Em 20 de novembro comemora-se no Brasil o Dia da Consciência Negra. Mas você sabe o motivo de escolha dessa data?
Foi nesse dia, no ano de 1695, que morreu Zumbi dos Palmares. Este foi a liderança mais conhecida do chamado Quilombo dos Palmares, que se localizava na Serra da Barriga, atual estado de Alagoas. A fama e o símbolo de resistência e força contra a escravidão mostrado pelos palmarinos fizeram com que a data da morte de Zumbi fosse escolhida pelo movimento negro brasileiro para representar o Dia da Consciência Negra. A data foi estabelecida pela Lei 12.519/2011, promulgada no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Outro motivo para a escolha dessa data foi o fato de que no Brasil o fim da escravidão é comemorado em 13 de maio. Nesse dia, no ano de 1888, a
princesa Isabel assinou a
Lei Áurea que abolia a escravidão no Brasil. Porém, comemorar o fim da escravidão em uma data em que uma pessoa branca e pertencente à família real portuguesa, a principal responsável pela escravidão no Brasil, assinou uma lei pondo fim ao cativeiro faz parecer que a abolição foi feita pelos próprios escravistas. Faz com que a abolição fosse apresentada como um favor dos brancos aos negros.
A escolha do dia 20 de novembro serviu, dessa forma, para manter viva a lembrança de que o "fim da escravidão" foi conseguido pelos próprios escravos, que em nenhum momento durante o período colonial e imperial deixaram de lutar contra a escravidão.
Quilombo social
Os quilombos não deixaram de existir quando Palmares foi destruído sob o comando do bandeirante paulista
Domingos Jorge Velho. Vários outros quilombos foram formados nos duzentos anos após o fim de Palmares.
Mesmo nos anos finais da escravidão a ocorrência de fugas em massa de escravos das fazendas, a ocupação de terras e a realização de rebeliões foram muito importantes para que a Lei Áurea fosse assinada.
O fim da abolição não representou também o fim dos problemas sociais para os escravos libertados. O racismo e a resistência à inclusão dos negros na sociedade brasileira após a abolição foram também um motivo para se escolher o 20 de novembro como data para se lembrar dessa situação.
A resistência dos afrodescendentes não se fez apenas no confronto direto contra os senhores e forças militares, ela também ocorreu no aspecto religioso e cultural, como no candomblé, na capoeira e na música. Relembrar essas características culturais é uma forma de mostrar a importância dos africanos escravizados e de seus descendentes na formação social do Brasil.
São esses alguns dos objetivos da comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra em 20 de novembro. Mas será que nós, negros, cuja participação na formação cultural, social e econômica do Brasil é de suma importância, merecemos "ser lembrados" apenas em um dia do ano? Não, por isso escrevo esse artigo afirmando que
Todo dia é dia do negro
A história da escravidão sob a ótica de um negro
Cidadãos, famílias, grupos, e até sociedades inteiras foram retirados de seus países e seus continentes, para servir a seus semelhantes, cuja única diferença eram as características físicas e culturais. Servir de modo subumano, cruel, humilhante. Servir da forma mais vil que se pode imaginar. A escravidão trouxe consigo o questionamento das diferenças, o preconceito, o racismo e a discriminação.
Depois de atravessar fronteiras, ultrapassar seus limites, suas histórias e suas culturas, os negros sofreram humilhações, castigos, violações e violências. Após séculos de subserviência, observa-se, hoje, uma melhora dessa situação se levarmos em conta a época logo após a abolição.
Novas leis, inexistentes na época, garantem os direitos humanos aos negros. Mas não é apenas a legislação que tem que fazer esse papel, é também a sociedade civil. Não são apenas as leis que precisam garantir esses direitos, são os cidadãos. E não é com hipocrisia que se vai resolver o problema. Os negros não precisam e não querem ser tolerados, querem sim, ser aceitos e respeitados.
Durante toda sua trajetória, desde que chegaram ao Brasil como escravos, eles lutam, de todas as formas, pelo reconhecimento coletivo e individual, e pelo pleno exercício de seus direitos cidadãos. Neste artigo procuramos fazer um panorama da trajetória dos negros desde o motivo pelo qual aportaram em terras verde-amarela, passando pela tormenta da escravidão, pela falsa ideia de liberdade, pela violação e conquista de seus direitos, além do problema enfrentado com o preconceito, até chegarmos nas possibilidades de novos rumos.
A trajetória do negro no Brasil
"...Vida de nego é difícil, é difícil como quê!.."
Essa frase, da música "Retirantes", de Dorival Caymmi (que ficou conhecida por ser tema de abertura da novela "Escrava Isaura", adaptação de Gilberto Braga, exibida em 1976 pela Rede Globo), traduz bem a trajetória do negro no Brasil desde a época colonial, em que eram trazidos ao país como mão-de-obra escrava para servir nas lavouras de cana-de-açúcar.
Tanto no Brasil-Colônia (1500/1815), quanto no Brasil-Império (1822/1889), a escravidão foi a "solução" encontrada para resolver o problema da falta de braços na agricultura da cana.
"(...) do ponto de vista do senhor, esses escravos eram iguais a máquinas de trabalho" (Moura, 1972, 103).
Por ser um trabalho duro, o plantio da cana exigia braços, muitos e fortes. Foram buscar essa força nos negros africanos, dando início ao que se chamou de tráfico negreiro. Para justificar a exploração do trabalho dos negros traficados e obrigá-los a trabalhar, deu-se início à violação de seus direitos, embora não houvesse consciência dessa violação, já que a Declaração dos Direitos do Homem ainda não existia.
