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quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

UM JESUS TATUADO? HÁ CONTROVÉRSIAS!

Antes de tudo quero esclarecer que o artigo não é especifico sobre a licitude ou não do uso de tatuagens pelos crentes. Cada um seja livre para fazer o que quiser, lembrando-se que cada um de nós prestará contas por todos os nossos atos e que cada um deles nos gerara consequências. Eu, se não fosse o "avanço do tempo" tatuaria uma enorme águia em minhas costas. Mas, ao menos um pouco de bom senso não faz mal a ninguém. Pois bem, vamos ao tema.

Há muitas pessoas que interpretam o texto de Apocalipse 19.16, "... e no seu manto e na sua coxa um nome inscrito: REI DOS REIS E SENHOR DOS SENHORES" como se o texto bíblico descrevesse um "Jesus tatuado". Já ouvi, inclusive, alguém dizer certa vez: "Galera, Jesus era um dos nossos! Ele também tinha uma 'tatoo' na sua coxa!". Aliás, preciso confessar, eu mesmo já fiz essa afirmação. Tal equívoco interpretativo se deve a três causas principais:

a) ao desconhecimento do texto grego original do Novo Testamento, bem como, de suas regras gramaticais;

b) às traduções existentes em português que, com uma rara exceção, dão margem para que esse tipo de interpretação equivocada seja feita;

c) à conveniência, pois algumas pessoas interpretam convenientemente um Jesus tatuado em Ap 19.16, porque, ao fazerem isso, estão encontrando um apoio "bíblico" que legitima o uso de tatuagens por parte destas mesmas pessoas (e, convenhamos, essa mania não é privilégio só na questão das 'tatoos').

Particularmente, creio que o problema todo esteja principalmente nos dois primeiros itens. De qualquer forma, para derrubar o mito do "Jesus tatuado", resolvi escrever esse artigo a fim de tentar esclarecer o significado deste verso tão mal compreendido nos dias de hoje, principalmente pelos jovens. Vejamos, então, Ap 19.16 sob os prismas linguístico, teológico e cultural.

O prisma Linguístico


O texto grego original de Ap 19.16 diz o seguinte: "kaì échei epì tò himátion kaì epì tòn meròn autou ónoma gegramménon. Basileùs basiléon kaí kýrios kyríon." Se traduzirmos este verso ao pé da letra, ele ficará dessa forma: "e tem sobre a veste e sobre a coxa dele um nome escrito: Rei dos reis e Senhor dos senhores".

No que diz respeito ao aspecto linguístico, observa-se no texto grego que a primeira e a sexta palavras do versículo (sublinhadas) são as mesmas. Trata-se da conjunção "kaì" que normalmente é traduzida como "e" ou "também", de acordo com o contexto em que ela aparece. Todavia, embora o primeiro "kaì" de Ap 19.16 possa ser traduzido como "e", ou seja, "e tem sobre a veste (...)", o segundo "kaì", por outro lado, pode ser entendido como um "kaì" epexegético ou explicativo. Em outras palavras, o segundo "e" do versículo, "(...) e sobre a coxa dele" deveria ser traduzido de forma explicativa, como, por exemplo, "ou seja", "isto é", "a saber”, "quer dizer" etc. Sendo assim, a tradução mais apropriada para Ap 19.16 seria: "e tem sobre a veste, isto é, [que está] sobre a sua coxa um nome escrito: Rei dos reis e Senhor dos senhores".

Infelizmente, de todas as versões bíblicas em português que consultei, apenas uma traduz Ap 19.16 refletindo o seu significado de forma mais correta. Trata-se da Edição Contemporânea de João Ferreira de Almeida. Ela traduz Ap 19.16 assim: "No manto, sobre a sua coxa tem escrito o nome: Rei dos reis, e Senhor dos senhores".

Portanto, a partir da perspectiva linguística podemos assegurar que a frase “Rei dos reis e Senhor dos senhores” de Apocalipse 19.16 não está "tatuada" na "coxa" de Jesus. Muito pelo contrário, estes dizeres estão escritos na “veste” (ou “manto”) de Jesus, a qual, por sua vez, cobre a sua coxa.

O prisma Teológico


Antes de entrarmos no ponto de vista teológico em si, devemos dizer aqui que o livro de Apocalipse foi escrito aproximadamente na metade da década do ano 90 d.C. Isto quer dizer que ele foi escrito por João cerca de 50 a 60 anos depois da morte e ressurreição de Jesus. Portanto, Jesus já possuía (havia mais de meio século) um "corpo glorificado", imaterial, quando João escreve as linhas de Ap 19.16.

