Total de visualizações de página

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

COMO OS CRISTÃOS LIDAM COM A CULTURA?

Cultura e fé. Será que estes termos são paradoxais ou existem pontos nos quais eles podem ser uniforme? Primeiro vamos conceituar o termo cultura: significa todo aquele complexo que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a lei, a moral, os costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano não somente em família, como também por fazer parte de uma sociedade da qual é membro. 

Já que o tema é cultura, não usarei um texto bíblico para basear este artigo e sim um trecho da Epístola escrita a Diagneto, obra de imensurável valor artístico e cultural da literatura cristã primitiva, da qual, infelizmente, pouco se sabe, cujo conteúdo se revela, simultaneamente, como crítica do paganismo e do judaísmo e defesa da superioridade do cristianismo em um texto com requintes linguísticos uma vez que foi destinado a um pagão de cultura erudita.

“Não se distinguem os cristãos dos demais, nem pela região, nem pela língua, nem pelos costumes. (…) Seguem os costumes locais relativamente ao vestuário, à alimentação e ao restante estilo de viver, apresentando um estado de vida admirável (…). Enquanto cidadãos, de tudo participam, porém tudo suportam como estrangeiros. (…) Se a vida deles decorre na terra, a cidadania, contudo está nos céus. Obedecem as leis estabelecidas, todavia superam-nas pela vida. Amam a todos, e por todos são perseguidos (…). Para simplificar, o que é a alma no corpo são no mundo os cristãos.” - Epístola a Diagneto, 5-6

Portanto, antes de falarmos da relação do cristão com a cultura, é necessário definirmos o que é cultura. Conforme o conceito acima, o sentido amplo, refere-se ao cultivo de hábitos, interesses, língua e vida artística de uma nação: histórias, símbolos, estruturas de poder, estruturas organizacionais, sistemas de controle, rituais e rotinas. Tudo o que caracteriza uma realidade social de um povo ou nação, ou então de grupos no interior de uma sociedade: valores, atitudes, crenças e costumes.

Não raro o cristão se torna uma subcultura dentro de uma nação. Ele tem seus valores, atitudes, crenças e costumes. Mas daí, surgem as perguntas: O cristão pode participar das festas nacionais? O cristão pode beber? Como o cristão lida com arte, cinema, etc.? O cristão pode ser um diretor, ator, etc.? O cristão pode ouvir música do mundo? Como o cristão lida com economia, política, filosofia, ciência, história...? O cristão deve impor sua cultura quando sai em missões? O que pode ser tolerado? O que deve mudar?

Modelos de como os cristãos lidaram com a cultura ao longo da história


Para falar sobre o cristão e a cultura, precisamos lembrar que a igreja não nasceu em nossa geração. Temos que ser humildes e olharmos para a história da igreja para ver como os cristãos do passado lidaram com a cultura.

H. Richard Niebuhr (1894-1962), apresentou em seu livro Cristo e Cultura Cinco Categorias de Classificação do Relacionamento Entre o Cristão e a Cultura, fornecendo, assim, ferramentas para descrever a forma que os cristãos encaram questões sociais, éticas, políticas e econômicas.

1. O cristão contra a cultura


Os que seguem esta corrente enfatizam que, diante da natureza decaída da criação, é necessário que se criem estruturas alternativas, e que estas sigam mais de perto o chamado radical do evangelho. Esta posição foi afirmada no Didaquê, na Primeira Epístola de Clemente, e nos escritos de Tertuliano (c.160–c.225) e dos anabatistas do século XVI, como Michael Sattler (c.1490–1527).

Resumidamente, a cultura é caída, má e demoníaca; rejeite-se, portanto, tudo. Exemplos:

“A filosofia é a matéria básica da sabedoria mundana, intérprete temerária da natureza e da ordem de Deus. De fato, é a filosofia que equipa as heresias… Ó miserável Aristóteles! Que lhes proporcionaste a dialética, esse artífice hábil para construir e destruir, esse versátil camaleão que se disfarça nas sentenças, se faz violento nas conjecturas, duro nos argumentos, que fomenta contendas, molesta a si mesmo, sempre recolocando problemas antes mesmo de nada resolver. 
Por ela, proliferam essas intermináveis fábulas e genealogias, essas questões estéreis, esses discursos que se alastram, qual caranguejos, e contra os quais o Apóstolo nos adverte na sua carta aos Colossenses: ‘Cuidado que ninguém vos venha a enredar com suas sutilezas vazias, acordadas às tradições humanas, mas contrárias à providência do Espírito Santo’. 
Este foi o mal de Atenas… Ora que há de comum entre Atenas e Jerusalém, entre a Academia e a Igreja, entre os hereges e os cristãos? Nossa formação nos vem do pórtico de Salomão, ali nos ensinou que o Senhor deve ser buscado na simplicidade do coração. 
Reflitam, pois, os que andam propalando seu cristianismo estóico ou platônico. Que novidade mais precisamos depois de Cristo? […] Que pesquisa necessitamos mais depois do Evangelho? Possuidores da fé, nada mais esperamos de credos ulteriores. Pois a primeira coisa que cremos é que para a fé, não existe objeto ulterior.” (Tertuliano, De praescr. haeret., VII)