"(...) dizia-se que não eram totalmente humanos, que só trabalhavam à base de chicote e que precisavam ser domesticados para deixar seus costumes bárbaros, semeando o racismo no coração dos homens brancos" (Zaluar, 1996, p. 55 - grifo meu).
Dessa forma foram chegando, deixando para trás suas famílias, suas histórias, suas culturas e suas origens. Por outro lado, lutavam e se esforçavam para manter a hierarquia de suas tribos, restabelecer seus valores e acabar com a submissão imposta pelos brancos colonizadores.
A cor da história
"As famílias eram dissociadas, os amigos separados, impedindo, assim, cuidadosamente, uma cooperação que visasse à melhoria (...) Os senhores de escravos da América haviam planejado com precisão, quase científica, seus sistemas, a fim de manter o negro indefeso, emocional e fisicamente" (Luther King, 1968, 26).
Sendo, por si só, um ato de violência, a partir do momento que retirava a liberdade dos negros, o período da escravidão escreve um dos piores e mais vergonhosos capítulos da história mundial e brasileira.
Um período no qual seres humanos, por serem de outras etnias e terem características físicas e culturas diferentes das dos senhores coloniais, eram subjugados, humilhados, tratados como objetos, obrigados a trabalhar para sustentar luxos e riquezas das quais não podiam desfrutar. Torturados, açoitados e maltratados, mulheres eram seviciadas sexualmente para satisfação da tara insana de "seus senhores", não tinham direitos nem regalias, porém, eram responsáveis pelos delitos que cometessem. Nessas horas, a lei funcionava em igualdade para todos.
"Como propriedade de outra pessoa, sujeito a seu poder, ele era legalmente morto, sem nenhum direito político ou civil, os 'direitos da cidade'. Não tinha personalidade jurídica como os libertos e os nascidos livres, embora fosse condenado pelos crimes que cometesse" (Zaluar, 1996, p. 55).
Mesmo tendo interesse em preservar a vida dos negros dos quais eram donos, muitos senhores matavam seus escravos por excesso de trabalho ou de castigos. Essa era a realidade em que vivia o negro naquela época. Mas, a exemplo dos escravos, os senhores também deviam obedecer as leis.
"(...) a disciplina do senhor também era regulada. Estavam limitados por lei os açoites (cinquenta chicotadas de cada vez) com que o senhor podia punir seus escravos, caso estes lhe desobedecessem" (Zaluar, 1996, p.57).
Apesar da tais leis "a favor do negro" existirem, nem sempre eram aplicadas, quando dirigidas aos senhores coloniais. Apesar dos limites aos senhores serem mínimos, muitos crimes eram cometidos.
"Como a Justiça das províncias não o punia sistematicamente, o senhor acostumou-se com a impunidade" (Zaluar, 1996, p.58).
Apesar de viver sob forte pressão e cruéis castigos, os escravos sempre criavam maneiras de escapar da vigilância, do medo e da passividade. Segundo o historiador Clóvis Moura, os escravos tinham a luta de movimento como sua aliada, e o sedentarismo, a luta de posição, como adversária (1972, p.231). Os mais “militantes”, que trabalhavam nas plantações de cana-de-açúcar, eram os mais explorados e castigados. Mas com a aplicação da política do medo ou, às vezes, da boa vizinhança, a escravidão também tinha seus momentos de calmaria. Isso acontecia quando os escravos obedeciam cegamente a seus senhores e aceitavam tudo com passividade, aceitando uma ou outra forma de persuasão.
"ao menor sinal de revolta ou discordância, o senhor mostrava sua crueldade e sua ferocidade, com toda a violência dos instrumentos de tortura e morte a seu dispor. Em outras palavras, a escravidão só funcionava quando conseguia implantar o medo no coração do escravo. Castigar cruelmente até matar tinha o efeito de espalhar o medo e servir de exemplo para quem pensasse em se revoltar" (Lara, 1988 apud Zaluar, 1996, p.59).
O medo sempre esteve presente nos dois lados. Os escravos temiam a crueldade dos donos, que por sua vez, temiam a rebelião dos escravos. Por isso eram rigorosos na hora da punição. Alguns pregavam a ideia de se comprar negros jovens, mais fáceis de domesticar.
"Já naquela época as crianças eram usadas para manter uma ordem social injusta" (Zaluar, 1996, p.61).
Divisões entre os próprios escravos também traziam diferenças de tratamento. Os negros eram divididos entre os domésticos, mais próximos aos senhores, dóceis, submissos, e por isso mais valorizados - o que lhes assegurava o paternalismo senhorial - e os que trabalhavam na agricultura da cana, mais rebeldes, e consequentemente, mais castigados.
Havia ainda os escravos urbanos que trabalhavam nas ruas, em ofícios específicos como carpinteiros, ferreiros, padeiros, sapateiros, carregadores e até vendedores de doces e água. Com esses trabalhos, de certa forma independentes, sem a vigilância acirrada das lavouras, esses escravos tinham mais facilidade de juntar dinheiro para comprar suas alforrias. Mulheres e mestiços de peles mais claras também tinham maiores chances de serem libertos.
