Não! Eu não sou fã do cantor baiano Gilberto Gil. Nunca fui! Aliás, são muito poucas de suas composições que despertam minha atenção, embora ele tenha uma extensa obra em sua discografia e muitas de suas composições já foram gravadas e interpretadas por outros nomes da música, o que o tornou um artista cujo talento cultural é indiscutível.
Ah, e no texto deste artigo, eu vou me ater a fazer a análise especificamente literária de uma das músicas compostas por Gilberto Gil. Aqui, ignoro completamente suas ideologias políticas, religiosas e quaisquer outras que sejam. Que isso fique bem claro, pelo amor de Deus!
Gil é muito mais do que um cantor ou um compositor. Ele é um poeta. As letras que compõe não são nada óbvias e para entendê-las, é necessário que se faça um estudo semântico, gramatical e estrutural, pois, ele não pega simplesmente um papel e sai rabiscando versos com simples rimas. Ele cria mesmo todo um contexto da mensagem que quer passar com a música.
Certamente essa foi uma das estratégias que ele usou na época da Ditadura Militar, quando a censura pesava a mão nas análises que fazia das artes. Foi um tempo muito difícil para cantores, atores, escritores e muitos outros representantes dos setores cultural e artístico, pois os censores não davam mesmo mole. Pegavam pesado. No caso de Gil, tanto ele quanto Caetano Veloso, foram alguns dos artistas que tiveram de ir para o exílio na Europa, fugindo da repressão do regime militar, justamente por terem sido considerados subversivos.
Bom, mas como eu já disse anteriormente, este artigo não é sobre os posicionamentos políticos de Gilberto Gil, mas sim para fazer uma análise da letra dessa que, na minha opinião, além de uma verdadeira obra prima da MPB é uma das melhores já compostas por ele. Vamos à letra.
"Super-homem, a canção"
'Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter
Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agoraÉ que me faz viver
Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser
Quem sabe
O Super-homem venha nos restituir a glória
Mudando "como um deus" o curso da história
Por causa da mulher'
Análise literária e contextual
Era o ano de 1979, e Gilberto Gil lançava o hoje clássico álbum "Realce". Na faixa três do vinil, 'Super-homem, a canção' estourava nas paradas musicais, alcançando, via rádio e tevê (fez parte da trilha sonora nacional da novela "Os Gigantes", de Lauro César Muniz, exibida em 1979, no então horário das 20h, pela Rede Globo de Televisão), cidades e rincões distantes.
Os ventos da abertura começavam a arejar o clima, ainda que o país continuasse sob batuta militar. Nesse contexto, de crescente liberdade e constante vigilância, de certo modo é sintomático o sucesso de uma canção que, com firmeza e delicadeza, denunciava a necessidade de sofisticar as visões do "mundo masculino", entendendo-o como constituído no diálogo com o feminino (a "porção mulher").
"Super-homem, o filme"
Gil esclarece que foi Caetano quem deu o mote para que este compusesse a canção em pauta, quando, em 1979, retornando do cinema, contou a Gil e a outros de "Super-homem, o filme" — o clássico com o saudoso Christopher Reeve (☆1952/✞2004) —, que acabara de ver. A cena em que o herói altera o movimento de rotação da Terra para poder voltar o tempo e salvar a namorada que sofrera um acidente impressionara Gil; daí, a canção e seu fecho.
Poesia, metáfora e filosofia
O poema-canção de Gil vai, metafórica e filosoficamente, bem além dessa denúncia, mas, em um mundo em que grande parte da violência — física e simbólica — contra a mulher decorre do comportamento machista, isso não é pouco.
A truculência do período político autoritário encontra eco na arrogância histórica dos homens — policiais, pais, padres, pastores, patrões, esportistas, maridos, cidadãos de toda espécie — que sempre usaram e abusaram de uma suposta "superioridade" de séculos e séculos sobre a mulher.
Assim, o poema de Gil fala de um tempo, e a partir de um tempo, mas repensa todo um passado opressivo e, décadas depois de lançado o long-play, infelizmente, se mantém crítico e necessário diante da cena contemporânea, que insiste em perpetuar o pior da herança patriarcal. Porque, pelo que se vê às escâncaras nas relações cotidianas entre homens e mulheres, as práticas fascistas do mundo masculino continuam fundamentalmente as mesmas.
Análise estrutural
O poema de Gilberto Gil possui quatro estrofes, com várias homologias. Os primeiros versos de cada estrofe são todos dissílabos, entoados bem lentamente pelo cantor e marcam etapas de uma reflexão transformadora:
- 'Um dia...' — diz-se de um tempo e modo caduco de representar-se como masculino no mundo;
- '...Que nada...' — fala de uma descoberta, difícil, de algo (no caso, a "porção mulher") abafado no corpo do sujeito;
- '...Quem dera...' — professa uma vontade, uma utopia de que "todo homem" consiga, esclarecido, vislumbrar a alteridade em si;
- '...Quem sabe...' — sugere uma mudança radical de rumos, em que o homem atue em nome de novas formas de ser: por causa da mulher.
Os versos intermediários de cada estrofe são quase todos alexandrinos e rimam entre si, consoantes nas estrofes 1 ('bastaria...daria'), 3 ('dera...primavera') e 4 ('glória...história'). Na estrofe 2, rimam-se 'resguardara' e 'agora', numa espécie de homoteleuto, ou seja, sons que rimam ('ra/ra') após a tônica ('da/go'); a rima se reforça com a aliteração em /g/ do verbo 'resGuardara' e do advérbio 'aGora', e ainda, entre estes termos, a presença de 'traGo'; o efeito fônico se fortalece também com a rima interna de 'agOra' e 'melhOr'.