Já no que se refere ao aspecto teológico, Ap 19.16 está inserido dentro do contexto de uma visão que João teve (cf. Ap 19.11), devendo ser entendido, portanto, de forma "simbólica", isto é, "não-literal". 

Apesar de alguns comentaristas compreenderem Ap 19 à luz da queda da Babilônia – símbolo de Roma – conforme Ap 18, contudo, Ap 19 aponta para algo bem maior, a saber, a vitória escatológica completa de Deus e do Seu povo sobre o mal em geral, vista sob a perspectiva contextual mais ampla de Ap 19.11-21.8.

Assim, o título "Rei dos reis e Senhor dos senhores" escrito na "veste" de Jesus, se entendido corretamente de forma "simbólica", era aplicado, segundo a tradição judaica, ao próprio Deus, o qual era visto como Rei suserano que governava acima de todos os reis da Terra. Isto quer dizer que, Jesus, ao receber em Ap 19.16 o mesmo título majestoso que Deus recebia no judaísmo, estava se igualando a Ele em Sua glória e divindade.

Além do mais, se entendermos Ap 19.16 como uma referência literal à "coxa tatuada" de Jesus (se este fosse realmente o caso, o que não é), teríamos que entender literalmente também outra visão de João na qual Jesus é descrito como tendo: "cabelos brancos como a lã branca, olhos como chama de fogo, pés como latão reluzente, voz como a voz de muitas águas, boca da qual saía uma espada afiada e rosto como o sol" (cf. Ap 1.12-17), o que seria bastante complicado. Eis uma visão transliteral de um Jesus um tanto esquisito. Enfim, sob a perspectiva teológica também podemos afirmar que Jesus não tinha uma "tatuagem" feita em sua "coxa".

O prisma Cultural


Por fim, sob o ponto de vista cultural, creio que sejam bastante apropriadas as palavras de Champlin sobre Ap 19.16. Este autor nos fornece as seguintes informações:
"(...) havia um antigo costume de gravar o nome do artista sobre a coxa de uma estátua. (...) A arqueologia tem encontrado figuras assírias com inscrições gravadas sobre ela, bem como nas vestes que encobrem seus corpos. Também é verdade que os cavalos, entre os gregos, traziam sinais identificadores sobre suas pernas traseiras". [CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol. VI. São Paulo, Editora e Distribuidora Candeia, 1995.]

Porém, Keener explica que "na antiguidade romana, os cavalos e as estátuas eram às vezes marcados com ferro na coxa, mas as pessoas não". Aliás, esses exemplos fornecidos por Champlin e Keener, note-se, são extraídos de um contexto "pagão" (assírio e greco-romano), e não "judaico" ou "judaico-cristão"! Vale citar aqui as palavras de Alfred J. Kolatch, segundo quem, "Foi proibido aos judeus fazerem isto [isto é, tatuagens ou incisões no corpo] não só porque era sinal de idolatria, mas também porque vai contra as proibições bíblicas de derramar sangue e maltratar o corpo que Deus deu ao ser humano". [KEENER, Craig S. Comentário Bíblico Atos: Novo Testamento. Belo Horizonte, Editora Atos, 2005. KOLATCH, Alfred J. 2º Livro Judaico dos Porquês. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer Ltda, 1998.]

Tendo esses dados em mente, seria, então, simplesmente impensável imaginar um judeu dos tempos bíblicos tatuado (e Jesus era judeu!). Tal fato seria o cúmulo do sacrilégio Portanto, do ponto de vista cultural também não é correto afirmar que Jesus possuía uma "tatuagem" em sua "coxa". Tal prática seria totalmente estranha à cultura (judaica) da qual ele, Jesus, fazia parte.

Conclusão


Um dos grandes problemas que ocorre na interpretação da Bíblia é que nós, muitas vezes, a fazemos partindo do nosso próprio contexto vivencial. Dito de outra maneira, muitas vezes nós projetamos para dentro da Bíblia nossas experiências pessoais, vivências, pressuposições e ideologias – o que é chamado no campo da interpretação bíblica de "eisegese", em vez de buscarmos extrair do texto bíblico aquilo que ele próprio quer nos dizer – o que é conhecido como "exegese".

Bem, de qualquer forma, repito, cada um é livre para fazer o que quiser do "seu" corpo (o qual, na verdade, não é "seu", mas de Deus, quem o criou e, portanto, detém direitos sobre ele). Porém, se alguém for fazer qualquer tatuagem no corpo, fique à vontade. Só não vá, entretanto, sair dizendo por aí que você está fazendo isso porque a "tatuagem" que Jesus tinha em sua "coxa" te autoriza a proceder dessa forma. Isto posto, fico por aqui enquanto você segue daí tentando continuar me amando.

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