Os que não tinham esperanças de comprar a liberdade fugiam na primeira oportunidade. Muitos morriam ou eram recapturados. Os que tinham mais sorte se agregavam aos quilombos, grupos formados pelos fugidos que se organizavam para se defender e sobreviver. Esses grupos eram, geralmente, violentos. Precisavam dessa violência para se defender e para se vingar contra os que os escravizaram e torturaram.
"Não viviam, porém, esses escravos, em simples passividade de fujões. Pelo contrário: tinham um espírito ofensivo surpreendente, atacando estradas, assassinando capitães-do-mato, feitores etc, recolhendo-se em seguida para o recesso das matas que tão bem conheciam" (Moura, 1972, 123).
Pequenos grupos volantes foram formados para atacar as estradas, roubar mantimentos e objetos para os quilombos, cujas produções limitavam-se às lavouras. Eram as guerrilhas, uma resistência quilombola para manter as milícias distantes. Usando algumas táticas e muita astúcia, esses refugiados lutaram e conseguiram sobreviver até a extinção da escravatura.
Os negros das guerrilhas dividiam-se em pequenas aldeias, fáceis de abandonar com a aproximação das milícias. Tinham fortes ligações com os escravos dos engenhos, o que garantia os mantimentos, tornando desnecessário o plantio de lavouras. Isso ajudava a manter o grupo e sobreviver nas matas. Com tamanha determinação, conseguiram resistir até a "tão esperada liberdade". As mudanças advindas com essa liberdade, porém, não tiveram o efeito desejado. Falta de trabalho, fome, preconceito. Essa passou a ser a realidade dos ex-escravos no país.
Primeiros passos após a liberdade
Na época do Brasil-Império, os negros já eram homens livres, porém, excluídos dos direitos políticos e civis. A Constituição da época garantia a liberdade, mas a vida mostrava que eram duplamente preteridos.
"Viviam em ínfimas camadas sociais a que também estavam ligados por uma linha de cor" (Luther King, 1968, 31).
No Brasil, direitos políticos e civis só eram permitidos aos que tinham posses e boa renda. Homens pobres, negros, brancos ou mestiços em sua maioria, eram obrigados a ter passaporte para viajar dentro do país e assinar termos de segurança.
"Eram todos considerados perigosos vadios e estavam permanentemente sob vigilância" (Guimarães, 1982; Mello e Souza, 1986 apud Zaluar, 1996, p.62).
Na época do Império, a vadiagem e a mendicância se tornaram objetos de punição, os chamados "crimes policiais". Logo após a abolição entrou em discussão uma lei de "repressão à ociosidade", que rezava que todos os ociosos seriam levados a colônias agrícolas para cumprir penas de até três anos. Dessa forma se "resolveria", pela segunda vez, o problema da falta de mão-de-obra na lavoura da cana, já que o trabalho escravo não mais existia.
Começou-se, então, uma verdadeira caça aos "preguiçosos". No caso dos negros era fácil difundir o mito de que eram vadios e preguiçosos. Simplesmente esqueciam o passado de trabalho árduo dos escravos em todos os setores de produção.
"Esse mito ainda hoje é invocado para explicar a prosperidade do Sul do país, para onde foram a maioria dos imigrantes brancos, e a pobreza do Norte, onde está a maior parte dos brasileiros miscigenados" (Zaluar, 1996, p.66).
Os desafios de ser negro no mercado de trabalho: nada é tão novo quanto se pensa
Mas a força dessas afirmações se desfaz com a história. Como na época da escravidão os brancos não precisavam trabalhar, foram os negros que desenvolveram e guardaram as técnicas das profissões artesanais, embora, na condição de ex-escravos, fossem, geralmente, preteridos na hora das seleções de empregos.
"Além disso, a memória recente da escravidão os fazia desconfiar de qualquer patrão. Eles recusavam não tanto o trabalho mas a disciplina do trabalho que os obrigava a obedecer a um patrão" (Chaloub, 1986 apud Zaluar, 1996, p. 84).
Os que aceitavam trabalhar em empresas e fábricas disputavam vagas com os brancos, tendo contra eles, o preconceito. As vagas eram poucas para o número de trabalhadores. A competição instalou-se entre brasileiros (negros e mulatos) e estrangeiros, que passaram a controlar certas atividades e ter a preferência de comerciantes e industriais.
As mulheres negras continuaram como domésticas, onde sempre foram maioria, embora, as famílias mais ricas dessem preferência às empregadas brancas. As crianças também ajudavam no sustento da família com a venda de balas e doces – como até hoje vemos nas ruas e sinais das grandes cidades. Alguns negros foram trabalhar na estiva, outros, nas construções civis. Mas, por conta desse preconceito infundado, nem todos conseguiam trabalho. Muitos passaram a impor suas próprias regras, exercendo pequenas profissões nas quais eram especializados e podiam impor suas próprias regras e horários. Dessa forma, ganharam as ruas.
"A cidade povoou-se de tipos como o vendedor de passarinho, de orações e de músicas; o catador de rótulos, selos de cigarro e papel; o caçador de gatos (vendidos como coelhos), o trapeiro, o tocador de realejo, o músico ambulante e outros" (Salvatore, 1990 apud Zaluar, 1996, p. 85).
Vieram as reformas urbanas com o objetivo de limpar as cidades e, com elas, as leis que regulamentavam o trabalho autônomo. Isso criou muitas dificuldades para os negros que trabalhavam nas ruas. Regulamentar os ofícios era caro e demorado. Passaram a exigir licenças, excesso de documentos, atestados fiscais e altas taxas.
