A frase que dá título a este artigo é o refrão da canção de protesto 'A Carne', composta por Seu Jorge, Marcelo Yuca (✩1965/✞2019) Wilson Capellette e brilhantemente interpretada pela fenomenal, a diva Elza Soares (considerada pela BBC de Londres, como a melhor cantora do século XX). A música fez parte do álbum "Do Cóccix Até o Pescoço", lançado em 2002.
A crise provocada pela pandemia mundial do novo coronavírus nos últimos meses tem sido a principal pauta na imprensa e na mídia geral, mas, mesmo com toda a crise que o inimigo invisível tem causado em todas as áreas da sociedade, alguns fatos de nuances bem mais antigas, visíveis e tão — quiçá, mais — nociva quanto, não conseguiram passar desapercebidas.
Aqui no Brasil, artistas e políticos lamentaram nas redes sociais mais uma morte provocada por policiais nas favelas do Rio de Janeiro. A tristeza e os pêsames pela perda de João Paulo Mattos, 14 anos, se misturou à indignação e a críticas às Polícias Militar e Civil e ao governador do Rio, Wilson Witzel (PSC/RJ). A hashtag #OndeEstaJoaoPedro e o nome do menino lideraram os trending topics do Twitter na manhã de terça-feira (19/5).
A repercussão na internet começou desde a noite de segunda-feira (18/5), quando João Pedro foi baleado durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ). Após ser atingido, ele foi levado por um helicóptero e a família só conseguiu localizar o corpo na manhã da terça-feira, no Instituto Médico Legal (IML). Os exames legistas, revelaram que o garoto morreu com um tiro de fuzil pelas costas. Em entrevista à tevê, o pai do garoto, Neilton Pinto, se disse revoltado por ver o sonho do filho interrompido. Os policiais envolvidos na operação foram afastados e o caso segue sendo investigado pela Corregedoria da Polícia do Rio de Janeiro.
Nos EUA, manifestantes protestaram em Minneapolis, no estado de Minnesota, pelo segundo dia consecutivo após a morte de George Floyd, homem negro de 46 anos assassinado por quatro policiais brancos. Os protestos se intensificaram na noite dessa quarta-feira (27), com o registro de incêndio em um ponto da cidade.
Manifestações — tanto de anônimos quanto de famosos — foram registradas em diversas partes do país. Em Los Angeles, Califórnia, centenas de pessoas marcharam contra a morte de Floyd e a brutalidade policial. Em Memphis, Tennessee, a polícia respondeu com bombas de gás lacrimogêneo e duas pessoas foram presas.
Floyd, morreu na segunda-feira (25) após ser sufocado durante uma abordagem policial. Um dos agentes prensou o joelho contra o pescoço da vítima, que afirmava constantemente que não conseguia respirar. Toda a ação foi filmada por uma testemunha e compartilhada nas redes sociais.
Segundo o governador de Minnesota, Tim Walz, os protestos começaram pacificamente, mas se intensificaram e se tornaram violentos.
O que estes assuntos têm em comum? O que unia as duas vítimas separadas pela distância dos continentes? A cor da pele e desastrosas abordagens policiais. E os casos me levaram a refletir sobre um tema que ainda é um vírus nocivo à humanidade: o racismo.
Aqui como acolá
O Brasil orgulha-se de ser uma "democracia racial", enquanto os Estados Unidos são conhecidos pela aspereza de suas relações raciais. Ainda assim, desde a Segunda Guerra Mundial (1939/1945), os afroamericanos, que representam apenas 12% da população dos Estados Unidos, têm provado ter uma força política substancialmente maior na vida de seu país do que os afro-brasileiros, que representam talvez 50% da população brasileira. Por que acontece isso? Existiriam formas pelas quais a história da luta dos negros nos Estados Unidos poderia trazer luz às lutas anti-racistas no Brasil?
Como aconteceu lá
Talvez as mais impressionantes conquistas do movimento afroamericano, do período pós-45, aconteceram durante a sua primeira fase: o movimento pelos direitos civis dos anos 50 e 60. Considerando a história das relações raciais nos Estados Unidos até aquela data, os avanços conseguidos durante aqueles anos foram verdadeiramente extraordinários.
A segregação foi superada, o sufrágio definitivo foi estendido ao povo negro através do Ato dos Direitos de Voto de 1965, e o governo federal instituiu programas de "igualdade de oportunidades" e "ação afirmativa" para combater o racismo.
