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segunda-feira, 8 de agosto de 2016

DISCOS QUE EU OUVI - 17: BELCHIOR - "ALUCINAÇÃO"

A ideia é falar de um disco que considero fundamental, mas esta é uma opinião muito particular tendo como objetivo apenas compartilhar com meus leitores os discos que ouvi ao longo dos meus 30 e poucos anos de "vida adulta". Como já deixei bem claro desde o primeiro artigo, nessa série não destaco música por rótulo segmental. Destaco música, simplesmente música, sem rótulos ou segmento específico.

Brilhante alucinação


Em 2012, o jornal O Povo, um dos mais tradicionais jornais de Fortaleza, fez uma pesquisa entre críticos e internautas para saber qual é o melhor disco da Música Cearense de todos os tempos, foi uma disputa difícil entre os álbuns citados, constam os discos de estreia solo dos cantores Raimundo Fagner, "Manera Fru Fru" (1973) e Ednardo, "O Romance do Pavão Mysterioso" (1974), "Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem" (1973) de Ednardo, Rodger e Teti, disco que deu origem ao movimento Pessoal do Ceará e o antológico disco manifesto "Massafeira" (1980), porém o grande vencedor entre críticos e internautas foi o segundo álbum do cantor Belchior, "Alucinação" lançado em 1976 pela Polygran, com dez canções todas de sua autoria.

Afinal, o que esse álbum tem de tão especial para ser uma unanimidade cearense? Em minha opinião três pontos são fundamentais: o momento histórico do disco que Belchior descreve tão bem, a repressão que os artistas viviam através da censura: 
♫♪...Por favor, não saque a arma no 'saloon' eu sou apenas um cantor / 
Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirar / Mate-me logo, à tarde, às três, que à noite tenho um compromisso / E não posso faltar por causa de você.♫♪ 
Seria uma mensagem aos militantes, que eles não tinham o que temer os cantores, que apenas queriam cantar o que pensam, "...Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro"..., evidencia a esperança de dias melhores e mais liberdade. As letras de, modo geral, transmitem diversas interpretações e temáticas, como solidão urbana, violência, cotidiano, desencontros habituais, formando um grande painel de sua geração.

O segundo ponto seria o repertório do disco, um verdadeiro desfile de canções que se tornariam clássicos no repertório de Belchior, destacando a faixa inicial [01] "Apenas um Rapaz Latino Americano". Uma canção biográfica que se inicia citando sua origem latino-americana e humilde, a letra cita ainda trecho da canção "Divino Maravilhoso", de Gilberto Gil e Caetano Veloso, que diz: "Tudo é divino! Tudo é maravilhoso!", ao finalizar a canção, se posiciona contrário àquela visão exposta anteriormente afirmando: "Mas sei que nada é divino / Nada... / Nada é maravilhoso, nada... / Nada é secreto, nada"

[08] "À Palo Seco" mais uma vez a influência latino-americana aparece forte. Há diversas teorias ou definições que tentam explicar o título, que nitidamente faz referência a um poema de João Cabral de Melo Neto e é uma de suas canções mais regravadas, além do autor, que gravou em seu primeiro disco, "Mote e Glosa" (1974), foi registrada também por Raimundo Fagner, no álbum "Ave Noturna" (1975), e por Ednardo em "O Romance do Pavão Mysterioso". Oswaldo Montenegro também gravou uma versão acústica desta canção no DVD "Um Barzinho e Um Violão", de 2001. A banda carioca Los Hermanos incluiu a canção sem suas apresentações, citando a influência de Belchior. 

[03] "Como Nossos Pais" talvez seja o grande clássico de Belchior, a letra, atemporal, critica a acomodação dos jovens diante dos problemas da vida, virou o hino de uma geração, a canção também foi um grande sucesso da cantora Elis Regina (1945-1982), gravada no disco "Falso Brilhante" de 1976, a música trouxe para Elis - em uma interpretação de tirar o fôlego-, uma aproximação com a linguagem pop, coisa que nunca ocorrera antes.

Clássica alucinação


A alucinação é o mote ideal dos versos compostos pelo cantor Belchior. Sua visão poética da metrópole paulistana da década de 1970 ainda dialoga com a nossa época, assim como a tradição enraizada nas mentes dos jovens militantes do período nebuloso do país, profetizando que no fim "ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais".

Belchior, maestro genioso, de voz grave, não precisava de gogó, somente necessitava declamar os versos de um simples rapaz latino americano que brigou pela liberdade de expressão, mudanças sociais e o conflito interno de se encaixar na sociedade múltipla, desencadeou em um nesse clássico da música brasileira.

No disco, sucessos que consagraram Belchior e, sem exagero, transformaram-no em uma lenda viva. "Como Nossos Pais" e [02] "Velha Roupa Colorida", de seus versos imortalizados na voz única de Elis Regina, transcenderam para a vida de gerações. O árduo serviço de um poeta que transmitiu a angústia da tradição familiar grudada na juventude, em que demonstra a rebeldia passageira, mas necessária de enfrentamento da vida, tendo como combustível a raiz cultural e o não abandono do sonho, sangue e América do Sul, muito a presença da identidade que construímos – ditas em "À Palo Seco".
♫♪[…]Tenho 25 anos de sonho, de sangue / E de América do Sul / Por força deste destino / Um tango argentino / Me vai bem melhor que um blues / Sei que assim falando pensas / Que esse desespero é moda em 76 / E eu quero é que esse canto torto feito faca / Corte a carne de vocês.♫♪
A força desta música invade o interior da mente e luta contra a moda exterior, finca a necessidade da cultura em que está inserido de nascença, não negando o lirismo e o jogo poético elaborado pelo cantor.