Por causa da grande carga, muitos desses trabalhadores partiram para o jogo e a prostituição, entre outras ocupações marginais. Peixes pequenos, dentro de grandes organizações formadas e comandadas por portugueses, os que menos sofriam acusações de contravenção.
"A impunidade dos empresários do crime é tão velha quanto a República brasileira" (Zaluar, 1996, p. 93).
No entanto, eram os negros que sempre iam presos por vadiagem e desordem. Brasileiros pobres e sem direito de defesa, taxados de vadios, enquanto os estrangeiros continuavam sendo considerados bons trabalhadores (Zaluar, 1996, p. 85).
A República preferiu apostar na violência para mudar a sociedade, e os preferidos pela polícia eram os pobres, negros e mulatos. Nessa época a polícia prendia muita gente e a população se admirava, achando que a cidade ficaria livre da desordem e do crime.
A proposta das reformas urbanas deu-se na chamada Belle Époque, quando se pensava fazer, do Brasil, um país europeu, "civilizando" a nação com costumes do velho mundo.
"(...) a assumida superioridade da 'cultura européia' serve ao mesmo tempo de comprovação empírica da superioridade biológica dos brancos e de referência para a avaliação dos diversos graus de inépcia dos não-brancos para a vida civilizada" (Hofbauer, 1999 apud Costa, 2004, 29).
Os cortiços também deveriam ser retirados dos centros das cidades. Mas a única coisa que consegui-se com a retirada dos cortiços dos centros das cidades foi o surgimento de favelas, com rápido crescimento.
Para enfatizar a europeização, as culturas e tradições afro-brasileiras, vistas como atraso cultural não eram permitidas. Nos bairros populares, por exemplo, festas e batucadas promovidas por negros incomodavam a população branca porque sempre acabavam em sessões de candomblé. Por esse motivo, o samba já nasceu proibido pela polícia. Apenas a cultura européia representava o progresso.
O objetivo da repressão era separar o trabalho da vagabundagem, sem perceber os diferentes trabalhos que contribuíam para o bem estar comum. Não levavam em conta que nem todo mundo pensava da mesma maneira e os hábitos não poderiam ser mudados à força.
O que é o racismo senão a suposição de superioridade de uma raça entre as demais a partir de características físicas selecionadas arbitrariamente? Com a chegada dos negros trazidos a força como escravos, as diferenças raciais foram motivo de subjugação e hierarquização de poder, capacidade e inteligência, restando aos negros, a ponta final dessa corda.
Essa hierarquização deixou consequências sócio-econômica desastrosas, assim como diferenças culturais. No que se refere ao quesito sócio-econômico, em uma estrutura desigual de oportunidades fica evidente a limitação de chances de sucesso para os que ocupam posições sociais subordinadas. Já no que diz respeito à dimensão cultural, o racismo se manifesta no dia-a-dia, como formas bizarras de comportamento (humilhação e insulto), e até por exclusão social. Como após a abolição não houve a desconcentração de poder econômico, nem os negros puderam exercer seus direitos políticos, o poderio, nas mãos dos ex-senhores, continuou permitindo a violação dos direitos dos ex-escravos. Dessa vez não eram os direitos coletivos que eram atingidos, mas os direitos civis individuais.
"A escravidão e o colonialismo, fenômenos estreitamente ligados, geraram e cristalizaram estereótipos, preconceitos e visões do mundo e da sociedade que vêm-se transmitindo culturalmente aos que se julgam descendentes dos ex-senhores e das antigas elites colonialistas nas ex-metrópoles.
São estes estereótipos, e naturalmente a defesa de interesses concretos que até hoje existem derivado daquelas situações passadas, que provocam comportamentos nas esferas coletivas e individuais que violam direitos políticos, econômicos e sociais, de que são vítimas os Estados que sucederam as colônias e os descendentes dos escravos e nativos" (Guimarães, 1998, 1035).
Historicamente falando, a escravidão e o colonialismo foram os sistemas de violação de direitos humanos mais graves, apesar de “não oficial”, já que, na época, a Declaração dos Direitos Humanos não existia. Embora já superados, esses fatores ainda deixam seus rastros, pois persistem, até hoje, situações, pontuais ou não, de racismo e preconceito.
"Conforme reconhecido pela declaração da ONU sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986, as 'violações maciças e flagrantes dos direitos humanos' são resultado do 'colonialismo, neocolonialismo, apartheid, de todas as formas de racismo e discriminação racial, dominação estrangeira e ocupação, agressão e ameaças contra a soberania nacional, à unidade nacional e à integridade territorial e de ameaças de guerra', processos sociais que devem ser superados como condição para a busca da paz" (Bevenuto, 2001, p. 85).
Ainda hoje a legislação brasileira reforça a discriminação quando permite que a concentração de poder político eleja os legisladores, em sua maioria, representantes dos próprios grupos que concentram poder econômico e social, entre outros. Isso cria um círculo vicioso, difícil de ser quebrado.
Dessa forma, quem concentra o poder tem o respaldo do Estado, e faz com que as leis contribuam ainda mais para essa concentração, que comete, por sua vez, enormes disparidades, acentuando as perdas dos grupos subordinados. Mesmo que um ou outro indivíduo consiga furar a regra e ascender individualmente, isso seria uma vitória individual, não representativa da raça negra em termos quantitativos e/ou qualitativos, no que diz respeito à luta contra o preconceito.
"A ascensão social não elimina a discriminação racial, ainda que possa reduzi-la ou suavizá-la" (Kant Lima, 1995 apud Cardoso de Oliveira, 2004, p. 81).
