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domingo, 27 de julho de 2025

📀GRAMOFONE📀 — ESPECIAL: OS 40 ANOS DE "NÓS VAMOS INVADIR SUA PRAIA", ULTRAJE A RIGOR

Nota editorial

Não cabe a este artigo conjecturar sobre o atual posicionamento idológico e político do cidadão Roger Rocha Moreira, essa é uma questão de cunho pessoal dele e não me diz respeito. 
Uma conclusão parcial é que a perspectiva defendida por Roger sofreu uma modificação, talvez por algum descontentamento ou descepção no decurso dessas quatro décadas. 

O fato é que o posicionamento recente aproxima o cantor, curiosamente, da posição e comportamento que na juventude ele tanto criticava.

A quem reconhece o Ultraje a partir desses comportamentos poderá causar estranheza a proposta do presente artigo que, ao resenhar o primeiro álbum da banda, o clássico e ótimo 'Nós Vamos Invadir Sua Praia' —  até hoje seu trabalho de maior impacto, passível de ser confundido com uma coletânea — , destacará o teor político aparentemente progressista de parte das canções. 

Finalizo essa longa, mas necessária introdução, fazendo um convite às leitoras e aos leitores para adentrar em uma viagem à primeira metade da década de 1980 — sem armamentos polarizados —, ainda em tempos de ditadura militar no Brasil, com grandes parcelas da sociedade lutando pela redemocratização do país e, do norte ao sul, rádios ecoando os versos: 
"A gente não sabemos escolher presidente, a gente não sabemos tomar conta da gente, tem gringo pensando que nós é indigente. Inútil! A gente somos inútil."
No contexto de abertura comercial ao "novo rock brasileiro", após o sucesso do compacto 'Você Não Soube Me Amar' da banda carioca Blitz, em 1982, o Ultraje a Rigor foi contratado pela multinacional Warner e, no início de 1983, lançou um primeiro compacto com as canções 'Inútil' e 'Mim Quer Tocar'.
A canção, embora abordasse um tema caro e específico ao contexto político e social da época, fazendo uma referência explícita à campanha

pelas Diretas Já, que levava milhares de pessoas às ruas em diversas regiões do Brasil reivindicando participação direta na eleição presidencial que ocorreria em 1985,
<<O país vivia tempos de grandes expectativas quanto à propagandeada reabertura política, após quase duas décadas em um governo autoritário, e a campanha pelas diretas concentrava demandas e anseios democráticos que tomavam a cena pública.>>
acabou por se tornar atemporal, sendo, portanto, mais atual do que nunca. Afinal, é fato incontestável que
"a gente não sabemos escolher presidente..."
e as redes sociais dão provas de que
"...inútil, a gente somos, inútil..."
Essas duas músicas vieram a fazer parte do disco que merecidamente recebe um artigo especial em nossa série gramofone.

O icônico, irônico e ao mesmo tempo contestador "Nós Vamos Invadir Sua Praia", já é um senhor quarentão, mas que permanece ainda muito jovem.

Mas, antes de falar sobre o disco, vamos conhecer um pouco da história da banda.

Por que Ultraje a Rigor?

Porque sim!

Esta frase é válida para um balanço da carreira da banda de rock Ultraje a Rigor.

Surgido no mercado fonográfico brasileiro em 1982, com o lançamento de um bem sucedido disco compacto, o Ultraje está comemorando 43 anos de existência.

Contudo, essa longa trajetória contabiliza dez álbuns lançados, somente cinco de canções inéditas, três deles na primeira década de existência da banda: o aniversariante da vez "Nós Vamos Invadir Sua Praia" (1985), "Sexo!!" (1987) e "Crescendo" (1989).


A banda fechou a década com o disco de covers "Por que Ultraje a Rigor?" (1990).

O Ultraje a Rigor foi formado na cidade de São Paulo no início dos anos de 1980, sendo umas das precursoras do chamado Brock — o rock brasileiro oitentista — no mercado fonográfico.

Aos fundadores Roger Rocha Moreira e Leonardo "Leôspa" Galasso, respectivamente cantor/guitarrista e baterista, uniram-se o baixista Silvio Jansen e o guitarrista Edgard Scandurra — que deixaria o grupo pouco depois para criar a banda Ira!.

