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quarta-feira, 17 de junho de 2020

CANÇÕES ETERNAS CANÇÕES — "O BÊBADO E A EQUILIBRISTA", ELIS REGINA

Recentemente voltou à pauta uma discussão sobre um assunto que ainda hoje gera desconforto em muitos brasileiros: o famigerado AI-5! E não faltaram polêmicas. Nesses tempos de tribunal inquisidor das redes/mídias sociais/digitais, também o que não têm faltado são os magistrados sempre a postos para baterem seus martelos, ou melhor, seus dedos (nos teclados dos dispositivos eletrônicos) e darem suas sentenças. 

E, no ambiente on line, o que também não faltam são especialistas, muitos deles com doutorado na em absolutamente nada, graduados na universidade da estupidez. Estes ilustres, saem dando seus pitacos, com tons e ares de verdades supremas, sem ter ao menos um mínimo de conhecimento das causas pautadas.

Fogo no paiol


As polêmicas começaram em outubro de 2019, após o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL/SP) ter levantado a possibilidade de um "novo AI-5" (ato institucional decretado pela ditadura militar em 1968 dando ao governo mais poderes autoritários) no país. A fala infeliz e desnecessária de Eduardo ocorreu em entrevista ao canal da jornalista Leda Nagle no YouTube, após uma pergunta sobre os protestos que à ocasião estavam ocorrendo no Chile.

Na fatídica entrevista, ele disse que um "novo AI-5" era uma possibilidade em caso de "radicalização da esquerda" no Brasil. Depois da forte reação negativa e de ser repreendido até pelo próprio pai, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o deputado se retratou e disse ter sido mal interpretado, em entrevista ao apresentador José Luiz Datena, no programa "Brasil Urgente", da Band. 

Pois é, mas o que, afinal foi o AI-5? Há mesmo alguma possibilidade de algo parecido vir a acontecer aqui no Brasil? E, seja sincero, você sabe mesmo o que foi o AI-5? Após todo o bafafá, com a chegada da pandemia do novo coronavírus, este foi mais um assunto abafado, já está sinalizado como "esquecido". Eu escrevi um artigo especial sobre o AI-5. Se for do seu interesse, segue o ➫ link. Mas, o que este assunto tem a ver com essa música sobre a qual vou falar neste capítulo da série especial de artigos Canções Eternas Canções? Tudo.

A canção e a letra

'O Bêbado e a Equilibrista' (Almir Blanc e João Bosco) - Elis Regina



Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco, o bêbado com chapéu coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil, meu Brasil

Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete

Chora a nossa pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar

Por que a composição de Aldir Blanc é uma ode à liberdade, o Hino da Anistia


Lançada em 1979 no álbum "Essa Mulher", de Elis Regina (✩1945/✟1982), 'O Bêbado e a Equilibrista' foi adotada pelos brasileiros como o Hino da Anistia, em referência à lei que concedeu perdão aos perseguidos políticos e abriu caminho para o retorno da democracia no país.

Composta por João Bosco e Aldir Blanc (✩1946/✟2020), foi originalmente pensada por Bosco como uma homenagem a Charlie Chaplin, falecido em 1977. A harmonia, por exemplo, tem passagens melódicas propositalmente parecidas com 'Smile', do filme "Tempos Modernos".

Assim como outras músicas escritas durante a ditadura, a letra de 'O Bêbado e a Equilibrista' é recheada de metáforas, utilizadas para denunciar a situação do país. Vejamos a análise estrofe por estrofe.
1. 'Caía a tarde feito um viaduto 
2. E um bêbado trajando luto 
3. Me lembrou Carlitos...
A frase número 1 faz referência ao otimismo que o Brasil vivia antes do golpe, logo, ela faz alusão a dois viadutos que caíram durante suas construções, um no Rio de Janeiro (elevado Paulo de Frontin) em novembro de 71. Segundo números divulgados, foram mais de 40 pessoas entre mortos e feridos (Não dá para saber se foi mais ou menos, pois a imprensa apoiava a ditadura e não divulgada fatos que deixassem o governo "mal visto"). Outro aqui mesmo, em Belo Horizonte em fevereiro do mesmo ano. foi um pavilhão que, projetado por Oscar Niemeyer (✩1907/✟2012) sob a ordem do governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro (✩1896/✟1973), também desabou sobre os operários, durante a hora de folga, ao meio-dia. 

Naquela época, havia um conjunto de construções que correspondia ao "milagre econômico" cuja ditadura tentava apresentar à população brasileira, para recuperar as antigas euforias dos períodos populistas — o Brasil recém campeão da Copa de 70 e as mirabolantes obras daquele tempo puderam até certo ponto maquiar a face sofrida do Brasil.

Frase 2 e 3 fazem referência a um dos personagens mais famosos de Charlie Chaplin: Carlitos. Um andarilho de chapéu-coco, bigode e um paletó muito apertado que, apesar de pobre, agia como um cavalheiro. Fica clara a contradição entre "bêbado" e "luto": a alegria do vagabundo que tenta driblar a situação e o estado melancólico da sociedade brasileira.

Uma forma mais direta: "Nosso otimismo que o Brasil vai continuar melhorando caiu igual caíram os viadutos no Rio e em BH, Isso me lembra o personagem do Chaplin"
4. A lua 
Tal qual a dona do bordel 
5. Pedia a cada estrela fria 
Um brilho de aluguel
O verso 4 e 5 retrata a lua em um sentido figurado. Lua não tem brilho próprio ela apenas reluz a luz do sol, então a mesma é comparada a dona de um bordel que explora alguns para fornecer prazer a outros e obter ganhos, pode representar os políticos que se "venderam" ao regime militar, em troca de benefícios pessoais, com os recursos "roubados" do país. Então temos: Lua = Dona do Bordel = Governo Militar / Estrela = Prostitutas exploradas = Povo explorado. 