É fato que a concentração de poder, assegurada pela legislação, reforçou, no decorrer da história, uma situação de inferioridade, trazendo à tona diferenças entre indivíduos e grupos sociais. Nasceram os estereótipos que "justificam" e perpetuam a discriminação e a concentração de poder, inclusive entre os próprios oprimidos. Assim, vão se confirmando as violações dos direitos desses grupos e a impunidade dos violadores.
Para se começar a pensar no fim do preconceito, é necessário promover a desconcentração desse poder, através execução de políticas públicas.
"É, portanto, na arena política mais ampla e coletiva que a luta mais eficaz pelos direitos humanos pode vir a triunfar de fato, isto é pode eliminar as causas mais profundas das violações" (Guimarães, 1998, 1044).
Para se ter uma ideia do preconceito enfrentado pelos negros em dias atuais, basta-se recorrer ao que acontece, diariamente, na política trabalhista, onde se nota, claramente, a desigualdade de oportunidades.
Se por um lado, os cargos mais especializados, como atividades intelectuais e/ou manuais, com altos índices de comprometimento psicossocial e cultural e políticas de crescimento nas empresas são ocupados por pessoas de cor branca, o mesmo não acontece com as pessoas de cor negra, que ocupam, geralmente, trabalhos não qualificados, ou semiqualificados, exercendo subcontratos temporários, sem nenhuma garantia ou estabilidade, sujeitos a outros salários (bem mais baixos) e outras regras de trabalho (Ianni, 2004, p. 81).
Para melhorar essa situação, o ideal seria resolver o problema na base, aumentando as chances de inclusão social através do incentivo à educação e o ingresso na universidade. O atual governo do Brasil instituiu cotas para a inclusão do negro no ensino superior. Por um lado, essas cotas têm sua conotação positiva, pois, como diria Cardoso de Oliveira, seu objetivo não é a inclusão direta, mas um benefício camuflado por trás disso tudo.
"(...) em vez de acionar as 'cotas' como política de inclusão social direta, dando acesso à renda através da entrada imediata na Universidade, o objetivo precípuo da medida seria provocar uma mudança nas atitudes dos atores, para que se tornem mais críticos à discriminação e ao filtro da consideração" (2004, p. 87).
O percentual mínimo proposto para as cotas não teria nenhuma relação com a proporção de representantes negros na sociedade. O objetivo seria apenas chamar a atenção das pessoas para a discriminação, compartilhando a experiência e provocando a opinião pública.
"A ideia seria de que o estabelecimento de um percentual mínimo de vagas para negros nas Universidades públicas faria com que a discriminação racial, e a sua inaceitabilidade numa sociedade democrática, fosse dramatizada periodicamente (quando da realização dos vestibulares), viabilizando a internalização do problema através da mobilização dos sentimentos dos atores em segmentos expressivos da sociedade e contribuindo, assim, para a rearticulação entre esfera e espaço públicos no Brasil, pelo menos no que concerne à crítica a nossas práticas cotidianas de discriminação cívica contra negros e cidadãos desprivilegiados de uma maneira geral" (Cardoso de Oliveira, 2004, p. 88).
Por outro lado, a conotação negativa das cotas estaria no fato que ela coloca o negro numa posição intelectual de inferioridade, a partir do momento em que é criada uma reserva de vagas destacada no vestibular, para pessoas que, teoricamente, não teriam chances de sucesso se dependessem da própria capacidade, devido, ou não, a qualidade do estudo secundário que receberam.
Mesmo que as médias dos cotistas sejam iguais, ou até mais altas do que as dos não-cotistas, a ideia de incapacidade seria implantada, uma vez que as médias não são divulgadas para a sociedade, nem mesmo comentadas.
"Nada é mais significativo para o mercado e a sociedade abrangente do que o desempenho acadêmico do aluno ao longo do curso, e a curta experiência com 'cotas' no Brasil tem demonstrado que os estudantes beneficiados têm tido desempenho igual ao superior aos demais" (Cardoso de Oliveira, 2004, p. 90).
Pesa também o fato de que, um negro que tem a total ciência de sua capacidade para passar no vestibular sem precisar apelar para a cota acaba tirando a vaga de um outro cotista, caso, por ideologia, prefira optar por esse meio. Caso ele não recorra às cotas, seria, ao invés de um, dois negros na universidade, já que o negro não-cotista deixaria sua vaga em aberto para outro. Existe ainda o fato de que negros e brancos, vindos de escolas públicas disputam, em pé de igualdade, às vagas universitárias. Aí estaria o cerne do problema.
Se adotássemos uma política que investisse mais na educação elementar, criando-se condições para que todo estudante oriundo das escolas públicas tenha condições de competir em igualdade com os estudantes de escolas privadas, aumentaria o número de estudantes negros nas universidades, levando em conta que são maioria nessas escolas, até por conta da própria história da raça. Dessa forma teriam benefícios reais, já que eles entrariam nas universidades públicas, por mérito próprio, sem precisar das cotas, que deixariam margens quanto à real capacidade do estudante negro.
Além do mais, como, no Brasil, o que define a etnia de uma pessoa é, nada além da declaração pessoal de cada um, é difícil controlar fraudes, em que candidatos brancos declarem-se negros apenas para terem aumentadas suas chances de ingresso às universidades públicas, ou ainda negros que não se inscreveriam nas cotas por vergonha de assumir a própria origem.
