terça-feira, 4 de agosto de 2020

CANÇÕES ETERNAS CANÇÕES — "SUPER-HOMEM, A CANÇÃO", GILBERTO GIL

Não! Eu não sou fã do cantor baiano Gilberto Gil. Nunca fui! Aliás, são muito poucas de suas composições que despertam minha atenção, embora ele tenha uma extensa obra em sua discografia e muitas de suas composições já foram gravadas e interpretadas por outros nomes da música, o que o tornou um artista cujo talento cultural é indiscutível.

Ah, e no texto deste artigo, eu vou me ater a fazer a análise especificamente literária de uma das músicas compostas por Gilberto Gil. Aqui, ignoro completamente suas ideologias políticas, religiosas e quaisquer outras que sejam. Que isso fique bem claro, pelo amor de Deus!

Gil é muito mais do que um cantor ou um compositor. Ele é um poeta. As letras que compõe não são nada óbvias e para entendê-las, é necessário que se faça um estudo semântico, gramatical e estrutural, pois, ele não pega simplesmente um papel e sai rabiscando versos com simples rimas. Ele cria mesmo todo um contexto da mensagem que quer passar com a música.

Certamente essa foi uma das estratégias que ele usou na época da Ditadura Militar, quando a censura pesava a mão nas análises que fazia das artes. Foi um tempo muito difícil para cantores, atores, escritores e muitos outros representantes dos setores cultural e artístico, pois os censores não davam mesmo mole. Pegavam pesado. No caso de Gil, tanto ele quanto Caetano Veloso, foram alguns dos artistas que tiveram de ir para o exílio na Europa, fugindo da repressão do regime militar, justamente por terem sido considerados subversivos.

Bom, mas como eu já disse anteriormente, este artigo não é sobre os posicionamentos políticos de Gilberto Gil, mas sim para fazer uma análise da letra dessa que, na minha opinião, além de uma verdadeira obra prima da MPB é uma das melhores já compostas por ele. Vamos à letra.

"Super-homem, a canção"


'Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter 
Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agoraÉ que me faz viver

Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser 
Quem sabe
O Super-homem venha nos restituir a glória
Mudando "como um deus" o curso da história
Por causa da mulher'

Análise literária e contextual


Era o ano de 1979, e Gilberto Gil lançava o hoje clássico álbum "Realce". Na faixa três do vinil, 'Super-homem, a canção' estourava nas paradas musicais, alcançando, via rádio e tevê (fez parte da trilha sonora nacional da novela "Os Gigantes", de Lauro César Muniz, exibida em 1979, no então horário das 20h, pela Rede Globo de Televisão), cidades e rincões distantes. 

Os ventos da abertura começavam a arejar o clima, ainda que o país continuasse sob batuta militar. Nesse contexto, de crescente liberdade e constante vigilância, de certo modo é sintomático o sucesso de uma canção que, com firmeza e delicadeza, denunciava a necessidade de sofisticar as visões do "mundo masculino", entendendo-o como constituído no diálogo com o feminino (a "porção mulher").

"Super-homem, o filme"


Gil esclarece que foi Caetano quem deu o mote para que este compusesse a canção em pauta, quando, em 1979, retornando do cinema, contou a Gil e a outros de "Super-homem, o filme" — o clássico com o saudoso Christopher Reeve (1952/2004) , que acabara de ver. A cena em que o herói altera o movimento de rotação da Terra para poder voltar o tempo e salvar a namorada que sofrera um acidente impressionara Gil; daí, a canção e seu fecho.

Poesia, metáfora e filosofia


O poema-canção de Gil vai, metafórica e filosoficamente, bem além dessa denúncia, mas, em um mundo em que grande parte da violência — física e simbólica — contra a mulher decorre do comportamento machista, isso não é pouco.

A truculência do período político autoritário encontra eco na arrogância histórica dos homens — policiais, pais, padres, pastores, patrões, esportistas, maridos, cidadãos de toda espécie — que sempre usaram e abusaram de uma suposta "superioridade" de séculos e séculos sobre a mulher. 

Assim, o poema de Gil fala de um tempo, e a partir de um tempo, mas repensa todo um passado opressivo e, décadas depois de lançado o long-play, infelizmente, se mantém crítico e necessário diante da cena contemporânea, que insiste em perpetuar o pior da herança patriarcal. Porque, pelo que se vê às escâncaras nas relações cotidianas entre homens e mulheres, as práticas fascistas do mundo masculino continuam fundamentalmente as mesmas.

Análise estrutural


O poema de Gilberto Gil possui quatro estrofes, com várias homologias. Os primeiros versos de cada estrofe são todos dissílabos, entoados bem lentamente pelo cantor e marcam etapas de uma reflexão transformadora: 
  • 'Um dia...' — diz-se de um tempo e modo caduco de representar-se como masculino no mundo; 
  • '...Que nada...' — fala de uma descoberta, difícil, de algo (no caso, a "porção mulher") abafado no corpo do sujeito; 
  • '...Quem dera...' — professa uma vontade, uma utopia de que "todo homem" consiga, esclarecido, vislumbrar a alteridade em si; 
  • '...Quem sabe...' — sugere uma mudança radical de rumos, em que o homem atue em nome de novas formas de ser: por causa da mulher.
Os versos intermediários de cada estrofe são quase todos alexandrinos e rimam entre si, consoantes nas estrofes 1 ('bastaria...daria'), 3 ('dera...primavera') e 4 ('glória...história'). Na estrofe 2, rimam-se 'resguardara' e 'agora', numa espécie de homoteleuto, ou seja, sons que rimam ('ra/ra') após a tônica ('da/go'); a rima se reforça com a aliteração em /g/ do verbo 'resGuardara' e do advérbio 'aGora', e ainda, entre estes termos, a presença de 'traGo'; o efeito fônico se fortalece também com a rima interna de 'agOra' e 'melhOr'

Por sua vez, os versos finais de cada estrofe, todos hexassílabos, rimam entre si: 'ter'...'viver'...'ser'...'mulher', com o /e/ aberto de 'mulher', finalizando os três /e/ fechados anteriores. A diferença fônica de 'mulher' faz ressoar outras nuances. 

Toda essa estrutura rímica e rítmica age para o desdobrar da canção. Na segunda estância, o jogo entre 'porção mulher' e 'porção melhor' funciona de forma exemplar, indicando que a correspondência morfossonora entre os termos é também de ordem semântica. É ou não é algo espetacular e que passa batido se você apenas ouve a música só por ouvir?

Insinuação de androginia


Certa feita, ouvi alguém dizendo que essa a letra dessa música fazia apologia à homossexualidade, sinalizando uma suposta orientação bissexual de Gilberto Gil. Entretanto, na página oficial de Gil na internet, há notas reveladoras referentes à canção. 

Sobre essa 'porção mulher', diz: 
"Muita gente confundia essa música como apologia à homossexualidade (…). O que ela tem, de certa forma, é sem dúvida uma insinuação de androginia, um tema que me interessava muito na ocasião — me interessava revelar esse imbricamento entre homem e mulher, o feminino como complementação do masculino e vice-versa, masculino e feminino como duas qualidades essenciais ao ser humano". 
Um termo ambivalente intensifica essa nova postura (intelectual, poética, existencial) diante da diferença e da suplementaridade dos gêneros: o verbo no verso 
'...a porção melhor que trago em mim agora...' 
tem tanto o sentido de trazer (mais óbvio) quanto de tragar (mais estranho). O sujeito exibe/traz essa porção melhor exteriormente, enquanto a vive/traga intensamente.

Conclusão


Há mais de 40 anos, Gilberto Gil escrevia 'Super-homem, a canção', música que fala da não assumida, mas, sim, presente fragilidade masculina e é inspirada no filme do herói — justamente ele, o Super-homem (entenderam que sacada o paradoxo proposto pela música?) , lançado em 1978. Na trama, o 'Superman' era capaz de mudar a rotação da Terra, para voltar o tempo e salvar a 'mocinha', sua amada Louis Lanne (Maggot Kidder [☆1948/✞2018]).

Isso me faz lembrar uma orientação do apóstolo Paulo (que, inclusive, é considerado por muitos dos que não compreendem os contextos dos registros bíblicos como um machista, algo que, definitivamente, ele não era mesmo), em sua epístola à igreja de Éfeso. Observe a sabedoria no escrito paulino:
"Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor; Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos. Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela..." (5:22-25, grifo acrescentado para efeito de ênfase).
Muitos são os homens religiosos que só pegam a primeira parte da orientação do apóstolo e fazem disso um instrumento de opressão contra as mulheres, eximindo-as de seus direitos como pessoas. E, pior, usando a Bíblia como base para esse descalabro. Esses ilustres, ou ignoram, ou não entendem o peso do que é colocado no versículo 25.

Da mesma forma, muitas mulheres, evocando pautas de cunho essencialmente feministas, sentem verdadeiro asco da submissão proposta por Paulo, sem, também entenderem ao certo a importância dessa submissão, que vai muito, mas muito mais além do que a mulher se omitir, se eximir e ser simplesmente usada como um depósito de esperma, como uma cápsula reprodutora.

Talvez o mais surpreendente em 'Super-homem, a canção' seja perceber que o teor radical, dionisíaco, do que ela diz vem envolvida numa melodia sedutora, circular, calculada, apolínea. Ela diz, sem subterfúgios, que o mundo masculino ilude, que a porção mulher é melhor e constitutiva, que os valores do homem caducaram e que a glória depende de uma verdadeira transformação comportamental. 

Ouvimos a música, nos emocionamos, cantarolamos com o intérprete. Possivelmente, até pensemos, enquanto dura a canção, na necessidade de, homens, nos reinventarmos. Finda a música, algum grão — quem sabe — pode ter germinado em nós. Ou não. Mais provável é que os homens, conformados e satisfeitos, nem sequer imaginemos a hipótese de "voltar o tempo para salvar a namorada", ou, em termos bíblicos, "dar a nossa vida pela mulher amada, assim como Cristo deu sua vida pela sua Igreja". O que, no fundo, quer dizer, em metáfora, não literalmente: "salvar a nós mesmos", já que, ainda sob a égide bíblica, o homem se torna um ao se unir com sua mulher no contexto conjugal.

A Deus toda glória. 
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E nem 1% religioso. 
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Um comentário:

  1. Leonardo mais um texto brilhante. Eu mesmo não entendia as mensagens implícitas na música dele. Só uma observação, longe de qualquer comparações, mas em outros texto seu sobre o Enéas, hoje a citação do apóstolo Paulo e as palavras do Cristo,como é importante o estudo,evitaríamos melindres, maus entendidos, conflitos etc. Viveríamos melhor, compreenderíamos melhor o outro e a nós mesmos......me sinto uma criança neste aspecto. Boa reflexão. Grande abraço Leonardo. Parabéns mais uma vez.

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