A lua também pode ser uma alusão metafórica à logomarca da Rede Globo de Televisão, que à época foi a emissora que explicitamente apoiava a ditadura. As tais estrelas frias, no contexto, seriam os artistas contratados pela emissora, que, em busca da fama — ou seja, do brilho de aluguel — se vendiam.

O quarto e quinto verso traduzindo para uma forma mais direta: "Governo militar explorando o povo e recursos do país para ganhos pessoais"
6. E nuvens! 
Lá no mata-borrão do céu 
7. Chupavam manchas torturadas 
Que sufoco! 
8. Louco! 
Para os mais novos, mata-borrão era um papel que absorvia excessos de tinta das canetas-tinteiro para não haver erros. Esse também era o "apelido" dado ao DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação  Centro de Operações de Defesa Interna), que era um órgão de inteligência e repressão do governo durante o regime militar, destinado a combater inimigos internos que supostamente ameaçariam a segurança nacional. 

Mas na verdade era usado para torturar e até matar quem se manifestasse contra o regime. Os militares forjavam situações para incriminar quem fosse torturado ou morto. Isso é muito bem aludido nos versos 6 e 7.

O verso 8 era um adjetivo direto aos militares.

Uma forma mais direta: "La no DOI-COI eles forjam cenas ou situações para não parecer tortura ou homicídio. Que sufoco esses loucos nos colocam."
9. Meu Brasil 
Que sonha com a volta do irmão do Henfil 
10. Com tanta gente que partiu num rabo de foguete 
11. Chora a nossa pátria mãe gentil, 
Choram Marias e Clarisses no solo do Brasil
Nos versos 9 e 10 são referências a dois irmãos. Henfil (✩1944/✟1988) era o apelidado de Henrique de Souza Filho, um cartunista, quadrinista, jornalista e escritor que foi exilado, ele era irmão de Herbert de Souza, o Betinho (✩1935/✟1997), sociólogo e ativista de direitos humanos, também perseguido e exilado, como tantos outros brasileiros.

O verso 11 cita Clarice, que era esposa do jornalista Vladimir Herzog (✩1937/✟1975). Vladimir fazia parte do movimento de resistência contra o regime e teve um suicídio por enforcamento muito mal forjado em uma cela do DOI-CODI. Maria, por sua vez, era esposa do metalúrgico Manuel Fiel Filho (✩1927/✟1976), torturado até a morte sob a acusação de fazer parte do Partido Comunista Brasileiro, embora seu real crime tenha sido ler o jornal A Voz Operária. 

No plural, "Marias e Clarisses" são todas as mulheres, sejam mães, filhas ou esposas, que sofreram por alguém que fora torturado ou exilado. Além disso, destaca-se o tom de ironia ao rimar um refrão do Hino Nacional com Brasil, neste refrão, onde apresenta justamente um Estado que deveria nos proteger, mas que nos tortura.

Uma forma mais direta: "O Brasil sonha com o volta de todos os exilados e chora por todas as pessoas mortas por um estado que deveria nos proteger." 
12. Mas sei, que uma dor 
Assim pungente 
13. Não há de ser inutilmente 
A esperança...
Nos versos 12 e 13 o compositor manda uma mensagem de esperança a todos que estão lutando desde o início do golpe.

Uma forma mais direta: "Nossas lutas e nossas dores valerão a pena. Existe uma esperança"
...Dança na corda bamba 
De sombrinha 
E em cada passo 
Dessa linha 
Pode se machucar... 
Azar! 
A esperança equilibrista 
Sabe que o show 
De todo artista 
Tem que continuar..."
Há uma história brasileira do início do século XX, baseada na vida de Zequinha de Abreu (✩1880/✟1935), compositor de 'Tico-Tico no Fubá', um músico que se apaixona pela trapezista de um circo e compõe uma valsa homônima à moça chamada 'Branca'

Assim, ele rompe seu noivado para seguir a caravana circense, mas se decepciona e volta à terra natal, onde vive seu casamento deprimido e começa a tocar em bailes de carnaval seu grande sucesso ('Tico-Tico no Fubá'). Eis que um dia a vê entrando no salão com o marido e interrompe o chorinho que dá nome ao filme e começa a tocar 'Branca'. Tocada pela emoção de ouvir sua música ela vai a seu encontro, mas Zequinha abandona o piano e sai desesperado pelos fundos do clube e acaba morrendo em seus braços num ataque cardíaco fulminante.

Uma forma mais direta: "Vamos continuar lutando, sabendo que no final haverá morte, mas temos que fazer isso, não temos opção". Ainda que o período fosse de incertezas, tanto o povo quanto a classe artística deveriam seguir em frente, equilibrando suas esperanças na corda bamba. Afinal, a vida só tem um sentido: a frente.

Conclusão


Em 1964 um golpe militar derrubou o governo de então presidente João Goulart (✩1919/✟1976), estava instaurada a ditadura no Brasil que duraria 21 anos (até 1985).

Foi um período de muita conflito interno no Brasil, algumas pessoas contra, outras a favor da opressão imposta pelos militares.

E umas das canções brasileiras que contam com detalhes os sentimentos e os fatos ocorridos durante esse período foi essa composta em 1979 por Aldir Blanc (que faleceu em 4 de abriu, com infecção generalizada em decorrência do novo coronavírus) e João Bosco, gravada e imortalizada com a interpretação irrepreensível de Elis Regina, tendo, sem sombra de dúvida, merecimento não só desse capítulo da série, quanto do meu carimbo de 
A Deus toda glória. 
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