios no uso das mídias sociais, é uma pauta que deve sim ser discutida.
Um crime ocorrido em meados dos anos de 1990 e que teve como cenário o Bar Bodega, um dos mais importantes points de integrantes da classe média paulistana, cujo enredo se tornou conhecido pela imprensa brasileira graças ao fato de o bar pertencer a atores da mais conhecida emissora de nosso país: Luiz Gustavo (✰1934/✞2021) e seus sobrinhos, os irmãos Tato e Cássio Gabus Mendes.
Relembrando os fatos
Reprodução da internet |
Na madrugada do dia 10 de agosto de 1996, um bando de homens armados entrou no bar Bodega, no bairro de Moema, iniciando um assalto que teria como desfecho os dois tiros a queima-roupa contra o dentista José Renato Tahan (à direita), de 26 anos (que entrara desavisadamente na choperia), e a morte da estudante de odontologia Adriana Ciola (à esquerda), de 23 anos (que estava no Bodega desde o início do assalto e foi alvejada de maneira gratuita no momento em que os assassinos fugiam).
O fato de o crime ter ocorrido num bar frequentado pela elite paulistana, de propriedade de atores conhecidos, logo levou o caso para as primeiras páginas dos jornais.
As manchetes falavam em pânico coletivo e epidemia de violência; os editoriais contestavam os defensores dos direitos humanos, descrevendo seus argumentos como catequese ideológica.
As manchetes falavam em pânico coletivo e epidemia de violência; os editoriais contestavam os defensores dos direitos humanos, descrevendo seus argumentos como catequese ideológica.
Comoção nacional
Paralelamente, os familiares de Adriana Ciola lideraram a formação do movimento Reage São Paulo, com apoio da Fiesp, da Federação do Comércio e personalidades como Hebe Camargo (✰1929/✞2012), o rabino Henry Sobel (✰1944/✞2019) e o então presidente da Força Sindical, Luiz Antonio Medeiros, promovendo passeatas, manifestações no Ibirapuera e protestos em frente ao Palácio dos Bandeirantes.
Nesse clima, com a polícia pressionada pela opinião pública, começam as primeiras prisões de suspeitos, imediatamente identificados como culpados por boa parte da imprensa: enquanto um jornal da capital anuncia
"Presos assassinos do Bar Bodega",
uma famosa colunista de outro grande diário escreve que os assaltantes são animais que matam por esporte, sentenciando:
"São veneno sem antídoto, nenhum presídio recuperaria répteis dessa natureza. A vontade de qualquer pessoa normal é enfiar o cano do revólver na boca dessa sub-raça e mandar ver" (grifo acrescentado por mim).
Os noves rapazes, todos moradores de uma favela próxima do local onde ocorreram os crimes, presos eram inocentes — sete sequer tinham antecedentes — e ficaram detidos por três meses, sendo submetidos às mais variadas torturas, para confessarem um crime que não haviam cometido.
O desserviço da impressa
Cinco dos acusados na época — Reprodução da internet |
O clímax do episódio ocorre quando, alguns meses depois da detenção dos suspeitos e de sua execração pública, a verdade começa a vir à tona: sete dos nove presos são libertados por insuficiência de provas, constatando-se que confissões haviam sido obtidas sob tortura e com a conivência de uma população sedenta de vingança. Esta verdade, porém, seria reconhecida de maneira discreta pela imprensa, que omitiu seu próprio papel na legitimação do disparate jurídico.
É aí que entra em cena um importante personagem, que seria crucial para o desfecho dessa triste história da vida real:
O "promotor herói"
Reprodução da internet |
Mas, para dar cabo a isso, um promotor do MPE/SP, analisando criteriosamente o caso, descobriu se tratar de um erro jurídico de gigantescas proporções.
Para comprovar sua tese, pede, inclusive, que o delegado refizesse diligências e, ao final, descobre que tudo não passou de articulação para dar uma resposta à sociedade paulistana.
Verificando isto, o então jovem promotor Eduardo Araújo da Silva, que à época tinha apenas 29 anos de idade, com base nas reconstituições e relatos das vítimas do assalto, pede que seja concedida a liberdade daqueles que foram acusados injustamente.
Rechaçado pela imprensa, em entrevista à Bandeirantes — atual Band —, o promotor reforçou seu trabalho. Mais tarde, depois de algum tempo, todos os verdadeiros culpados foram presos, recebendo sentenças entre 23 e 48 anos de prisão.
Da Prisão ilegal Mesmo passados anos desse acontecimento, o mais interessante é que o crime do Bodega foi devidamente julgado, tendo seus verdadeiros autores recebido a coerção estatal.
A prisão do menor chamado Cleverson, então com 14 anos, aquele que teria sido considerado o chefe da quadrilha, sob o aspecto legal, é uma clara afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente, haja vista que era adolescente, não devendo ter sido preso, mas conduzido à instituição afim.
Este seria um dos primeiros erros jurídicos a serem cometidos pelo Estado. Além da prisão de Cleverson, os demais que foram envolvidos no caso também tiveram reconhecida a prisão indevida. Mas, mesmo tendo reconhecida a prisão indevida pelo TJ/SP, o Estado de São Paulo entra com recurso extraordinário junto ao STF (RE 385943/SP).