Aliás, foi Scandurra quem batizou o grupo de Ultraje a Rigor, referenciando a performance irreverente com a qual executavam covers de Beatles e de bandas de rock dos anos 1950 e 60.

Ainda nesses primeiros momentos, Maurício Defendi substituiu Sílvio no contrabaixo e vocal e Carlos Bartolini, o Carlinhos, assumiu a guitarra no lugar de Scandurra.

Agora vamos dar as honras ao nosso aniversariante.

"Nós Vamos Invadir Sua Praia"

Mais que um disco, um marco

Faixas:
Em abril de 1985 a banda entrou no estúdio Nas Nuvens para gravar seu primeiro LP. 

Nunca 28 diárias de quatro marmanjos no Hotel Sol, em Copacabana, deram tanto retorno. 

O Ultraje a Rigor sempre ameaçava estourar. Quando estourou, foi um estrondo tão grande que superou todas as expectativas.

Contexto político social


Como já dito, a campanha pelas Diretas Já apoiava a Proposta de Emenda Constitucional nº 05/1983, a Emenda Dante de Oliveira.

Enquanto milhares saíam às ruas, a canção 'Inútil' ganhava apelo popular e se tornava um dos hinos informais do movimento. 

O verso citado acima faz referência à limitação da extensão do voto pela eleição indireta e ainda ecoava um comentário do ídolo futebolístico Pelé (✰1940/✞2022), que, em contraponto às reivindicações, teria dito às mídias nacionais que os brasileiros não estavam preparados para votar para presidente — opinião referendada pelo congresso nacional, que reprovou a emenda.

O lado B do compacto, e terceira faixa do lado 1 no álbum, o reggae 'Mim Quer Tocar', também composto por Roger Moreira, embora de menor repercussão, também abordava o tema das Diretas Já: 
"...Mim é brasileiro. Mim gosta banana. Mas mim também quer votar, mim também quer ser bacana...".
As duas canções eram apresentadas de forma sarcástica, com uso do humor tanto nas letras quanto na performance executada.

A inserção do Ultraje a Rigor na indústria fonográfica, portanto, sugeria uma banda que, de forma irreverente, apresentava temas com preocupação ou mesmo engajamento social — uma contraparte politizada à Blitz, banda também caracterizada por apresentações irreverentes.

Leitura reforçada por uma história divulgada na época segundo a qual Ulysses Guimarães (✞1916/✰1922), um deputado comprometido com a redemocratização, teria declarado à imprensa que levaria uma cópia de 'Inútil' para o ditador presidente João Baptista Figueiredo (✰1918/✞1999 — ALEXANDRE, 2002, p.164). 

Embora a história tenha sido negada pelo guitarrista do grupo, Carlinhos Bartolini (ASCENÇÃO, Andrea, 2011, p.62), que substituiu Scandurra após o sucesso do compacto, a sua fixação na mitologia construída sobre a banda fortalece a percepção da leitura politizada vinculada ao Ultraje.

Buscando amenizar as afiliações da banda com a temática política, o segundo compacto lançado pelo Ultraje, em setembro de 1984, apresentou as canções 'Eu Me Amo' e 'Rebelde Sem Causa', já com o guitarrista Carlinhos.

A primeira ironiza uma retratação egocêntrica e a segunda ridiculariza a rebeldia da juventude de classe média, ambas investindo na performance irreverente, demarcando a proposta do grupo. 

O impacto comercial e o volume de shows encorajaram a Warner a enfim lançar o álbum da banda, gravado em abril e lançado em julho de 1985, dois anos após o compacto inicial.

Invadindo a praia da discriminação elitista


Com produção de Liminha e Pena Schmidt, o primeiro álbum teve repertório selecionado através de votação do público entre canções bastante executadas nos shows da banda (ASCENÇÃO, 2011, p.64). 

No entanto, o disco foi intitulado com a única canção recém composta por Roger, 'Nós Vamos Invadir Sua Praia' (ASCENÇÃO, 2011, p.90). 

