Eu nasci no ano de 1967, em plena efervescência do período da Ditadura Militar. Passei toda a minha infância, adolescência e parte de minha juventude sob esse regime político. Vivi a conturbada transição democrática. Pintei a cara, fui para as ruas e gritei “Diretas Já!”. Participei dos comícios que lotaram a Praça Sete, o marco zero da capital Belo Horizonte. Vi a volta dos brasileiros exilados com a aprovação da Anistia. E, ao contrário de grande parte dos jovens da minha época, eu era politizado. Me interessava pelo que estava acontecendo no meu país. Não era um mero “maria-vai-com-as-outras” como a maioria que era doutrinada pelas ideologias esquerdistas. Eu sabia o que queria para minha nação.
Por isso, tudo o que se refere a esse período sempre me desperta um interesse especial: livros, filmes, peças e até mesmo as não sempre fiéis obras da teledramaturgia. “1968: O ano que não terminou” – (Editora Nova Fronteira, 1988, 159 páginas), escrito pelo jornalista Zuenir Ventura é resultado de uma pesquisa de 10 meses em jornais e revistas, onde Zuenir fez a reconstituição de um dos anos mais contraditórios e fascinantes de toda a historia.
O cenário do “ano eterno”
Marcado pelo radicalismo e pela polarização ideológica, 1968 foi palco de revoluções culturais, políticas e sociais em todo o mundo. No Brasil vivia-se a Ditadura Militar, os estudantes iam às ruas como forma de resistência, protestar e travar combates com a policia. Testemunha e participante desses tempos, Zuenuir vai além dos registros jornalísticos em seu romance sem ficção. Apesar do rigor histórico em que os acontecimentos são reconstituídos, ele conta de forma íntima e conceitual uma aventura de toda uma geração.
A história começa num réveillon promovido pelo casal Luís e Heloísa Buarque de Hollanda, à moda de uma revolução comportamental.
“O som combinava carnaval com Iê Iê Iê e os trajes se apresentavam variados – smokings, longos, míni saia e roupas hippies de luxo”,
escreve o jornalista. Uma premonição do estado de espírito que seria predominante no período. Nem sempre a atitude libertária naquele período era uma prática liberal. A viagem experimental dessa geração resultaria numa série de contradições.
Numa geração onde cada vez mais a juventude era marginalizada pela ditadura, os jovens se tornavam presas fáceis para o pensamento esquerdista. Os pensadores comunistas tinham preferência dentre o público universitário. Nessa época, os best sellers eram Marx, Mao, Guevara e, principalmente, Marcuse, que defendia que as minorias do sistema tinham vocação natural para serem revolucionárias.
Antigamente lia-se como hoje em dia se acessa a internet. Era o cenário ideal para discussões. A moda era politizar e militar.
“O cheiro de gás lacrimogêneo, o coro de ’abaixo a ditadura‘ pareciam incorporados à paisagem urbana daqueles tempos”,
aponta Zuenir.
Dentro de tantos acontecimentos marcantes do ano, talvez a lendária Passeata dos 100 mil fosse o principal marco simbólico da força estudantil. Resultado de uma série de fatos trágicos que chocaram e indignaram não só o movimento estudantil, mas também a população, a passeata contou com o apoio de vários outros segmentos da sociedade como mães, padres e professores.
O primeiro vetor que levou à passeata foi o confronto com a polícia no restaurante Calabouço, que resultaria na morte do jovem Edson Luís. Seria o primeiro incidente que sensibilizou a opinião pública para a luta estudantil. Depois, a repressão da polícia na porta da igreja Candelária indignaria a todos, porém, a sexta-feira sangrenta que levaria a população a tomar partido e entrar na guerra.
Sexta-feira, 13; AI-5
Naquele ano a ditadura endurecia. O presidente Costa e Silva assinava o AI-5 em Dezembro numa sexta feira 13. Os jornais registravam como “rumores alarmantes” a possibilidade do ato que anularia os direitos civis dos cidadãos e concentrava todo o poder ao Executivo. Com a proibição da Frente Ampla, movimento político liderado por Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda, tornara-se difícil lutar pela liberdade através do dialogo. Dentre os vários motivos que o presidente foi levado a assinar a medida estavam a rebeldia estudantil e a insubordinação do Congresso Nacional.
O ano de 1968 representou um momento de rupturas e novas propostas referentes ao comportamento e à política. Foi um ano marcado de manifestações por todo o mundo, em que os jovens tomavam a frente, derrubando antigos dogmas e sacudindo as tradições e o poder. Em “1968, o ano que não terminou”, Zuenir Ventura reconstitui o ano de 68 no Brasil em forma de romance, traduzindo os acontecimentos pelos relatos dos personagens que viveram e participaram dessa época.
A composição literária do livro
- O Réveillon da Helô
O livro é dividido em quatro partes. Em sua primeira parte, subdividida em seis capítulos, conta o comportamento e os acontecimentos primordiais daquela nova geração. Começa relatando o famoso Réveillon de Helô, que é considerado por Zuenir o marco inicial das mudanças que viriam balançar o conturbado ano. Logo no início, ressalta a reorganização do movimento estudantil causado pela nova constituição.
A nova geração redefine a mudança no comportamento, à necessidade de liberdade. Liberdade de expressão, por exemplo, com Caetano Veloso nas bancas com “Alegria, Alegria”. A liberação sexual, o ano em que as pílulas anticoncepcionais começam a fazer parte da vida feminina. Essa nova geração é, de cara, comparada com a de Paris. Entretanto, o fenômeno ocorrido no Brasil é muito mais ampliado. O poder jovem é grande. Suas ideias, conforme eu já disse, são baseadas em grandes nomes da filosofia como Marcuse, Marx, Mao.