Depois da abolição da escravatura, os negros libertos no Brasil não tiveram problemas de segregação em locais públicos como aconteceu nos EUA até a década de 60. No Brasil também nunca foi proibido o casamento entre pessoas de etnias diferentes. Com a maior população negra fora da África, o país nunca separou, legalmente, grupos por cor. Por outro lado, os negros brasileiros enfrentaram, e ainda enfrentam, outras formas de discriminação e preconceito, mais sutis, embora igualmente objetivas. Eles não tinham os direitos, coletivos ou individuais, negados, porém, de uma forma menos aparente, eram vítimas do insulto moral.
Não se trata de insultos raciais, mas de situações nas quais o preconceito está embutido em atitudes racistas, não se traduzindo em evidências materiais. São situações nas quais aquele que respeita os direitos de outro cidadão não está convicto de que, em seu ato, reconhece a dignidade do outro, ou dos direitos àquela circunstância. De fato, o racismo representa uma das mais fortes violações dos direitos humanos a partir do momento em que gera desigualdade na liberdade subjetiva e material dos cidadãos.
Estudos sobre o Brasil destacam a presença do racismo no país em dois momentos: nas oportunidades sociais, que mostram o desfavorecimento do negro, e nas experiências cotidianas, que trazem sinais de humilhação e inferiorização em diversos contextos. Na verdade isso dá margens para uma pergunta que venho me fazendo há algum tempo: qual o pior tipo de preconceito? O preconceito direto e escancarado dos EUA ou o preconceito camuflado e hipócrita do Brasil?
Ativistas norte-americanos chegaram a acreditar que a miscigenação brasileira e a cordialidade entre os diferentes grupos raciais pudessem ser exemplo para combater o racismo nos EUA.
"As primeiras pesquisas sobre as relações raciais produzidas por pesquisadores norte-americanos (...) confirmaram o diagnóstico favorável dominante, concluindo que o Brasil havia efetivamente logrado construir uma sociedade de classes multirracial e competitiva" (Costa, 2004, p. 34).
Estudos da Unesco mostraram, contudo, a continuidade do desfavorecimento da raça negra, que anos após o fim da escravidão, continuavam ocupando trabalhos menos qualificados e recebendo baixos salários.
"A chamada 'democracia racial' brasileira mostrava-se não mais como um modelo a ser seguido, mas como uma fina camada de cordialidade ideológica a recobrir a dura realidade da opressão dos afro-descendentes" (Costa, 2004, p. 34).
As relações étnicas no Brasil chegaram a ser tomadas como solução para a materialização dos direitos humanos em todo o mundo, mas a história resolveu mudar de rumo e os norte-americanos descobriram seu próprio caminho para combater o racismo, que buscaram, mais tarde, ensinar aos brasileiros. O movimento de direitos civis americanos e as lutas anti-racistas dos EUA passaram a ditar as formas de ação coletiva para reverter a discriminação brasileira. Intensificaram-se também as pesquisas de desigualdades de oportunidades para brancos e negros.
"As raças no Brasil, não se limitam à oposição entre brancos e negros (...) Como disse o pesquisador Oracy Nogueira, o racismo brasileiro é de marca, e não de origem. Uma pessoa pode ser filha de negros mas ser considerada branca em virtude da cor de sua pele e de outras características raciais" (Zaluar, 1996, p.66).
A discriminação racial no Brasil é apenas uma pequena mostra da discriminação cívica no país. O maior problema está no racismo "oculto".
"Nesse sentido, características como as do estilo indireto da discriminação, da vergonha do preconceito, e das ambiguidades da classificação racial têm sido comparadas à violência explícita da discriminação racial nos EUA, à existência do apartheid até os anos de 1960, e à nitidez da classificação racial, onde a chamada color line pode ser estabelecida com precisão" (Cardoso de Oliveira, 2004, p. 81).
É que, além da discriminação ser uma prática ilegal, com penalidades previstas em lei, há também o aspecto negativo no plano moral. Assim, mesmo quando não se quer esconder o preconceito intencionalmente, ele vem de maneira implícita, irrefletida. E essa falta de consciência sobre atitudes preconceituosas eventualmente esboçadas não é de todo surpreendente.
"Uma das características das práticas de discriminação indireta vigentes no Brasil é que ela costuma aparecer de maneira dissimulada, sendo por vezes de difícil identificação mesmo para aqueles que sofrem na pele os seus efeitos" (Cardoso de Oliveira, 2004, p. 82).
Além da discriminação, existe o preconceito. Ambos são práticas associadas que caracterizam o racismo. A associação entre a discriminação indireta e o preconceito demonstra como um pode esconder o outro, especialmente quando aceitar o negro é um ato aparente e o preconceito irrefletido continua presente, levando à negação de direitos.
Quem reconhece o outro como cidadão igual tem ainda que ter discernimento para demonstrar que o faz porque acredita de fato que ele o é, e que tal cidadão é merecedor deste reconhecimento. A falta de reconhecimento do valor de um indivíduo, ou de um grupo, pode constituir uma agressão.
"Reconhecer apenas por imposição legal pode ser, em si mesmo, um ato ofensivo. Deste modo, o reconhecimento ou a consideração poderia ser definido como um direito moral, de caráter eminentemente recíproco" (Cardoso de Oliveira, 2004 apud Cardoso de Oliveira, 2004, p. 86), "pois não pode se realizar unilateralmente ou na ausência de um mínimo de mutualidade entre as partes" (Cardoso de Oliveira, 2004, p. 86).
