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sexta-feira, 22 de maio de 2020

ESPECIAL — QUE MUNDO NOS AGUARDA APÓS A PANDEMIA?

O texto desse artigo é um resumo da palestra do filósofo Leandro Karnal, ministrada para alunos da Unicamp, da qual tive o privilégio de participar via remoto. Há aprendizado possível em meio a uma pandemia que já infectou centenas de milhares de pessoas e matou cerca de 30 mil no mundo inteiro? A resposta otimista é "sim".

O efeito borboleta X a teoria do caos


Na teoria do caos, o efeito borboleta busca descrever como pequenas mudanças em uma determinada dimensão podem reverberar de maneira intensa em outro domínio. Tudo está conectado e dessa crença surge seu principal jargão: o bater de asas de uma borboleta pode causar um tornado do outro lado do mundo. 

Se aplicarmos a mesma lógica ao momento atual, qual será a potência das transformações trazidas pela pandemia de coronavírus? Um fenômeno em escala global, que transformou a dinâmica de praticamente todos os países e que tem sido descrito por muitos especialistas como o principal evento desde a Segunda Guerra Mundial vai muito além do que o simples bater de asas de uma borboleta, certamente. 

Imprevisibilidade: Palavra chave, mas, o que é? Qual seu significado?


Imprevisibilidade. Essa foi uma das palavras que imperaram, recentemente, em relatórios, análises, artigos e matérias relacionadas à pandemia de Covid-19 e o efeito sem precedentes na economia e na mudança de hábitos de pessoas, empresas e países. 

Especialistas acreditam que passado o período pandêmico, é provável que haja uma aceleração dos avanços da biotecnologia em busca da contenção de futuras pandemias. Além disso, eles também enxergam que o efeito causado pela doença pode mudar a lógica de competição das empresas para cooperação e pontuam ainda outros aprendizados que podem ser tirados da atual situação.

A crise atual, causada pela pandemia do novo coronavírus, nos força a compreender dois conceitos bastante importantes: a imprevisibilidade e a vulnerabilidade. Nem o mais competente e bem preparado dos administradores previu em seu worst-case scenario este tão potente, absoluto, grave e devastador acontecimento. Estamos todos, das grandes potências mundiais aos países mais pobres, de joelhos. Imprevisibilidade é só o que podemos prever.

Imprevisibilidade


A imprevisibilidade é um fenômeno que acompanha a humanidade desde sempre. A diferença é que, agora, acontecimentos com alto impacto (muitas vezes, em escala global) acontecem em intervalos mais curtos. Pelo contexto que estamos vivendo, é natural que façamos uma associação direta entre "imprevisibilidade" e "um surto de coronavírus que ninguém esperava". Mas Karnal propõe uma leitura diferente. O surpreendente, neste caso, talvez não seja a rapidez da disseminação do Covid-19 em si. O que mais surpreende é o potencial que a humanidade tem de, operando em conjunto, resolver esse problema com danos mínimos. Assim, de acordo com ele, outras palavras, além da imprevisibilidade, merecem destaque.

Coletividade  — Há um enorme potencial para que a humanidade, pela primeira vez na história, opere de forma verdadeiramente colaborativa entre todas as nações. Coisa que, há 50 anos, há cem anos, seria impossível em razão da falta de tecnologia de comunicação. Será que nós, como nação global, seremos capazes de colocar em prática esse potencial? 

Só saberemos com distanciamento histórico. Mas que ele existe, existe. Portanto, quando futuristas como Amy Webb falam sobre "imprevisibilidade", sugerem um olhar muito menos para o vírus em si e muito mais para as improváveis relações que estão se coordenando em prol da resolução do problema. Talvez nasça daí algo que poucos estão olhando com atenção.

Health Science  — Há uma nova corrida espacial em curso. Uma corrida espacial genética, onde EUA e China disputam palmo a palmo quem será a nação líder em edição de DNA e em nanorrobôs que podem administrar drogas dentro do corpo humano. Não se pode afirmar com certeza em qual grau de evolução os cientistas dos dois países estão. 

O que se sabe é o que chega na mídia  — e que, por si só, já nos mostra um horizonte de saúde muito diferente do que vivemos hoje. Acredito que, vencido o surto de coronavírus, teremos ainda mais investimentos para acelerar essa corrida. Uma vez que essas duas nações foram extremamente afetadas pela infecção, é natural imaginar que, ao se resolver a pandemia, surjam grupos de trabalho focados em soluções preventivas.

Reorganização — Há muitos aprendizados que as lideranças podem tirar deste momento atípico. Uma reflexão que podemos fazer é: em razão do surto, há a clara necessidade de flexibilização de horários, de processos e da presença física no escritório. Se as empresas conseguirem operar de maneira eficiente dentro deste contexto mais fluido, ela devem se perguntar: por que não mantemos assim quando o coronavírus passar? 

Outra reflexão interessante é tentar entender por que se falava tanto de squads e metodologias ágeis antes do coronavírus. Justamente para que as empresas consigam se reorganizar rapidamente em cenários complexos como o que estamos vivendo. Entender que as lideranças, agora, são circunstanciais e rotativas  — e não mais estáticas (resultado de um direito adquirido)  — é uma lição importante que a crise econômica nos trará.