Essas conquistas transformaram o Estado nacional, de um impositor da desigualdade racial, em exatamente o oposto: um ativo e poderoso oponente da discriminação racial e fiador das oportunidades para o povo negro (e outras minorias raciais, como os índios americanos, porto-riquenhos e mexicanos) em áreas como educação, moradia e emprego.
Os avanços políticos dos negros continuaram nos anos 70, mas principalmente nos níveis locais e estaduais. Afro-americanos foram eleitos para câmaras municipais e legislativos estaduais em crescente número, e muitas cidades e comarcas americanas (incluindo Los Angeles, Chicago, Detroit, Washington, Filadélfia, para nomear algumas) já foram governadas por prefeitos negros.
Mas, a nível nacional, os anos 70 foram um período de incerteza e estagnação para o movimento negro. Isto se deveu, em parte, ao assassinato de seu carismático líder Martin Luther King (✩1929) em 68, mas também, paradoxalmente, aos seus, sucessos durante os anos 50 e 60.
Há o que se comemorar?
Em primeiro lugar, tendo superado as mais violentas e óbvias formas de discriminação racial, o movimento pelos direitos civis pareceu ter cumprido seu objetivo. Os tipos de discriminação que continuaram (e continuam) a existir eram muito mais sutis e difíceis de detectar e, portanto, era ainda mais difícil a mobilização de pessoas em seu repúdio.
Em segundo lugar, os programas de oportunidades iguais possibilitaram a uma nova geração de afro-americanos o acesso às universidades, tornando-os assim parte dos profissionais liberais de classe média. Para esta jovem e crescente elite negra (talvez 15 a 20% da população negra), o sonho americano estava sendo realizado. Qual a necessidade, então, do movimento dos direitos civis? Sua missão tinha sido cumprida.
Mas, naturalmente, o racismo, que levou séculos para ser formado, não seria fácil e rapidamente extinto. Enquanto a nova classe média negra se beneficiava das oportunidades abertas pelo governo federal, o mesmo não acontecia com a sobrepujada maioria dos afro-americanos. Sua participação na renda nacional mostrou-se virtualmente imutável entre 1960 e 1980, permanecendo em níveis mínimos.
Os anos 70 também testemunharam uma retomada crescente do ressentimento e do ódio dos brancos contra os programas governamentais que presumivelmente favoreciam os negros. Esse movimento encontrou sua expressão política a nível nacional na eleição de Ronald Reagan (✩1911/✞2004) em 1968, que chegou à presidência prometendo eliminar os programas de igualdade de oportunidade e reduzir a ajuda governamental aos pobres, que, em grande número, são negros.
Uma resposta ao racismo renovado
Durante os anos da administração Reagan, a necessidade de revitalizar e rejuvenescer o movimento negro para defender as conquistas alcançadas durante os anos 60 e 70 tornou-se cada vez mais visível. Jesse Jackson, um ex-colaborador de Martin Luther King, emergiu como o líder desse movimento que reconhece a necessidade de estender-se para além da população negra a criação de uma aliança interracial que envolva vários grupos étnicos não-brancos, mulheres e brancos liberais: essa é a razão para o conceito de "coalizão arco-íris" de Jackson.
Ele não teve um sucesso completo na formação dessa coalizão. Suas posições anti-semitas foram particularmente destrutivas ao alienar o apoio de um grupo étnico tradicionalmente simpático às aspirações dos negros. Mas, a despeito dessas falhas, a campanha de Jackson para a candidatura democrata de 1984 provou ter uma grande força política, vencendo eleições em vários estados do Sul, alcançando até 25% dos votos em estados mais industrializados, como Illinois e Nova Iorque, e forçando o comprometimento do Partido Democrata em manter e estender as conquistas políticas dos negros dos anos 60.
Respondendo ao ressurgimento do racismo americano representado por Reagan, o movimento negro norte-americano entra nos anos 80 com um sentido renovado de propósitos e missão.
No Brasil, um caminho mais longo
Como a experiência americana pode ser comparável àquela encontrada no Brasil? Nada refuta mais efetivamente o mito da "democracia racial" do Brasil que a extensa história da luta dos negros neste país.
Nos últimos cem anos, nota-se uma progressão, desde o movimento abolicionista dos anos 1870 e 80, através das organizações culturais e políticas do período pós-1920 (a mais proeminente das quais foi a Frente Negra Brasileira, banida por Getúlio Vargas [✩1882/✞1954] em 1937), até o Movimento Negro Unificado de hoje. Esses movimentos são uma evidência conclusiva — como se fosse necessária — da contínua existência da discriminação e desigualdade racial na multirracial sociedade brasileira.