No Brasil, onde, após a abolição os negros nunca foram formalmente discriminados, onde se estabeleceram leis anti-racismo, no qual o Estado teve importante papel de divulgar a ideologia da democracia racial, e onde não há tensões entre brancos e negros no cotidiano, é compreensível que o racismo, o preconceito e a discriminação se escondam ao mesmo tempo em que se manifestem.
Na verdade, o que acontece no Brasil é que o preconceito é, muitas vezes, inconsciente e por isso nem sempre se manifestam por meios de atitudes discriminatórias. As pessoas trazem o preconceito tão arraigado na própria cultura, que não alertam para as consequências de seus atos violadores dos direitos. É o caso da famosa expressão "preto de alma branca", que muitas vezes não pretende ferir ninguém.
Conscientização e mobilização como rota alternativa através da comunicação popular
Estudos mostram que, em termos quantitativos, falta à população negra no Brasil, consciência racial, além da convicção de que é possível desenvolver tal consciência através da formação de lideranças e projetos educacionais voltados para a afirmação da identidade e dos direitos. Esses líderes agiriam como mentores do movimento. Pessoas engajadas, com idéias claras e opiniões formadas, que conseguissem passar sua mensagem não apenas ao grupo do qual fazem parte, mas para toda a sociedade, quebrando, dessa forma, dogmas e preconceitos ainda existentes, pois funcionariam como formadores de opinião pública.
Mas para essas pessoas alcançarem um posto de formador de opinião precisam driblar um problema que ainda persiste: a concentração de poder. Como convencer os legisladores, concentradores de poder, a abrir mão de seus espaços para que outros busquem, por meio deles, a igualdade dos direitos?
Os meios de comunicação se colocam como ótimas alternativas para esse fim. E é exatamente aí que aparece o segundo problema: quem concentra o poder da comunicação são os mesmos que concentram os demais poderes. Não é a toa que os governos vêm, sucessivamente, distribuindo concessões de canais de comunicação a senadores e deputados, em troca de favores políticos. Esta concentração viola gravemente os direitos políticos, através da manipulação da opinião pública, da influência sobre o processo eleitoral e sobre o exercício do governo. Muitas vezes ela funciona, também como difusora de preconceitos e defensora da concentração de poder.
"Na realidade, somente a intervenção coletiva da comunidade, através da legislação e do poder de coerção do Estado, pode desencadear mecanismos de desconcentração de poder. Somente desmontando os mecanismos de concentração de poder e substituindo-os por mecanismos de desconcentração se poderia atuar com eficácia para modificar o substrato geral de onde brotam as violações" (Guimarães, 1998, 1040).
Já é visível que a mídia está mudando e não é mais formada apenas por brancos. Acontece que a inserção do negro na mídia se faz, na quase totalidade, de forma dependente. Dificilmente se vê um comunicador negro de prestígio, conhecido na sociedade. A maioria, principalmente entre os apresentadores de programas de TV, são homens brancos.
Não adianta, pois, apenas permitir que o negro tenha acesso aos meios de comunicação, para que eles contribuam tão somente para repassar a mensagem dominante. É necessário abrir espaço para que ele chegue sim, a contribuir com a opinião pública, chegue na mídia para ocupar o posto de formador de opinião, e não apenas como reprodutores do pensamento hegemônico. Na comunicação, assim como nos demais setores, quem domina os meios de produção não permite que a classe dominada, ou minorias discriminadas difunda suas ideias.
"A concentração de poder nos meios de comunicação deriva do sistema de concessões feitas pelo poder público, em uma versão moderna da prática colonial das sesmarias. Os meios modernos de produção e difusão da informação, como a Internet, permitem teoricamente a qualquer indivíduo produzir e distribuir suas ideias.
Todavia, na prática são as grandes organizações empresariais privadas que dominam o mercado da informação, devido ao elevado capital necessário à sua instalação e operação, inclusive por causa da sofisticação técnica dos equipamentos, ao contrário do que ocorria nos primórdios da imprensa" (Guimarães, 1998, 1033).
A solução que se pode pensar para atingir públicos, mesmo que limitados, seria a comunicação popular. E nesse contexto, as rádios se colocam como um dos veículos mais úteis, pelo fato de se tratar de um meio de comunicação com grande aceitação e difusão, podendo ser ouvido em qualquer parte, a partir do momento que ele vai até a comunidade através de canais ou difusores em vias públicas. E nessa dimensão, as rádios comunitárias se colocam como uma das melhores opções, desde que são veículos que existem para tal fim, e que, ao contrário das rádios comerciais, comandadas pelos "donos do poder", estão nas mãos da sociedade civil.
Apesar de eficiente, ainda é incerto o resultado que pode se esperar desses veículos, pois, quem libera as concessões das rádios comunitárias são as mesmas pessoas que concedem os canais comerciais e continuam com jogos políticos, mesmo quando se trata de líderes comunitários.
Os intelectuais representativos do movimento negro que optassem por esse veículo para difundir as ideias do movimento enquanto formadores de opinião deveriam ter consciência e caráter suficiente para não sucumbir às ideias dominantes. Essas rádios poderiam funcionar exemplarmente, a partir do momento que deixassem claro seus objetivos, que fossem usadas como ferramentas na busca da cidadania, e não como difusor de ideias hegemônicas em troca de favores, como acontece com as empresas privadas de comunicação.