O ponto de vista contra o governo militar é outro aspecto importante de "Alucinação". Em [05] "Como o Diabo Gosta" nota-se um anúncio para luta contrária à conduta militar, rasgando regras e, principalmente, o embate do novo e a tradição imposta:
♫♪Não quero regra nem nada / Tudo tá como o diabo gosta, tá, / Já tenho este peso, que me fere as costas, / E não vou, eu mesmo, atar minha mão. / O que transforma o velho no novo bendito fruto do povo será. / E a única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter; / É nunca fazer nada que o mestre mandar. / Sempre desobedecer. Nunca reverenciar."♫♪

Apenas um rapaz latino americano


"Alucinação" transmite diversas interpretações, mas no período em que foi lançado é possível identificar as críticas direcionadas ao sistema ditatorial vigente. Não que o álbum esteja parado no tempo. Existe muito em se encontrar nas letras geniais de Belchior na nossa geração (e, certamente nas vindouras). Em [06] "Alucinação" o cotidiano é fonte de inspiração do poeta Belchior, as passagens em uma metrópole heterogênea, dos acontecimentos e desencontros habituais.

Teorias negadas, pois a convivência é que se torna prática, observar à espreita as situações problemáticas e tentar entendê-las ou transmitir o que era antes negado pela sociedade. No entanto, embutido a isto está presente a solidão urbana, o individualismo ainda em construção – sinal profético de Belchior para a globalização e suas práticas  – , os vocábulos que vem de fora introduzidos na rotina e a violência gratuita acostumada no concreto cinza manchado de vermelho.
♫♪[…] A minha alucinação é suportar o dia-a-dia / E meu delírio é a experiência com coisas reais / Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha / Blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais / Garotas dentro da noite, revólver: cheira cachorro / Os humilhados do parque com os seus jornais / Carneiros, mesa, trabalho, meu corpo que cai do oitavo andar / E a solidão das pessoas dessas capitais / A violência da noite, o movimento do tráfego / Um rapaz delicado e alegre que canta e requebra, é demais / Cravos, espinhas no rosto, Rock, Hot Dog, 'play it cool', Baby / Doze Jovens Coloridos, dois Policiais / Cumprindo o seu (maldito) duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida / Cumprindo o seu (maldito) duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida […]♫♪

Compositor preocupado que cegou a censura e tentou acordar os alienados, aquela sensação mórbida pede urgência em rasgar a carne e transmitir na consciência uma nova fuga. Para onde? Não importa, o necessário é subir no muro e enxergar o horizonte. Belchior enxergou, foi além! Alucinado ou não, o instrumento utilizado por Belchior, suas canções, é cortante e invade a mente das gerações.

Conclusão


"Alucinação" é insano, atemporal e célebre, seu construtor um gênio de nossa música brasileira. Belchior, misterioso latino americano, transcendeu suas letras e moldou a mente de gerações. O disco - que em 2016 comemorou 40 anos de seu lançamento -, é importante registro que dialoga com os nossos dias e nossas condutas, faz sua própria regra, transmite interpretações diversas e consagrou Belchior como um dos expoentes da nossa cultura.

Sem sombra de dúvidas, Belchior é um dos maiores compositores de todos os tempos da nossa música popular, as sutilezas poéticas de sua obra são encantadoras, emocionam e gozam de uma liberdade que, por vezes, podem ser comparadas às genialidades de Fernando Pessoa e Bob Dylan. 

Se Bel queria mesmo que seus versos, feito faca, cortassem a nossa carne, ele conseguiu. Porque a juventude do nosso coração é perversa e nos faz sofrer, perceber que "ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais". Nesse mundo, é difícil não querer o a cabeça pensa, querer o que a alma deseja, e enxergar que "a vida inteira está naquela estrada, ali em frente".

Resta-nos saber quais versos Belchior ainda guarda para nós "sob as dobras do blusão". Que discos tem ouvido? Com que pessoas tem conversado?

Ele é "apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior", mas soube compreender e cantar, como poucos, a nossa solidão, o nosso som, a nossa fúria e a nossa "pressa de viver".

Belchior continua sumido, mas seu cancioneiro vai reaparecer na abordagem de elenco indie. O álbum "Alucinação" abriu as portas das rádios e do sucesso popular para o cantor e compositor cearense projetado em 1972 com a gravação de "Mucuripe" (Fagner e Belchior) pela cantora gaúcha Elis Regina.

Viva Belchior!

  • 01. "Apenas um rapaz latino-americano" 
  • 02. "Velha roupa colorida" 
  • 03. "Como nossos pais" 
  • 04. "Sujeito de sorte"
  • 05. "Como o diabo gosta" 
  • 06. "Alucinação" 
  • 07. "Não leve flores"
  • 08. "À palo seco" 
  • 09. "Fotografia 3x4"
  • 10. "Antes do fim"

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