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sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

PERSEVERANTE OBSTINAÇÃO

Entramos em um novo ano e não há tempo considerado mais oportuno que a passagem de ano para as "renovações". Uma dos verbos mais conjugados nesse tempo é "perseverar". Mas estaríamos sendo perseverantes ou obstinados? A linha que separa a obstinação da perseverança de tão tênue é praticamente invisível. Tanto que alguns dicionaristas sinonimizam os dois termos. A nossa sociedade cada vez mais premia os obstinados, os obcecados pelo sucesso de curto prazo, aqueles que não largam o osso em nenhuma hipótese, mesmo que esse osso seja apenas o revestimento de uma granada destruidora. Cobra-se das pessoas atitude kamikaze sempre e qualquer hesitação é vista como fraqueza.

A obstinação é a perseguição de objetivos vazios de recompensas reais.


Vejo pessoas - inclusive dentro da igreja -  perseguindo objetivos quixotescos, como se aquilo valesse uma vida, apenas para se mostrar determinado, “perseverante” e uma pessoa de "fé". Lembro-me de uma cena de um filme antigo (Blow Up) em que o guitarrista de uma banda de rock arrebenta a guitarra no palco e atira os seus restos para a platéia ensandecida. Depois de uma luta encarniçada para ficar com os restos mortais da guitarra, exaustos, os fãs acabam indo embora e deixam no chão os pedaços daquilo que um dia foi um instrumento. A câmera fecha nos restos mortais da guitarra e depois abre para o salão vazio.

Parece-me que não estamos deixando espaço para dúvida. A frase que mais ouço é: “com certeza”. Coloque um microfone na boca de qualquer um na rua, e ouvirá dele suas certezas sobre tudo. Ninguém mais hesita, não se titubeia, tudo é certeza, obstinação. Há um perigo no ar quando se confunde obstinação com perseverança. Nessa algazarra conceitual, "verdades" são defendidas à ferro e fogo, doutrinas bizarras são lançadas ao ar como "profundas revelações de Deus", ainda que as mesmas, ao passarem pelo crivo da Palavra, sejam reduzidas a nada. 

Perseverança ou obstinação?


Reconheço que em algumas circunstâncias fica difícil distinguir onde é uma coisa e onde é outra. Em passagem por um programa de esportes,  vi numa luta livre que um grande campeão japonês foi surpreendido por um soco bem dado pelo adversário croata e caiu. Foi massacrado com uma saraivada de golpes. A todos pareceu que estava acabado, nocauteado, mas ainda respirando. O juiz lhe concedeu alguns segundos de alívio ao tirá-lo do meio das cordas. Ele conseguiu ficar de pé, respirou. O adversário exausto de tanto bater, voltou a carga mas foi pego no contragolpe. Talvez o croata tenha tido alguma consideração pelo grande campeão, ali de quatro, com o rosto transformado em uma máscara de sangue e tenha diminuído os ataques achando que “já era”, a luta estava ganha. Mas o japonês partiu para o ataque. Bateu, bateu, bateu, derrubou e finalizou a luta, para o delírio de seus admiradores e pasmo de todos nós telespectadores. Perseverança ou obstinação? Falta de perseverança ou falta de obstinação do oponente?

Não se pode responder a essa pergunta usando só critérios objetivos de avaliação, até porque não temos bola de cristal como parte de nossos apetrechos fisiológicos. Numa sociedade de valores de luta livre, a obstinação parece ter chegado para ficar. Mas os resultados disso serão as máscaras de sangue, em vitórias fugazes - as cicatrizes testemunharão contra. Como disse sabiamente Machado de Assis: “Ao vencedor as batatas.” Saber lutar com garra as lutas que realmente valem a pena é a suprema sabedoria.

Quantas pessoas, acalentando um sonho, palmilham há anos o mesmo caminho, vendo suas chances se limitarem cada vez mais, porém teimam em andar por uma estrada íngreme, desconsiderando todos os outros trajetos que lhe poderão conduzir ao mesmo lugar. São escravos de velhos hábitos e de antigos padrões. Já dizia o poeta: “Morre lentamente quem se torna escravo dos hábitos, repetindo todos os dias o mesmo percurso”. Não significa mudar todo momento a direção ou buscar atalhos aparentemente fáceis, mas ter uma visão aguçada para perceber quando não dá mais para insistir numa direção e precisamos pegar um desvio na estrada. As ferramentas se desgastam pelo uso, e o apego a ferramentas gastas torna-se um grande desperdício de energia.

Vamos para a Biblia?


O apóstolo João, no capítulo cinco de seu evangelho, registra a história de um paralítico que, há 38 anos, esperava um milagre á beira de um tanque chamado Betesda (casa de misericórdia). Havia na região uma história segundo a qual um anjo descia em certo tempo e agitava aquelas águas, e a primeira pessoa que mergulhasse no tanque, após a agitação das águas, seria curada de qualquer enfermidade. Não sabemos com que frequência o anjo descia, ou se descia de fato, o que temos de concreto é que aquele paralítico nunca conseguiu a graça de ser o primeiro a entrar nas águas agitadas pelo tal anjo, porque sempre que ele tentava, descia alguém antes dele. Suas chances diminuíam com a idade, sua tristeza não tinha fim, seu tempo de espera era indefinido e o resultado incerto. 

O paralítico de Betesda concentrou toda sua vida na expectativa da cura por meio do fenômeno do tanque. Ele estabeleceu um fluxo rigoroso em que a felicidade passava pela cura, e a cura passava terminantemente pelas águas de Betesda. Era uma pessoa extremamente centrada naquela única possibilidade, a ponto de se tornar distraída em relação a toda a vida que se passava ao redor. Convém ressaltar que uma pessoa distraída não é alguém sem objetivo ou disperso, trata-se de uma pessoa extremamente focada em um objetivo, a ponto de todo o resto desaparecer do campo de visão. É assim que um aluno em dias de provas e o estudante que vai prestar o concurso público esquecem até a senha do banco que usa há anos, ou a noiva que, com a proximidade da data do casamento, esquece a panela no fogo ou o ferro de passar roupas ligado.

João conta que Jesus se aproximou daquele homem e, sabendo que estava assim há trinta e oito anos, perguntou-lhe se queria ficar curado. Mas o paralítico estava tão focado nas águas de Betesda e, por conseguinte, tamanha era sua distração ao que se passava à sua volta, que ele não conseguiu atentar para a graça majestosa no olhar daquele que lhe falava. Sua resposta é sintomática de uma alma engessada e distraída. Ele se queixou, primeiramente de que não tinha ninguém por ele e, segundo, de não conseguir entrar nas águas. Como já fizemos referência acima, ele estabeleceu um fluxo: a água é agitada – alguém o mete no tanque – ele recebe a cura. Tudo o que fugisse disso não mereceria atenção. Ele não considerava nenhum outro meio para cura, além das águas de Betesda, nem mesmo este encontro privilegiado com o Filho de Deus. Jesus o curou por misericórdia.

Muitos estão numa luta inglória - quer seja no exercício ministerial, quer seja no defesa aguerrida de sua fé -, porque não conseguem separar o alvo que estão buscando do caminho em que estão trilhando, e mesmo que os obstáculos à frente tornem-se intransponíveis para os recursos que possuem, teimam em prosseguir, porque não conseguem enxergar as múltiplas vias que a vida proporciona para se chegar a um mesmo lugar, possibilidades, aliás, muito bem exploradas pelo sábio perseverante que, ao perceber que a estrada em que está não faz mais sentido, busca uma trilha, vai ampliando sua rota até atingir o alvo de sua vida.

As águas vão contornando os obstáculos até que desaguam no mar. Há muitos caminhos para o mesmo destino e, desde que sejam legítimos, podemos e devemos escolher os mais viáveis. Ah, e, por favor, não distorça minha fala, quando eu digo caminhos aqui, não estou me referindo à salvação, pois para esta sabemos que só existe O caminho: Jesus, verdade e vida.

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