A leitura excitava a imaginação desses jovens para a revolução e abria uma discussão contra o capitalismo. Porém, a grande discussão baseava-se em como derrubar a ditadura. A linha esquerdista defendia um enfrentamento, enquanto o Partidão acreditava na acumulação de forças. Essa disputa era demonstrada claramente nas manifestações pelos slogans de cada lado. Os estudantes organizavam passeatas contra a ditadura, torciam pela vitória dos vietcong na guerra, politizavam tudo. E acabavam abrindo espaço para a direita se deliciar, dizendo que eles deviam se preocupar mais com as aulas do que com a política, já que os estudantes passavam mais tempo distante das aulas. Na verdade, eram estudantes que faziam tudo, menos estudar.
- Morre um estudante... barbárie no Calabouço
Na segunda parte, Ventura mostra outro acontecimento importantíssimo para os fatos decorrentes em 1968: a morte do estudante Edson Luís Lima Souto, que jantava no restaurante Calabouço, uma espécie de QG dos estudantes, por um policial, que mobilizou o Rio de Janeiro. A cidade parou para o enterro do jovem. Houve uma manifestação política, pacífica e inesquecível, que uniu não apenas estudantes, mas várias pessoas que se horrorizaram com o fato. O autor também conta as agitações do governo que havia sido provisoriamente transferido para Porto Alegre e o decreto do AI-5, um pretexto para o golpe dentro do golpe.
Nessa mesma parte, relata-se o acontecido na porta da Candelária na missa em homenagem a Edson. Após todos esses eventos, Costa e Silva promete que o Brasil não se transformaria em uma nova Paris. Porém, sua promessa é quebrada nos dias 19, 20 e 21 (quarta, quinta e sexta-feira). Principalmente na “sexta-feira sangrenta”, o dia marcado pelo ataque do povo e dos estudantes a polícia, uma sequência de batalhas como nunca havia se visto. Na quarta-feira seguinte à Sexta-feira Sangrenta, aconteceu a Passeata dos 100 Mil.
Logo ao final do penúltimo capítulo - “Cutucando a onça” - é relatado o convite pelo presidente para uma audiência especial com os estudantes. A verdadeira realização da audiência foi conturbada, já que alguns alunos não trajavam roupas permitidas pelo protocolo. No final das contas, a “comissão dos 100 mil” pôde ser recebida por Costa e Silva. O presidente queria convencê-los de que resolveria todos os problemas e de que seu governo era democrata. Zuenir demonstra de forma brilhante no último capítulo dessa parte o quanto esse tempo de exaltação serviu de laboratório para os órgãos de informação, já que havia sempre alguns seguranças disfarçados nas passeatas.
- Caminhando e cantando...
A terceira parte vai de setembro até o desfecho da crise, em dezembro. O autor conta como o III Festival Internacional da Canção foi transformado em uma intolerância, exibido a todo Brasil, ao vivo e ao som de vaias. Nesse período, o Brasil vinha se transformando em uma sucessão de problemas.
Em 1º de outubro, era denunciado na Câmara um plano de oficiais da Aeronáutica que previa o sequestro de 40 líderes políticos que seriam lançados a 40 quilômetros da costa, no oceano, pelo Para-Sar. Depois de a imprensa tomar conhecimento do caso, os estudantes se rebelaram. No capítulo “Um certo cheio de pólvora” conta-se o fracasso do XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, que foi invadido pelo governo e ainda levou alguns clandestinos ao exílio.
- God save the queem
Na última parte do livro, parte IV relata a “Trégua da Rainha”. Foram 10 dias em que a rainha Elisabeth II, da Inglaterra e seu marido, Philip, visitaram o Brasil e as crises foram adiadas até a saída dela do país. Em “A capitulação”, o autor conta a aceitação do pedido para o AI-5, em que o presidente estava decidido a capitular.
O esboço virou o AI-5 e o Congresso foi fechado. O AI-5 teve 10 anos de vigência, censurou antes de ser editado e prendeu antes de ser anunciado publicamente. No último capítulo do livro “Nunca mais”, Zuenir Ventura termina declarando:
“1968 entrava para a História, senão como exemplo, pelo menos como lição”.
Conclusão
Em seu livro, Zuenir relata como nunca havia sido feito antes o ano de 1968, de uma forma brilhante. Seu mergulho nessa geração demonstra a paixão com que foram à luta. O livro foi feito 20 anos depois. Mas, é possível sentir durante a leitura toda a exaltação daquele ano. Agora, 49 anos mais tarde, o livro, reeditado traz novamente esse sentimento a tona. “1968: o ano que não terminou” é, sem dúvida, o mais importante e fiel relato dos acontecimentos de 68 no Brasil.
“1968: O ano que não terminou” realmente faz jus ao seu titulo de best seller. Zuenir Ventura consegue contar a historia de forma muito íntima e fiel aos fatos históricos. Ao mesmo tempo, passa certa dramaticidade que nos instiga à história. A maneira de contar separadamente os acontecimentos em capítulos distintos amplia a percepção sobre os fatos. O humor e a ironia que Zuenir usa ao comentar um depoimento ou uma situação, aproxima o leitor da história.
A apresentação das personagens também merece destaque. Ao citar depoimentos de entrevistas da época, vinte anos atrás o autor faz um paralelo de antes e depois de 68 de alguns personagens, como no caso de Vladimir Palmeira, líder radical da UME na época de 68 e, vinte anos mais tarde, um deputado vitalício que luta em favor do povo. Sem dúvida um livro fascinante. Já o li 3 vezes e certamente lerei outras tantas, sempre como se estivesse lendo a primeira vez.
A Deus toda glória.
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