Desde 1945 esses movimentos têm atraído entusiástico apoio de dezenas de milhares de seguidores e têm sido instrumento de estímulo à continuidade do debate público sobre as deficiências do "paraíso racial" brasileiro. Mas nenhum deles conseguiu gerar um movimento de massa, com o peso moral e político que fez de Martin Luther King, Andrew Young, Julian Bond, Jesse Jackson e outros líderes negros figuras de proeminência nacional nos Estados Unidos. Por que acontece isso?
Uma importante parte da resposta repousa no caráter paternalista e autoritário das relações sociais e políticas brasileiras, que, mesmo durante períodos de democracia, torna muito difícil construir um movimento político de massas autônomo e nacional.
Mas é importante notar que o movimento pelos direitos civis nos EUA surgiu, e teve as suas vitórias mais retumbantes, na região mais tradicionalista, autoritária e repressiva do país: os estados do Sul.
O autoritarismo, em si só, não pode explicar as diferentes trajetórias das lutas negras nos dois países; deve-se prestar atenção também na natureza das relações raciais brasileiras, onde não existe a separação racial imposta pelo Estado, como se verifica na segregação norte-americana ou no apartheid sul-africano.
O caráter substancialmente mais relaxado da hierarquia racial brasileira trabalha para minar a mobilização política afro-brasileira de múltiplas formas.
A necessidade de instituições próprias
Primeiramente, ao permitir a integração dos afro-brasileiros, ainda que em termos de inferioridade, nas instituições básicas da sociedade, no Brasil, reduz a necessidade do povo negro de desenvolver instituições sociais e culturais próprias e, por isso mesmo, mais autônomas, como a segregação racial exigiu nos Estados Unidos.
Assim, o Brasil não compartilha com os Estados Unidos a tradição de igrejas e faculdades independentes, que favoreceram sensivelmente a formação da base ideológica e institucional e de liderança, para o movimento dos direitos civis.
Da mesma maneira, a ausência de um limite claramente estabelecido entre "negro" e "branco" no Brasil torna possível a cooptação, por parte do grupo racial branco, de afro-brasileiros particularmente talentosos e ambiciosos. Em um sistema mais rígido, tais indivíduos permanecem na casta racial negra e assumem posições de liderança dentro dela. Mas, no Brasil, não é impossível para eles negar a sua negritude; de fato, manter identidade afro-brasileira pode tornar-se um exercício consciente de força que muitos estão relutantes em assumir.
Recentemente, os líderes negros têm também gerado um substancial capital político, por chamarem a atenção pública para um dos mais brutais aspectos das relações raciais brasileiras — a repressão policial de afro-brasileiros e o preconceito, por parte dos órgãos penais (e de muitos cidadãos), de que "negro é bandido até que se prove o contrário". Denunciar essas práticas pode ajudar a gerar aquele senso de indignação moral que tem provado ser tão importante no movimento afroamericano.
Conclusão
Mas, lutando para criar um movimento nacional de massas, os líderes afro-brasileiros estão claramente face a um longo e íngreme caminho que envolve educação e luta. Não é por acidente que o movimento negro tem sido mais ativo e tem alcançado seus maiores êxitos no Estado de São Paulo, onde existe um sistema mais agressivo de relações entre brancos e negros, mais próximo daquele que existe nos Estados Unidos. Quando tenta se estender às áreas mais tradicionais do Brasil, a mobilização negra encontra obstáculos políticos, sociais e raciais discutidos acima.
Se o movimento negro no Sul segregacionista dos Estados Unidos era como o virtuoso Davi confrontando-se com um monstruoso, mas vulnerável, Golias, o movimento afro-brasileiro está frente a frente com um inimigo mutante, escorregadio e sobretudo invisível, que precisa ser antes revelado para poder ser derrotado. Assim sendo, conquistar uma "segunda abolição", no Brasil, a cada passo, será tão difícil como tem sido nos Estados Unidos. Talvez mais ainda. E isso não sou eu quem digo, o sangue de João Paulo e George Floyd falam por mim.
[Fonte: SciELO, por: George Reid Andrews – Professor da Universidade de Pittsburgh e pesquisador visitante do CEDEC; Correio Braziliense; CNN Brasil]
A Deus toda glória.
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