Realese dos acontecimentos
Manchetes dos jornais da época — Reprodução da Internet |
- 10 de agosto — Em um assalto por volta das 3h ao bar Bodega, em Moema (zona sul de SP), são mortos a estudante Adriana Ciola e o dentista José Renato Tahan.
- 25 de agosto — São presos cinco suspeitos de participar do grupo acusado de assaltar o Bodega, o menor C.A.S, 16, Valmir Vieira Martins, 20, Luciano Francisco Jorge, 20 e Natal Francisco Bento dos Santos, 18.
- 25 de setembro — É preso Marcelo Nunes Fernandes, 23. Durante as investigações, mais três suspeitos são envolvidos.
- 24 de outubro — O promotor Eduardo Araújo da Silva se manifesta contra a manutenção da prisão, e sete suspeitos são soltos por ordem do juiz-corregedor Francisco Galvão Bruno.
O promotor alega falta de provas e suspeita que os acusados confessaram sob tortura. O então delegado titular do 15º DP, João Lopes Filho, nega as acusações. Dois dos acusados permanecem presos, mas por outros crimes.Marcelo Nunes Fernandes por ter fugido da cadeia onde cumpria pena por roubo e C.A.S. por estar sendo acusado de envolvimento em roubo de carro. O inquérito sobre o roubo é enviado ao DHPP para que as investigações sejam reabertas pela polícia.
- 11 de novembro — A polícia prende dois acusados de ser os verdadeiros responsáveis pelo crime -Silvanildo Oliveira da Silva, 36, e Sandro Marcio Olímpio, 24, reconhecidos por testemunhas.
O livro
Como dito acima, mesmo sendo adolescente, Cléverson é conduzido ao 15º DP, onde é torturado a confessar o crime e entregar aqueles que seriam seus comparsas.
Sob tal ato,confessa o crime e vai dando nomes aleatórios que vinham à sua mente, de conhecidos a amigos.
Passado algum tempo, com massificada divulgação nos veículos de mídia (de todas as emissoras de alcance nacional), estava aberto o espetáculo.
É por meio da trajetória desse jovem delinquente, Cléverson, atormentado e em busca de reconciliação com a vida familiar, que Carlos Dorneles consegue dar dramaticidade ao seu livro, Bar Bodega — Um Crime de Imprensa sem prejuízo do rigor documental.
Conceituado repórter, tendo já trabalhado nas principais emissoras da TV, como Globo e Record, o jornalista gaúcho acompanhou nuances da biografia de Cléverson e mostra não apenas como a exclusão pode levar à criminalidade — mas como a condição de marginal pode levar à acusação por crimes não cometidos e à supressão dos direitos jurídicos mais elementares.
Mostra, ainda, como o caso Bodega arrebatou as vidas de outros rapazes da periferia paulistana, jovens trabalhadores inocentes que, em meio a acusações e ao terror policial, tornam-se também delatores, alimentando a violência em espiral.
O autor
Carlos Dorneles nasceu em Cachoeira do Sul (RS) em 1954. Foi repórter da TV Globo de 1983 a 2008, após trabalhar na Folha da Manhã, no Zero Hora e na RBS-TV, em Porto Alegre.
Foi correspondente internacional em Londres (1988-1990) e Nova York (1991-1992).
Foi correspondente internacional em Londres (1988-1990) e Nova York (1991-1992).
Logo após sair da Globo, ele começou a trabalhar na Record, onde ficou de 2008 até 2015.
Também é autor de "Deus é inocente – A imprensa, não", publicado pela Editora Globo e classificado em terceiro lugar na categoria Reportagem e Biografia do Prêmio Jabuti 2003.
Conclusão
Mini-documentário sobre o caso, exibido pela TV Cultura
Os inocentes comemorando suas solturas — Reprodução da Internet |
Quando finalmente são identificados e processados os autores dos assassinatos, verifica-se que
"nas matérias telegráficas que a imprensa publicou, nenhum comentário sobre o fato de que os acusados anteriores eram negros ou mulatos, e não brancos como os verdadeiros assaltantes" [trecho do livro Bar Bodega — Um Crime de Imprensa].Ou seja, se num primeiro momento a polícia respondera aos apelos das manchetes, a imprensa foi pautada pela polícia e pelo preconceito vigente na sociedade brasileira.
Como observa Dorneles, essa mácula na história do nosso jornalismo foi imediatamente identificada pelo juiz que proferiu a sentença (reproduzida no livro), mas suas referências à imprensa jamais foram publicadas ou sequer citadas pelos veículos de comunicação.
Da mesma maneira, os jornais não acompanharam o destino dos acusados após o caso do bar Bodega — e por isso não souberam que alguns deles se sentem mais indefesos diante da imprensa do que da polícia, ou que, após atingir a maioridade, Cléverson voltara para a casa do pai e havia conseguido emprego, mas foi assassinado uma semana antes de completar 20 anos.
Um crime que nunca foi investigado pela polícia e nunca foi manchete de jornal — mas que Carlos Dorneles nos apresenta como o desfecho de um episódio imprescindível para se analisar o papel da imprensa.
Tenho certeza absoluta que muitos dos que irão ler este artigo, já não se lembram mais deste triste episódio das páginas da nossa vida real (muitos são os que nunca nem ouviram falar desse caso), mas eu, eu não me esqueci!
Ao Deus Perfeito Criador, toda glória.
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E nem 1% religioso.