“Quarto, unimos nossas forças no que diz respeito à separação do mal. Devemos nos afastar do mal e da perversidade que o diabo semeou no mundo, para não termos comunhão com isso e não nos perdermos na confusão dessas abominações. 
Aliás, todos que não aceitaram a fé e não se uniram a Deus para fazer a sua vontade são uma grande abominação aos olhos de Deus. Deles não poderão acrescentar ou surgir nada mais do que coisas abomináveis. 
Não existe nada mais no mundo e em toda a criação do que o bem e o mal, crentes e incrédulos, trevas e luz, os que estão no mundo e fora do mundo, os templos de Deus e dos ídolos, Cristo e Belial, e nenhum deles poderá ter comunhão um com o outro. 
Para nós, pois, é obvio o imperativo do Senhor, pelo qual nos ordena que nos afastemos e nos mantenhamos longe dos maus. Assim, ele será nosso Deus e nós seremos seus filhos e filhas. Além disso, ele nos exorta a abandonar a Babilônia e o paraíso terreno egípcio, para não passar pelos sofrimentos e dores que o Senhor enviará sobre eles. 
(…) Devemos nos afastar de tudo isso e não participar com eles. Porque tudo isso não passa de abominações, que nos tornam odiosos diante do nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos libertou da escravidão da nossa natureza pecaminosa e nos tornou aptos para o serviço de Deus, por meio do Espírito que nos ortogou.” (Confissão de Schleitheim, IV)

2. O cristão da cultura


Os ensinos do evangelho têm íntima relação com as estruturas culturais, num processo de acomodação a esta. Ou seja, toda e qualquer cultura é incorporada no cristianismo.

Apesar das objeções que são lançadas a esta posição, ela tem sido influente na história da igreja. Os ensinos de gnósticos do século III, Abelardo de Paris (1079–1142) e dos teólogos liberais do século XIX refletem esta posição. A igreja evangélica na Alemanha, por influência deste entendimento, trocou seu nome para Igreja do Reich e seus pregadores juraram obediência a Hitler.

O fundamentalismo americano acabou espelhando esta posição, afirmando os valores básicos da cultura dos Estados Unidos. Aqui no Brasil, se por um lado rejeitamos toda cultura local (o cristão contra a cultura), por outro acabamos abraçando a cultura americana (o cristão da cultura), como se ela fosse uma cultura cristã e achamos que uma cultura é intrinsecamente superior a outra.

3. O cristão acima da cultura


Este é o conceito católico, influenciado por Clemente de Alexandria (c.150–c.215) e Tomás de Aquino (1225–1274), que busca uma unidade entre o cristão e a cultura, onde toda a sociedade aparece hierarquizada. Na Idade Média o ensino eclesiástico alcançou quase todos os aspectos da sociedade: suas práticas religiosas formaram o calendário; seus rituais marcaram momentos importantes (batismo, confirmação, casamento, ordenação) e seus ensinamentos sustentavam crenças sobre moralidade, significado da vida e a vida após a morte. A igreja e sua mensagem são institucionalizadas e o que deveria ser condicionado culturalmente é absolutizado. Neste terceiro modelo, o que é levado não é o evangelho, mas uma cultura.

4. O cristão e a cultura em paradoxo


Posição comumente associada a Martinho Lutero (1483-1546) e Søren Kierkegaard (1813-1855). Esta posição mantém o entendimento bíblico da queda e da miséria do pecado, e o chamado para se lidar com a cultura. A relação do cristão com a cultura é marcada por uma tensão dinâmica entre a ira e a misericórdia.

Lutero enfatizou este tema com sua doutrina dos “dois reinos”: a mão esquerda, mundana, segura a espada do poder no mundo, enquanto a mão direita, celeste, segura a espada do Espírito, a Palavra de Deus. Não se pode tentar coagir a fé, nem se pode tentar acomodar a fé aos modos seculares de pensamento.

Um exemplo: espancamento feminino. A mulher deve processar o marido? Nesta visão paradoxal, como cristã, ela não deveria (pois o crente não leva outro ao tribunal secular), mas como cidadã, sim. Então, a mulher vive um conflito paradoxal.