A chegada dos escravos negros no Brasil no século XVI foi a partida para a violação dos direitos humanos no país, ainda na época do Brasil-Colônia. Após séculos de maltratos, lutas e fugas chega enfim a liberdade. Mas a tão esperada igualdade racial não veio junto. A abolição trouxe consigo o desemprego, o preconceito e a humilhação do negro.
Na época da abolição a Declaração Universal dos Direitos Humanos já estava integrada à Constituição brasileira, aliás, ela foi integrada à Constituição quando o país ainda era escravista. Mas isso não impediu a violação de tais direitos. Por isso alguns autores dizem que tal declaração tem apenas um sentido formalista, sem consequências práticas.
Talvez no plano constitucional essa violação fosse mais branda, mas eram fortes nas relações sociais de uma sociedade preconceituosa, que humilhava os negros em suas práticas cotidianas. Mas até a própria Constituição pós-escravista, bem como as que a sucederam, limitavam suas ações quando se tratava dos direitos desse grupo, trazendo uma falsa ideia de liberdade e igualdade, o toquenismo.
Chega a República, e com ela, a tentativa de se limpar as cidades brasileiras e criar hábitos europeus. Foi criada a tese do embranquecimento da população, através da qual, com a miscigenação e a imigração européia para o Brasil, esperava-se que a população branca predominasse sobre a negra.
Como não houve tal "transformação", e como, com o passar do tempo, uma parcela da população negra, consciente de sua raça e de sua história, passou a não querer ser considerada branca, a sociedade brasileira teve que enfrentar seu preconceito racial em todas as esferas. Não se trata apenas de tolerar, mas aceitar tanto a diversidade racial, quanto as diferenças culturais. Superar a opressão sem deixar que as relações sociais se regulem com base apenas nos anseios morais. Este é o objetivo, infelizmente ainda não alcançado.
Em dias atuais, mesmo vivendo em uma democracia, podemos dizer que o fim do preconceito racial ainda está longe de acabar. Racismo e discriminação social existem no Brasil desde sempre. A imagem do negro como biológica, cultural e intelectualmente inferior ainda perduram, assim como as violações e o desrespeito aos direitos. Algumas vezes as violações são geradas mais intensa e frequentemente do que as soluções.
Entidades anti-racistas ainda não têm força política suficiente para enfrentar os mecanismos de concentração de poder, disfarçando, dessa maneira, a existência desses mecanismos. Isso desvia os esforços que poderiam estar sendo empenhados em sua reversão.
Com a falta de força e de articulação dessas entidades, o movimento negro sai enfraquecido, e por mais que se fale em liberdade de expressão, quando confrontado com a mídia que tem a seu poder a comunicação de massa, essa liberdade se dilui, não alcança o público na mesma proporção, e com isso, não atende seus objetivos.
Uma das alternativas para se definir, senão o destino, ao menos os rumos que podem tomar essa parcela da população, vítima de preconceito racial, é criar, entre eles, lideranças que funcionem como formadores de opinião pública e que consigam, na esfera da sociedade civil, difundir suas ideias e tentar acabar com as diferenças criadas por indivíduos que se acham etnicamente superiores, sem o ser de fato.
Uma vez definidas essas lideranças e formadas suas ideias, esses líderes devem se integrar no processo de comunicação de massa, podendo, dessa maneira, contar com a mesma força da mídia, com a mesma intensidade e o mesmo espaço com que conta, hoje, o pensamento hegemônico. Para começar essa "infiltração" nos veículos de comunicação, esse público deve ganhar o apoio da sociedade a partir dos preceitos dos movimentos populares, difundidos através de veículos e canais de comunicação comunitários, como rádios, TVs e jornais de bairros e associações.
Essa mídia, embora não tenha um alcance abrangente como os veículos pertencentes a empresas privadas, coloca-se como uma alternativa para um bom começo na busca da cidadania. Sem esse confronto direto e sem esse ganho de espaço em prol dos grupos subordinados e discriminados, jamais poderemos dizer que há, na realidade brasileira, liberdade de expressão e avanços na luta pela igualdade racial.
[Fonte - Bibliografia: CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Racismo, direitos e cidadania. Estudos Avançados, nº 18, 2004. COSTA, Sérgio. Direitos humanos e anti-racismo no mundo pós-nacional. Novos Estudos – Cebrap, nº 68, 2004. P. 23-37. FIORI, José Luís. Neoliberalismo e políticas públicas. In: Os moedeiros falsos. Petrópolis: Editora Vozes, 1998. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos humanos e neo-liberalismo. In: GUIMARÃES, Samuel Pinheiro (orgs). Direitos humanos no século XXI. Rio de Janeiro: IPRI, 1998. IANNI, Octavio. A questão social. In: Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. KING, Martim Luther. Não podemos esperar. São Paulo: Editora Senzala, 1968. LIMA JR., Jaime Benvenuto. O caráter expansivo dos direitos humanos na afirmação de sua individualidade e exigibilidade. In: LIMA JR., Jaime Benvenuto (orgs). Direitos Humanos Internacionais: avanços e desafios no início do século XXI. Recife: Direitos Humanos Internacionais, Gajop, 2001. MOURA, Clóvis. Quilombos e guerrilhas. In: Rebeliões da senzala: quilombos insurreições guerrilhas. Conquista, 1972. ZALUAR, Alba. Da revolta ao crime S/A. Capítulos 4, 6 e 7. São Paulo: Moderna, 1996.]
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