Totalizando onze canções, além das quatro apresentadas nos compactos anteriores e da canção título, as selecionadas no ótimo repertório foram 'Zoraide', uma ode pela liberdade da solteirice, 'Ciúme', a contrapartida romântica, assumindo o drama do ciumento excessivo, 'Marylou' (Edgard/Roger/Maurício), uma escrachada declaração de misoginia diante da liberdade sexual feminina, 'Jesse Go' (Roger/Maurício), uma crítica, cantada por Maurício, à efemeridade do estrelato, 'Se Você Sabia', uma queixa das agruras da relação sexual não devidamente planejada e 'Independente Futebol Clube', gravada ao vivo, o inverso de 'Ciúme', com uma apologia a um relacionamento aberto. 
As canções selecionadas, portanto, se afastavam das lançadas no primeiro compacto, sem comentários de natureza política explícita.

Se a temática predominante no disco 'Nós Vamos Invadir Sua Praia' pode ser considerada trivial, a letra da canção título se baseia ainda em uma temática social: 
"Nós tamo entrando sem óleo nem creme / Precisando a gente se espreme / Trazendo a farofa e a galinha/ Levando também a vitrolinha / Separa um lugar nessa areia / Nós vamos chacoalhar a sua aldeia / Mistura sua laia / Ou foge da raia / Sai da tocaia/ Pula na baia / Agora nós vamos invadir sua praia/ Agora se você vai se incomodar / Então é melhor se mudar / Não adianta nem nos desprezar / Se a gente acostumar a gente vai ficar (…) A gente pode te cutucar / Não tenha medo, não vai machucar..."
Em um período no qual havia certa rivalidade entre bandas originárias de São Paulo e do Rio de Janeiro, o refrão da canção consolidou a ideia de ser um manifesto paulista quanto à invasão "da praia" carioca — ou seja, metáfora de adentrar um território tido como hostil. 

A aparente hostilidade é ressaltada pela biógrafa Andréa Ascenção (2011, p.68-69), ao referenciar o interesse do Ultraje em "conquistar" o Rio de Janeiro, local das grandes gravadoras (incluindo a Warner) e sede do primeiro Rock in Rio, uma mega produção com shows de importantes bandas do rock internacional e bandas nacionais, particularmente as cariocas.

A letra da canção 'Nós Vamos Invadir Sua Praia', no entanto, aborda uma disputa por um espaço urbano: o uso de uma praia, contrapondo um habitante do morro e interlocutores litorâneos. 

Em livro do jornalista Ricardo Alexandre, uma obra abrangente sobre o rock brasileiro oitentista, o próprio Roger atesta as duas mensagens: 
"E ‘Nós Vamos Invadir Sua Praia’ era um hino a favor da miscigenação, tanto sobre um grupo paulista no Rio de Janeiro, quanto sobre uma linha de ônibus criada pelo Brizola que ligava o subúrbio à zona sul carioca" (ALEXANDRE, 2002, p.225).
No ano de 1984 o governador do estado do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, realizou a estatização das linhas de ônibus que atendiam ao estado, junto à compra de 200 novos veículos. 

No mês de novembro, o governador criou a linha municipal 461, a primeira a cruzar o Túnel Rebouças, ligando, assim, a Zona Norte à Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. 

A possibilidade de criar conexão direta entre espaços que reafirmam uma segregação sócio-econômica — fixada na divisão geográfica da cidade — causou rebuliço e oposição dos setores conservadores da Zona Sul, locus das classes médias e elites econômicas do estado. 

Uma reportagem publicada em 04 de novembro de 1984, no Caderno B do Jornal do Brasil é simbólica da reação desses setores. 

Intitulada Nuvens suburbanas sob o sol de Ipanema (a que já foi paraíso), a reportagem entrevistou alguns moradores da região de Ipanema. Um trecho sintetiza os diversos comentários ofensivos e discriminatórios presentes na reportagem: 
"Nem vou mais à praia aqui. É farofeiro para tudo quanto é lado, olhando a gente de um modo estranho. Ficam passando aquele bronzeador. A sensação é de que eles estão invadindo o nosso espaço".
Reportagem antôlogica, exibida pelo programa "Documento Especial", da extinta Rede Manchete
A reportagem permite perceber não apenas uma aproximação com a temática da canção 'Nós Vamos Invadir Sua Praia', mas também de termos referenciados na letra, como a designação pejorativa "farofeiros" e a expressão que estão "invadindo o nosso espaço". 

