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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

OS NEGROS E O DESAFIO DE VENCER O RACISMO EVANGÉLICO

Lábios carnudos (beiços), orelhas pequenas, nariz achatado, cabelo crespo e pele negra. Este é o biotipo negro que aliado ao gênero expoem um fator duplo de discriminação. Não adianta fechar os olhos. O racismo existe e está presente em toda a sociedade, inclusive no meio cristão. Como a Igreja Evangélica de hoje pode abordar e combater tamanho mal? Não combate. Camufla, finje, se omite e faz de conta que está tudo bem. Mas o racismo é uma enorme ferida putrefata à qual tentam tapar com faixas brancas.

Confundidos com ladrões, comparados a macacos, insultados simplesmente pela cor da pele. Mesmo em pleno século XXI, não são raros os casos de racismo no mundo, que vão desde uma piada contada numa roda de amigos - piadas essas que também são contadas nas rodinhas de "comunhão" cristãs - até registros de injustiças, crimes e mortes.

Recentemente, os campos de futebol viraram cenários para lamentáveis manifestações desse tipo. Quem não se lembra da triste cena de um torcedor espanhol jogando uma banana em direção ao jogador brasileiro Daniel Alves durante uma partida? E de toda uma torcida no Peru imitando o som de macaco nas vezes em que o também brasileiro Tinga pegava na bola?

Não foi à toa que a temática da Copa do Mundo 2014, realizada no Brasil, foi o combate ao racismo. Fora do esporte, as cenas de preconceito são ainda mais frequentes. Há pouco tempo, um ator carioca foi preso injustamente após ser confundido com um bandido. O que ele tinha em comum com o suposto assaltante? A cor da pele. São inúmeras as ocorrências de discriminação e constrangimento no dia a dia, que normalmente acontecem em lojas, restaurantes, empresas e agências de seleção de pessoal. E muitas vezes a agressão não é só verbal ou psicológica, é física também e pode acabar em morte.

No Brasil, a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior do que a de um branco, segundo um levantamento divulgado em 2013 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No estudo, o Espírito Santo aparece como o segundo estado, numa lista de 10, que oferece mais perigo para o jovem negro, perdendo só para Alagoas. E, por mais incrível e vergonhoso que seja, há casos de racismo até mesmo dentro da Igreja Evangélica. E eu, como negro e afrodescendente, sei bem o que é isso.

Racismo velado


O racismo camuflado é a prova inequívoca de que o pecado da hipocrisia é latente no meio evangélico. "Na Igreja Evangélica não há racismo; afinal, todos são iguais perante a Deus".  Tal pensamento, pregado por lideranças e aceito como realidade por evangélicos, tem entrado em confronto com a prática do amor ao próximo, reconhecido como o segundo mandamento de Jesus.

A promoção de conceitos racistas como a teoria do branqueamento social [assimilação dos padrões brancos para se afirmar socialmente] e a consequente negação da própria identidade, após anos de escravidão, tem sido reproduzidos por comunidades evangélicas. Como - ao menos na teoria - somos imitadores de Cristo, às vezes nossa imitação acaba sendo uma sombra de um arremedo e se transforma em hipocrisia dada às máscaras que usamos para tratar com afrodescendentes dentro da igreja. É um racismo velado, por causa de uma perspectiva cristã de que Deus não faz acepção de pessoas. Ou seja, é mais um caso do prega-se e não vive-se.

Declarados como "paraísos raciais" - termo empregado por Marco Davi de Oliveira no livro A Religião Mais Negra do Brasil -, os ministérios de maneira geral, incluindo os considerados mais atraentes aos negros por fatores como a valorização do "eu" a partir do batismo no Espírito Santo, aprimoraram o sentimento de rejeição no afrodescendente, uma vez que se dá no âmbito espiritual.

Há igrejas que tem um culto para negros e pobres antes do culto 'oficial' . É algo devia nos causar repulsa. Eu, como negro, pobre e morador em favela, sinto não só repulsa. Sinto raiva, indignação e neste caso vergonha de ser crente. As igrejas perpetuam o racismo, quando separam de um lado da igreja negros e do outro lado brancos, quando ela não valoriza o negro afirmando, por exemplo, que a marca de Caim era a negritude. Isso passa a ideia de que ser negro é pecado e uma maldição. Essa heresia teológica foi defendida por um famoso pastor e parlamentar.

E o que dizer da associação do preto com coisas diabólicas? Irmã fulana teve uma “visão” ou um sonho que tinha um homem (ou pode ser também uma mulher) negro enorme a perseguindo. Quem nunca ouviu algo com esse enredo nas reuniões de oração? A tal figura negra do “revelamento”, obviamente é personificação do maligno. Isso não é outra coisa a não ser um enorme preconceito racial.

Vamos pra Bíblia?


A Bíblia é clara no combate à discriminação de qualquer espécie. Em Tiago 2.1, há o alerta: “Meus irmãos, como crentes em nosso glorioso Senhor Jesus Cristo, não façam diferença entre as pessoas, tratando-as com parcialidade”. No texto de Atos dos Apóstolos, a Igreja de Antioquia – uma comunidade de fé majoritariamente helenista –, nos dá uma bela lição sobre a igualdade racial e o empoderamento das etnias na comunidade nascente (At 13). O Pentecostes posto em prática, diferentemente da Igreja de Jerusalém, liderada por hebreus (At 15).