Propósito — A sensação de impotência perante a disseminação da infecção também pode ser um ótimo espaço para o auto-questionamento. Eu, na posição que estou, faço algo relevante para o mundo? Minha empresa, na posição que está, faz algo relevante para o mundo? 

A vulgarização do termo propósito trouxe um senso de urgência de se assumir uma missão que vá além da própria organização. Uma causa maior. Mas isso, quando é apenas comunicação, não resolve nada. O propósito é a antessala do legado. Propósito sem legado é apenas egotrip

Talvez, o coronavírus escancare a relevância das pessoas e das empresas nesse cenário de revisão de prioridades. E, por consequência, as obrigue a pensar se esse propósito é uma intenção genuína, que verdadeiramente direciona os rumos do negócio.

Abundância — A tese de Peter Diamandis (engenheiro, médico, e empresário greco-americano mais conhecido por ser o fundador e presidente da X Prize Foundation, o co-fundador e presidente executivo da Singularity University e co-autor de The New York Times best-sellers "Abundância: O Futuro É Melhor do Que Você Pensa" e "BOLD") diz que toda tecnologia revolucionária começa a um preço exorbitante. 

Mas, com o tempo, vai se tornando acessível e ubíqua. O mundo está longe de ser perfeito. Mas há sinais para acreditar que estamos a caminho desse eldorado. Portanto, ao ver o sistema de saúde da Itália entrando em colapso, é natural pensar que a tese de Diamandis não tem o menor sentido. 

Mas quando você entende a consistência da curva ao longo da história, a discussão ganha um tom mais profundo  e, na minha visão, acurado. Outro aspecto da abundância que tem tudo a ver com coronavírus é a Lógica da Escassez. O porquê de a sua saúde é a saúde de todos. O porquê de ir ao supermercado fazer um estoque de comida é o contrário do que a abundância sugere.

Conclusão

Faz tempo nós sabemos — o coronavírus não é o vilão


Faz tempo nós sabemos do desmatamento, da poluição, do aquecimento global, da morte dos corais e das consequências do degelo das calotas polares.  Faz tempo nós sabemos da pesca predatória que devasta oceanos, do mercúrio nos peixes e do plástico matando tartarugas. Faz tempo nós sabemos dos defensivos agrícolas que causam câncer e matam abelhas. Faz tempo nós sabemos o tamanho do lixo que produzimos todos os dias.

Faz tempo nós sabemos dos problemas causados pelos alimentos ultraprocessados e que o excesso de sal, açúcar, gordura e carne, nos são prejudiciais. Faz tempo nós sabemos do mal causado pelo cigarro, pela bebida alcoólica e pelas armas. Faz tempo nós sabemos da pedofilia, do estupro, do feminicídio e da violência contra a mulher.

Faz tempo nós sabemos de empresários e executivos que corrompem, e de políticos corruptos. Faz tempo nós sabemos dos juros de 150% ao ano cobrados nos empréstimos versus os 4% de juros pagos quando investimos nossas economias. Faz tempo nós sabemos do desumano trabalho análogo ao escravo nas grandes fazendas. Faz tempo nós sabemos de margens astronômicas em medicamentos patenteados, que já se pagaram há muito. Faz tempo nós sabemos da vergonhosa mercantilização da fé. Faz tempo nós sabemos de médicos que assinam seus plantões enquanto estão em seus consultórios.

Faz tempo nós sabemos dos preconceitos étnico, social, de origem geográfica, religioso, de gênero e contra os homossexuais. Faz tempo sabemos de muita coisa. E igualmente faz tempo que nada ou quase nada fazemos para mudar essas coisas. 

Saber, tomar ciência, pode ser um bom primeiro passo, contudo, já não é mais suficiente. É bom viver assim? Estamos satisfeitos com esta nossa sociedade? Sim, nossa sociedade, não apenas porque nela vivemos, mas também porque por ação ou omissão, avalizamos e reforçamos sua rota. A pergunta é: o quanto temos feito para mudar o famoso "tudo isso que está aí"?

Podemos finalmente tomar coragem e decidir que essa não é a sociedade que queremos e que compete a cada um de nós modifica-la. E, então, partiremos da simples ciência do erro para a correção do mesmo. Será uma sociedade onde cada um cuidará de emendar-se e se responsabilizará fortemente, também por agir de forma efetiva na promoção da melhora da humanidade. Se assim decidirmos, veremos um enterro e um parto.

O enterro do velho homem parte de uma sociedade insustentável e em franca decomposição. Será o fim de uma sociedade que já não mais atende as aspirações de uma humanidade que anseia e está pronta para algo melhor, uma renovação. E assistiremos também a um parto; o nascimento de uma nova sociedade mais justa, mais fraterna e mais serena. Uma sociedade pautada por um novo contrato social, que de fato promova o bem de todos, onde todos compreendamos que o bem de cada um é nosso maior ou único interesse.

O vírus — o paradoxal minúsculo-gigantesco invisível inimigo  nos dá um ultimato e dá também algum tempo extra para que pausemos, reflitamos e, tomara, retomemos a razão. Talvez, o que nos faltasse, fosse um tranco mais duro para que saíssemos da letargia. Não falta mais.

A Deus, toda glória.
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