Por sua vez, os versos finais de cada estrofe, todos hexassílabos, rimam entre si: 'ter'...'viver'...'ser'...'mulher', com o /e/ aberto de 'mulher', finalizando os três /e/ fechados anteriores. A diferença fônica de 'mulher' faz ressoar outras nuances.
Toda essa estrutura rímica e rítmica age para o desdobrar da canção. Na segunda estância, o jogo entre 'porção mulher' e 'porção melhor' funciona de forma exemplar, indicando que a correspondência morfossonora entre os termos é também de ordem semântica. É ou não é algo espetacular e que passa batido se você apenas ouve a música só por ouvir?
Insinuação de androginia
Certa feita, ouvi alguém dizendo que essa a letra dessa música fazia apologia à homossexualidade, sinalizando uma suposta orientação bissexual de Gilberto Gil. Entretanto, na página oficial de Gil na internet, há notas reveladoras referentes à canção.
Sobre essa 'porção mulher', diz:
"Muita gente confundia essa música como apologia à homossexualidade (…). O que ela tem, de certa forma, é sem dúvida uma insinuação de androginia, um tema que me interessava muito na ocasião — me interessava revelar esse imbricamento entre homem e mulher, o feminino como complementação do masculino e vice-versa, masculino e feminino como duas qualidades essenciais ao ser humano".
Um termo ambivalente intensifica essa nova postura (intelectual, poética, existencial) diante da diferença e da suplementaridade dos gêneros: o verbo no verso
'...a porção melhor que trago em mim agora...'
tem tanto o sentido de trazer (mais óbvio) quanto de tragar (mais estranho). O sujeito exibe/traz essa porção melhor exteriormente, enquanto a vive/traga intensamente.
Conclusão
Há mais de 40 anos, Gilberto Gil escrevia 'Super-homem, a canção', música que fala da não assumida, mas, sim, presente fragilidade masculina e é inspirada no filme do herói — justamente ele, o Super-homem (entenderam que sacada o paradoxo proposto pela música?) —, lançado em 1978. Na trama, o 'Superman' era capaz de mudar a rotação da Terra, para voltar o tempo e salvar a 'mocinha', sua amada Louis Lanne (Maggot Kidder [☆1948/✞2018]).
Isso me faz lembrar uma orientação do apóstolo Paulo (que, inclusive, é considerado por muitos dos que não compreendem os contextos dos registros bíblicos como um machista, algo que, definitivamente, ele não era mesmo), em sua epístola à igreja de Éfeso. Observe a sabedoria no escrito paulino:
Isso me faz lembrar uma orientação do apóstolo Paulo (que, inclusive, é considerado por muitos dos que não compreendem os contextos dos registros bíblicos como um machista, algo que, definitivamente, ele não era mesmo), em sua epístola à igreja de Éfeso. Observe a sabedoria no escrito paulino:
"Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor; Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos. Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela..." (5:22-25, grifo acrescentado para efeito de ênfase).
Muitos são os homens religiosos que só pegam a primeira parte da orientação do apóstolo e fazem disso um instrumento de opressão contra as mulheres, eximindo-as de seus direitos como pessoas. E, pior, usando a Bíblia como base para esse descalabro. Esses ilustres, ou ignoram, ou não entendem o peso do que é colocado no versículo 25.
Da mesma forma, muitas mulheres, evocando pautas de cunho essencialmente feministas, sentem verdadeiro asco da submissão proposta por Paulo, sem, também entenderem ao certo a importância dessa submissão, que vai muito, mas muito mais além do que a mulher se omitir, se eximir e ser simplesmente usada como um depósito de esperma, como uma cápsula reprodutora.
Talvez o mais surpreendente em 'Super-homem, a canção' seja perceber que o teor radical, dionisíaco, do que ela diz vem envolvida numa melodia sedutora, circular, calculada, apolínea. Ela diz, sem subterfúgios, que o mundo masculino ilude, que a porção mulher é melhor e constitutiva, que os valores do homem caducaram e que a glória depende de uma verdadeira transformação comportamental.
Ouvimos a música, nos emocionamos, cantarolamos com o intérprete. Possivelmente, até pensemos, enquanto dura a canção, na necessidade de, homens, nos reinventarmos. Finda a música, algum grão — quem sabe — pode ter germinado em nós. Ou não. Mais provável é que os homens, conformados e satisfeitos, nem sequer imaginemos a hipótese de "voltar o tempo para salvar a namorada", ou, em termos bíblicos, "dar a nossa vida pela mulher amada, assim como Cristo deu sua vida pela sua Igreja". O que, no fundo, quer dizer, em metáfora, não literalmente: "salvar a nós mesmos", já que, ainda sob a égide bíblica, o homem se torna um ao se unir com sua mulher no contexto conjugal.
A Deus toda glória.
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Leonardo mais um texto brilhante. Eu mesmo não entendia as mensagens implícitas na música dele. Só uma observação, longe de qualquer comparações, mas em outros texto seu sobre o Enéas, hoje a citação do apóstolo Paulo e as palavras do Cristo,como é importante o estudo,evitaríamos melindres, maus entendidos, conflitos etc. Viveríamos melhor, compreenderíamos melhor o outro e a nós mesmos......me sinto uma criança neste aspecto. Boa reflexão. Grande abraço Leonardo. Parabéns mais uma vez.
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