Podemos destacar dois escritos de Paulo, o apóstolo das etnias. Ele escreveu uma linda Carta a Filemon, Áfia e Arquipo em que nela propõe a superação da lógica escravista. Ainda, na Carta aos Gálatas (Gl 3.24-29), Paulo chega a ir mais adiante ao romper com a estrutura hierárquica greco-romana, e de qualquer outra sociedade, que fundamenta o seu descaso pelo outro por motivações raciais (judeu ou grego), social (escravo ou livre) e de gênero (homem ou mulher).

Negros no altar


Detectar o racismo na Igreja pode ser dificultado na medida em que lideranças e membros não assumem tal problemática num ambiente de comunhão e aparente aceitação mútua. No fundo eles sabem que o racismo é tão incompatível com a fé cristã, que não tem coragem de assumi-lo. entanto, um dos indicadores são os raros postos ocupados pela etnia na liderança máxima. Quantos pastores negros você conhece? E, dentre os que você conhece, quanto presidem a denominação? Há pessoas que quando "dão de cara" com um pastor ou pastora afrodescendente chegam a perguntar: "Uai, pode ter pastor(a) negro(a)?"

A passividade das denominações é fruto da omissão da Igreja no período da escravidão e pode ser observada na sociedade eclesiástica como reflexo de uma hierarquia preconceituosa, na qual é preciso que o No negro se imponha numa constante necessidade de mostrar algo (...) e que pode atingir um nível mais alto, uma cultura diferente. Você vê o homem negro e a mulher negra há anos dentro da igreja e não têm oportunidades, a não ser na diaconia, na portaria, na cantina, no coral, no departamento social. (...) Raramente ocupam posições de liderança. Isto não é cisma. É fato!

Ser negro


Com a pretensão de valorizar a etnia, tendo em vista fatores que corroboram para o sentimento de rejeição nos negros como associação em púlpitos da cultura afro a demônios, o teólogo Walter Passos criou a Comunidade Pan-Africanista Tzion, em Salvador (BA), dirigida por negros e baseada numa "teologia preta".

"Sempre desafio os teólogos e historiadores para citar personagens brancos nos escritos conhecidos como Antigo Testamento. (...) Há um desconhecimento geográfico dos fatos bíblicos. A maioria dos leitores não sabe que o Jardim do Éden foi na África e os primeiros habitantes do planeta foram pretos. (...) O racismo das igrejas omite a verdade cientifica e bíblica", interpreta Passos. 

Presidente do CNNC (Conselho Nacional de Negras e Negros Cristãos), Passos debate o racismo em igrejas evangélicas e católicas. "A desigualdade étnica está nas igrejas cristãs e suas teologias eurocêntricas", declara o líder que enxerga como um dos maiores problemas de tais congregações, a "negação das raízes africanas quando os pretos e pretas no Brasil se tornam membros das igrejas. Pensam que aceitar o Evangelho é aceitar as ideias de branquitude do cristianismo americano no Brasil".

Uma comunidade exercida somente por negros "pode ser positiva para a afirmação da cultura, assim como para a elevação da autoestima de seus membros. Mas é uma resposta igualmente excludente em relação a pessoas de outras etnias. A igreja é multiracial! E a miscigenação precisa ser celebrada e não rechaçada.  Alma e espírito não têm cor.

A Bíblia e os negros


O diálogo por meio de palestras com sociólogos, autoridades e líderes são a melhor maneira de enfrentar o preconceito racial. Muitos pastores preferem não se expor. A negação dos fatos é mais confortável. A igreja tem que sair para fora e mostrar que em Cristo, não há grego nem judeu, nem escravo, nem livre, nem homem, nem mulher, pois todos somos um em Cristo. O estudo das Escrituras é uma forma de reverter as consequências de uma "teologia baseada no racismo, na negação do outro, na exploração do homem pelo homem".

A comunidade preta tem as suas próprias concepções baseadas na sua história ancestral, nas experiências e manifestações que são repassadas através das gerações. A Bíblia é composta de livros escritos por africanos e os fatos ocorreram na África, hoje denominada geograficamente de Afro – Ásia”.

Ebede-Meleque (ministro do rei de elevada classe social que ajudou o profeta Jeremias quando este foi lançado numa cisterna), a filha do Faraó (que adotou Moisés após tirá-lo de um cesto lançado no rio Nilo), e o eunuco de Atos dos Apóstolos (o primeiro estrangeiro a converter-se ao cristianismo) como personagens negros.  As escolas bíblicas devem resgatar a verdadeira história do papel do negro na Bíblia. O ensino bíblico a partir da concepção do negro e não daquele que foi forjado em uma sociedade excludente e racista.

Concluímos que...


O racismo no seio da igreja evangélica é um triste fato. É absurdo ouvir uma pessoa dizendo “Eu não gosto de preto!”, ouvir isso saindo da boca de alguém que se diz cristão (crente, evangélico ou gospel) é mais absurdo ainda, pois essa pessoa está simplesmente ignorando um dos principais mandamentos estipulados por Jesus Cristo: “Amarás o Senhor teu Deus acima de todas as coisas e ao teu próximo como a ti mesmo.” Alguns, na tentativa de justificar essa postura espúria do racismo, dizem que os próprios negros são racistas. Mas, ainda que seja verdade, uma coisa não anula e nem justifica a outra. Racismo, vindo de quem vier, é algo vergonhoso e, vindo de um crente, além de indigno é pecado e deve ser tratado como tal.

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