5. O cristão como agente transformador da cultura


A cultura deve ser levada cativa ao senhorio de Cristo. Sem desconsiderar a queda e o pecado, mas enfatizando que, no princípio, a criação era boa, os que estão nesse grupo enfatizam que um dos objetivos da redenção é transformar a cultura. Sendo assim, por mais iníquas que sejam certas instituições, elas não estão fora do alcance da soberania de Deus. Ou seja, mesmo sabendo da queda, o cristão não abandona a cultura (o cristão contra a cultura), mas busca redimi-la, levá-la aos pés de Cristo. 

É o princípio regido pelo apóstolo Paulo em sua epístola aos Romanos, capítulo 12, versos 1 e 2, texto amplamente pregado entre os cristãos. Em análise fria, o apóstolo não desconsiderava a cultura - aliás, não desconsiderava mesmo e isso ficou claro com a experiência vivida por ele em na Grécia, conforme registrado em Atos 17. 

À exemplo de Paulo, Agostinho (354-430), João Calvino (1509-1564), John Wesley (1703-1791) e Abraham Kuyper (1837-1920) são alguns dos que entenderam que os cristãos são agentes de transformação da cultura, posição que é exposta na obra de Niebuhr. Em Apocalipse, vemos que Deus redime tanto a pessoa, como a diversidade cultural.

Nesta posição, não há divisão entre o sagrado e o profano – essa é uma dicotomia católica (a divisão sagrado/profano afirma que na igreja fazemos atividades sagradas e, no mundo, atividades profanas; ou seja, rezar, ser padre é algo sagrado, mas construir um prédio e ser um engenheiro são coisas profanas). A divisão bíblica é entre o que é santo e está em pecado; e que está em pecado deve ser santificado.

O cristão como agente transformador (não anulador) da cultura


A afirmação de que o cristão é um agente transformador da cultura pode ser resumida na compreensão de que “uma vez que o homem é criado por Deus, parte de sua cultura será rica em beleza e bondade. Por causa da queda e do pecado do homem, toda a sua cultura [usos e costumes] está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca” (Pacto de Lausanne §10) — o evangelho nunca é hóspede da cultura, mas sempre seu juiz e redentor.

O Grupo de Teologia e Educação de Lausanne propôs um modelo hierárquico de ação sobre a entrada do evangelho na cultura (Relatório de Willowbank, 1978) que pode ser de auxílio em nosso trato com a cultura ao nosso redor.

Categoria de costumes


Como um missionário deve proceder em uma cultura diferente? O Relatório de Willowbank propõe uma relação quádrupla do cristão com a cultura:

  • Alguns costumes não podem ser tolerados, como a idolatria, infanticídio, canibalismo, vingança, mutilação física, prostituição ritual, entre outros.
  • Alguns costumes podem ser temporariamente tolerados [por uma geração], como a escravidão, o sistema de castas, o sistema tribal, a poligamia, entre outros. Há alguns costumes cujas objeções não são relevantes para o evangelho, como o costume de o homem e a mulher sentarem separados nos cultos, os costumes alimentares, vestimentas, hábitos de higiene pessoal, entre outros.
  • Assuntos secundários (adiáforos) sobre os quais há controvérsias mas que pode-se ter liberdade de análise, como escatologia, governo da igreja, ceia e batismo

Exemplo do ponto 2: quando chefes tribais polígamos se convertiam, eles eram obrigados pelos missionários a abandonar todas suas esposas, que ou morriam de fome ou se prostituíam, podendo morrer apedrejadas. Vendo isso, os missionários acharam uma medida sábia não exigir desse chefe tribal o abandono da poligamia, mas exigir tal atitude da próxima geração de cristãos.

Aplicação do ponto 3: Se você é um novo pastor, não tente mudar a cultura da igreja, se ela se encaixa neste nível. Pregue o evangelho!

Conclusão


É preciso reconhecer que nem sempre os cristãos conseguiram perceber a distinção entre mundo e cultura. Historicamente, grupos cristãos têm sido contra a ciência, a arte, a música e a literatura em geral, sem fazer qualquer distinção. 

Todavia, estes grupos fundamentalistas não representam a postura cristã para com a cultura e nem refletem o ensino bíblico quanto ao assunto. Os reformados, em particular, caracteristicamente sempre se mostraram sensíveis às artes e viam nelas uma manifestação da graça comum de Deus à humanidade. Apreciavam a pintura, a música, a poesia e a literatura. 

O grande desafio que Jesus e os apóstolos deixaram para os cristãos foi exatamente este, de estar no mundo, ser enviado ao mundo, mas não ser dele (Jo 17:14-18). Implica em não se conformar com o presente século, mas renovar-se diariamente (Rm 12:1-3), de não ir embora amando o presente século, como Demas (2Tm 4:10). É ser sal e luz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário