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quinta-feira, 20 de agosto de 2020

ATÉ ONDE A JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS É JUSTA?

"Não retribuam a ninguém mal por mal" (Romanos 12:17a).
"Não retribuam mal com mal, nem insulto com insulto; ao contrário, bendigam; pois para isso vocês foram chamados, para receberem bênção por herança" (1 Pedro 3:9).
Cotidianamente somos impactados por notícias terríveis que nos evidencia o quanto a violência grassa em um frenético e descontrolado galope na sociedade. É cada coisa tão horrível que quase não acreditamos que o ser humano seja capaz de praticá-la. São crimes cometidos com requintes de crueldade e criminosos frios e insensíveis que não demonstram nenhum tipo de compaixão e respeito a suas vítimas, que são seus semelhantes. São coisas tão brutais, que não são comuns nem entre os animais, em sua irracionalidade.

E quando são crimes cometidos contra crianças então, aí é que nos vem um sentimento de revolta e já sentenciamos nossas penas contra os algozes: desejamos pena de morte, desejamos que aconteça algo igual ou pior a eles e, se pudéssemos, nós mesmos nos incumbiríamos de dar a eles "o que eles merecem". 

Crimes sexuais então, são os que nos causam mais repulsa e quando praticados contra crianças, fazem com que nossa indignação e revolta atinjam o ápice. É aí que temos alimentado em nós o desejo de fazer justiça com as próprias mãos, principalmente quando observamos tanta morosidade e brechas em nossa legislação, que potencializa ainda mais a sensação de impunidade. Mas, será que o fazer justiça com as próprias mãos nos daria o sentimento de que a justiça foi realmente feita? E, esse nosso senso de justiça, nos torna superiores ou nos iguala aos que repudiamos?

Justiça? Não! Com as próprias mãos, sim.


Um idoso de 72 anos foi assassinado por engano na frente de sua esposa na noite dessa terça-feira (18), no bairro Morada da Serra, em Ibirité, na região metropolitana de Belo Horizonte. Raimundo Nonato foi apontado como autor de estupros na região. Por volta das 18h, criminosos invadiram a residência e executaram o homem.
"Bateram no portão, e ele foi atender. Quando atendeu, eles o empurraram para dentro e começaram a agredir. Eu escutei o barulho do portão, fui olhar e vi que um deles estava ajoelhado pressionando o pescoço do meu marido. Quando vi aquilo, eu empurrei o cara, e ele disse: 'Ô dona, você não se mete que o negócio não é com você. É com esse moço aqui porque velho estuprador tem que morrer'"
contou a companheira do idoso, de 51 anos, em entrevista à imprensa local.

A vítima foi alvejada com três tiros no tórax e um no rosto. Ele morreu na hora.
"Eu saí atrás deles e, quando cheguei perto do portão, outro cara estava descendo e falou: 'Cara, o que você fez? Você matou o homem errado. Não era esse homem, não'. Aí eles saíram andando tranquilamente, e meu marido morreu em casa, na hora"
disse a viúva.

Segundo populares, a intenção dos atiradores era invadir uma casa de portão branco. O imóvel da vítima tem o portão marrom. Ainda de acordo com os populares, o sr. Raimundo era um homem de bem, sempre muito educado e atencioso com todos e que não poderia jamais ter cometido tal crime. A polícia confirmou que não há o registro de estupro ocorrido na região e que o idoso não tinha passagens pelo sistema prisional. O caso segue sendo investigado, na tentativa de identificar e prender os assassinos. 

Esse triste caso é um dentre muitos já acontecidos e que acontecem também diariamente Brasil afora, porém, não recebem a merecida atenção, não geram polêmicas e nem causam comoção nas redes sociais, passando batido, caindo rapidamente no esquecimento e vida que segue.

Os fins justificam os meios?


Século XXI, agosto de 2020, princípios consolidados e sociedade teleologicamente preparada para dirimir conflitos sociais. Ledo engano. Mas quem não deve, não teme. Ultimamente a onda de vingança popular, ou rebeldia, ou insatisfação com a impunidade do Estado ou como qualquer outra forma que você conceitue, ganha cada vez mais espaço nos noticiários e nas mídias digitais. Alguns creditam isso ao posicionamento do tribunal das redes sociais que ora é criticado, ora é ovacionado como a verdadeira voz da maioria. Escolha o seu time. Ledo engano também.

Não é a primeira vez que ondas de ódio popular manifestam-se através da famosa justiça com as próprias mãos. Se não temos um Estado forte, punível, justo, célere e capaz de usar a jurisdição para resolver todos os conflitos como a sociedade deseja, por que não dar à sociedade o direito de resolver os seus problemas sem o dedo do Estado? Simples, porque isso nos remete ao estágio dos primórdios humanos onde o famoso "olho por olho e dente por dente" era muito mais importante e eficaz que os 250 Artigos da Constituição e os 97 da ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Mas afinal, por que isso é preocupante?

Lei de Talião

  • O termo Talião, originário do latim "Lex Talionis", significa lei de tal tipo, condizendo com a ação na devida proporção da agressão. A justa reciprocidade do crime e da pena. Tal pena para tal crime. No popular, "olho por olho, dente por dente".
Diferentemente da justiça aplicada pelo Estado, a "justiça" aplicada pelo povo diretamente não comporta princípios e leis que são responsáveis por toda a evolução jurídica e social até o presente momento. Essa autotutela popular é perigosa porque princípio nenhum é capaz de parar o sangue na garganta de um pai que acabou de ver seu filho ser morto, sua mulher e filha ser estuprada, seu carro comprado com todo o esforço dividido em milhões de prestações ser levado por um irresponsável que quer que tudo venha fácil pra si. E não é pra ser diferente.

Justiça ou vingança?


Aqui, o desejo é uníssono: Vingança, fazer com que ele pague pelo que fez e que sinta dor por conta disso. Logo, o melhor a se fazer é espancar, apedrejar, torturar até a morte pois isso é a melhor maneira de fazer com que ele aprenda que o que ele fez é errado, como se ele não soubesse. O propósito aqui é saciar a sede de vingança. Sendo assim, a justiça não está presente e torna-se desnecessária.

A punibilidade pelo Estado é moderada e amarrada por diversos princípios e não poderia ser diferente. Apesar de muitas e merecidas reclamações, estamos muito melhores do que há séculos atrás em quesito Brasil e Mundo. A burocracia é um preço caro a ser pago por um sistema democrático. O Estado democrático de direito, a dignidade da pessoa humana, a presunção de inocência, o fim de regimes imperiais absolutistas foram grandes conquistas para TODOS e que hoje são jogadas como Direitos humanos para bandido ou semelhante, resumindo conquistas imensuráveis para a sociedade e para o mundo como formas de ajudar quem não obedecer os bons costumes sociais.

É errado pensar assim? Depende, uai. Se você acaba de ver um parente seu ser morto vai ter tempo pra pensar no fim do absolutismo, na isonomia, na dignidade da pessoa humana? É lógico que não, somos humanos, temos instintos antes das leis. O que parece mais correto é matar quem matou também, pois nada melhor que devolver o troco no valor exato.

Como podemos ver, o real problema não está ai. O problema é até onde essa justiça pode chegar. Vingança, quando você tem certeza de quem foi, sempre foi um costume adotado pela humanidade. Mas por que chamar algo pautado apenas no instinto humano de justiça? Onde a justiça entra na jogada? Essa tal "justiça com as próprias mãos" (e aqui vai levar as aspas propositalmente) não precisa de provas cabais para ser executada, o que abre um precedente infinito de possibilidades de ocorrência de injustiças bem pior que a "verdadeira justiça" que tanto reclamam, ou seja, um sujo está falando do mal lavado. 

Nada se sobrepõe ao Estado Democrático de Direito

  • O Estado democrático de direito é um conceito que designa qualquer Estado que se aplica a garantir o respeito das liberdades civis, ou seja, o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, através do estabelecimento de uma proteção jurídica.
A justiça judiciária é burocrática porque precisa e deve garantir que o que se discute seja realmente real para pesar sua mão. Infelizmente, a justiça do povo, apesar da vingança, que de forma nenhuma é justiça, nem sempre espera defesa. Assim como um assassino não espera também.

O caso mencionado acima é um exemplo de justiça popular onde não há dúvidas de que a lei de talião foi aplicada, que uma forma ou de outra realmente ERA legal. Mas e quando a vingança se baseia em hipóteses como no caso de um senhor trabalhador e inocente ser morto por acharem que ele era estuprador? A esposa, pessoa simples e humilde, moradora de um bairro pobre, pode sair por ai batendo em quem matou ele mesmo sabendo que não existiam provas contra o senhor? Diferente de quem matou ele ela tem certeza dos autores do crime, e agora? Percebe onde quero chegar? É um ciclo vicioso.

Mas, paremos um pouco para raciocinar. Na justiça do judiciário, injustiças acontecem mesmo com todos os princípios e defesas, na "Justiça" popular acontece a mesma coisa; na justiça judiciária, segundo as más línguas, a maioria dos punidos são pobres e negros, na "justiça" popular também; na justiça judiciária uma prova mal colhida gera impunidade; na "justiça" popular a mera desconfiança já é suficiente pra executar a punição; na Justiça judiciária a punição demora bastante, na "justiça" popular a punição é rápida, imediata e eficaz pois sacia muito mais a sede de vingança matando o indivíduo do que prendendo por meia dúzia de anos, não é mesmo? 

Pra quê precisamos do Estado para tomar conta das relações e organizações da sociedade se nós somos capazes de resolver isso com as próprias mãos e o Estado sempre é tido como ineficaz? Pra que Estado democrático de direito se só serve pra bandido? Pra que dignidade da pessoa humana se só quem é errado é beneficiado?

Conclusão


Então não precisamos mais saber até onde a justiça popular é justa, uma vez que esse limite nunca existiu. É como dizem os mais velhos: Falar é fácil quando o nosso não está na reta. Quando eles disseram isso aposto que não faziam ideia da proporção que isso tomaria mais tarde. Já imaginou se a justiça judiciária pautasse-se apenas em vingança? Não, é melhor não.
"Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles façam a vocês; pois esta é a Lei e os Profetas" (Mateus 7:12).
[Fonte: Jus Brasil, por Henrique Araújo, consultor jurídico]

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