Mesmo sem uma confirmação de que Roger tenha lido a reportagem, é possível supor que o acontecimento estimulou sua criatividade para que, com o uso do tom humorístico característico da banda, pudesse comentar o caso. 

O enredo da canção retrata, pela perspectiva de um eu lírico oriundo da Zona Norte, uma situação concreta sobre o uso de um espaço urbano em uma configuração comum às grandes cidades brasileiras: as hierarquias e desigualdades geo e sócio-econômicas inscritas e demarcadas na apropriação do espaço público, a dividir e afirmar quem pode ou não tomar parte neste espaço comum.

A praia na canção torna-se, assim, um "enclave fortificado": um espaço que, embora não seja privado, pode sofrer uma espécie de privatização informal por parte de um grupo privilegiado, sendo fechado e monitorado, configurando o principal instrumento de um novo tipo de segregação, justificada pelo medo do crime e da violência (CALDEIRA, 2000). 

Deste modo, se os moradores da Zona Sul buscaram a manutenção de um muro simbólico a segregar os desiguais, a iniciativa de Brizola criava uma "ponte" concreta. 

E a canção do Ultraje possibilitou a divulgação do caso para um público mais amplo, afinal, 'Nós Vamos Invadir Sua Praia' foi um grande sucesso e é conhecida até hoje, mais de 40 anos após o seu lançamento. 

O disco homônimo vendeu 70 mil cópias já no mês seguinte, conforme edição da revista Veja de 14 de agosto de 1985 e chegaria a 500 mil cópias vendidas, recebendo disco de ouro (ASCENÇÃO, 2011, p.76).

Conclusão


Nada escapou à sensacional esculhambação do Ultraje a Rigor. Um bando de farofeiros invade as praias cariocas na faixa-título. 'Rebelde Sem Causa' é o retrato de um típico "mauricinho". 

Política e dependência cultural são os temas de 'Mim Quer Tocar'. A safadeza dá o tom em 'Zoraide' e 'Marylou'. Os conflitos da geração "moderninha" aparecem em 'Ciúme' e 'Eu Me Amo', tirando sarro mais uma vez da Blitz e sua música 'Egotrip'.

Praticamente todas as faixas do disco foram sucesso na época e a música 'Marylou' ganhou uma versão carnavalesca que foi muito tocada nos bailes durante o carnaval.

Após esse estrondoso sucesso e com a agenda lotada de compromissos para shows, o Ultraje voltou ao estúdio em 1897 para o seu segundo, e bom, disco: "Sexo!!", seguido de mais quatro álbuns de estúdio, o último em 2002. Mas nenhum teve a força e o impacto de "Nós Vamos Invadir Sua Praia".
[Fonte: MORAIS, Bruno Vinícius Leite de. “Nós queremos estar ao seu lado”: Quando democracia e inclusão social foram temas do Ultraje a Rigor. A música de: História pública da música do Brasil, v. 3, n. 1, 2021. Disponível em: https://amusicade.com/nos-vamos-invadir-sua-praia-1985-ultraje-a-rigor/. Acesso em: 26th julho 2025. Referências: ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta. O rock e o Brasil dos anos 80. São Paulo: Editora DBA, 2002. ASCENÇÃO, Andréa. Ultraje a Rigor: Nós vamos invadir sua praia. Caxias do Sul: Ed. Belas Artes. 2011. MORAIS, Bruno Vinícius L. de. “Separa um lugar nessa areia”: A marginalização geográfica retratada em música no Rio de Janeiro da redemocratização. In: Érica Sarmiento; Vivian Zampa; Carla Peñaloza Palma. (Org.). Movimentos, trânsitos & memórias: novas perspectivas (século XX). 1ed. Niterói. RJ: Associação Salgado de Oliveira de Educação e Cultura (ASOEC), 2019, v. 02, p. 351-365. “Sem preconceito, mas que tal um churrascão no Leblon e Ipanema?” Comunica Tudo. 25 de novembro de 2013.]

Ao Deus Todo-Poderoso e Perfeito Criador, toda glória.
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E nem 1% religioso

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