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terça-feira, 1 de março de 2022

CONTÉM SPOILERS — "CORINGA"

Desde o fim da trilogia do "Cavaleiro das Trevas" (2008, 2012, 2016), dirigida por Christopher Nolan, apesar do sucesso de "Mulher-Maravilha" (2017) e "Aquaman" (2018), a DC/Warner já não fazia filmes tão complexos e profundos. As duas obras citadas, ainda que tenham certa qualidade, se mantiveram em roteiros engessados seguindo a infalível fórmula da jornada do herói. Essa "bolha de gesso" foi furada com enigmático "Coringa" (2019).

Nessa análise abordaremos como um sistema de má qualidade pode prejudicar uma pessoa que precisa de ajuda. Atenção, como diz o título desse série especial de artigos: esse conteúdo contém muitos spoilers. Então se você ainda não viu o filme e não quer estragar as surpresas, por enquanto, não veja esse conteúdo.

O meio é a mensagem


Assistir "Coringa" não é — definitivamente — uma coisa tranquila. Em uma instância mais superficial, trata-se de, no mínimo, um filme muito violento. 

Porém, não acredito ter sido este o objetivo do diretor. Me pareceu muito mais um dispositivo para fazer pensar sobre nosso futuro ou sobre o quanto 
"o meio é a mensagem", 
como diria o canadense Marshall McLuhan.

Em outras palavras: "Coringa" joga na cara do espectador o quanto o sistema dominante — e operante — é responsável por esse mundo cada vez mais louco e tenso, para usar uma das frases que abre o filme.

Coringa, a origem


O filme conta como surgiu o maior vilão do Batman, o Coringa. Arthur sempre tentava ser educado e gentil com as outras pessoas, mas infelizmente não era tratado da mesma maneira por elas. 

Arthur tem uma deficiência neurológica, e também tinha consciência da existência dela. Por causa dessa deficiência ele não conseguia expressar de outra maneira seus sentimentos como nervosismo, tristeza ou ansiedade a não ser com gargalhadas.

Criar uma história de origem para o Coringa, um dos vilões mais aclamados do universo dos quadrinhos, foi uma escolha corajosa, principalmente pelo personagem não ter uma origem bem definida. 

Nos quadrinhos, estipula-se que tenham surgido em momentos diferentes ao menos três Coringas! O que torna a origem do vilão ainda mais misteriosa e inexplicável, como se ele fosse mais um fantasma capaz de ser personificado por qualquer um do que propriamente uma construção individual.

Compreendendo Arthur Fleck


O diretor Todd Phillips ("Se Beber, Não Case!": I, 2009 - II, 2011 e III, 2013; "Cães de Guerra", 2016) optou por um ótimo caminho ao especificar desde o início que Arthur Fleck (Joaquim Phoenix — "Os Donos da Noite", 2008; "Gladiador", 2009) era um homem transtornado com muitos problemas psicológicos. 

No começo de "Coringa", apesar das dificuldades e viver em certo estado de miséria, Arthur conseguia se virar com o trabalho de palhaço em uma agência de talentos em que passava o dia segurando uma placa. 

Além disso, trabalhava como palhaço em um hospital, como um doutor da alegria. Pouco a pouco sua vida desmoronou, como quando um grupo de garotos rouba a sua placa. Depois de correr atrás deles, é encurralado em um beco, a placa foi quebrada em sua cabeça e foi espancado covardemente, sem qualquer motivo plausível, além de um sadismo desumano. À partir daí é que tudo desanda.

Crise psicológica


No filme há uma cena em que Arthur se queixa para a psicóloga que ela não o tem escutado como deveria. 

Ela responde que iria perder a assistência do Estado e que na verdade, o governo não se importa com ele e nem com ela. 

Embora "Coringa" trate da história de um único homem, o filme é uma ótima metonímia do abandono da população psiquiátrica.

O filme mostra um ponto de vista de como é importante que tenha um suporte para a saúde mental, mas não qualquer suporte, e sim um suporte de muita qualidade para que as pessoas possam ser ajudadas e acolhidas de maneira efetiva.

As falhas do filme Coringa


A única decepção real é que, para um personagem tão imprevisível — e verdadeiramente, o "Coringa" é uma narrativa não confiável, pois muitas vezes não está claro exatamente o que é real e o que está em sua cabeça. 

"Coringa" é, em grande parte previsível. Os choques não são totalmente inesperados, os desenvolvimentos da trama só antecipavam.

Talvez o filme seja vítima do fato de que, mesmo que esta história seja destinada a ser uma desconectada independente, e não dependente de qualquer enredo do Batman, é de fato uma história de origem do Coringa. E as histórias de origem de Coringa podem ir em muitas direções.

And the Oscar goes to…


Acredito que o resultado de "Coringa" não seria tão potente se não fosse o trabalho de interpretação de Joaquin Phoenix. Arthur Fleck é a melhor atuação da carreira dele e olha que faz coleção de papéis assim. 

Só ao Oscar, por exemplo, recebeu três indicações por coadjuvante em "Gladiador", e melhor em "Johnny & June" (2005) e "O Mestre". Nunca ganhou.

É a atuação de Joaquin que torna as coisas mais fortes. Sei lá, muitas vezes o não dito, diz muito mais do que o dito. Essa é uma máxima em "Coringa". Não tem ninguém julgando, ninguém falando sobre o que o Coringa é ou deixa de ser. Como se trata de uma jornada de transformação (para o mal) muito interna, as informações estão mais na feição do que na boca.

Isso é muito potente porque o roteiro, muito bem construído, delega a outros elementos a função de também comunicar. A narrativa se complementa por olhares, expressões, silêncios, cores (que fotografia!) e até músicas que estão lá no pano de fundo, porém dizendo muito.

Por exemplo, a escolha de 'Everybody Plays The Fool', com The Main Ingredient, 'That's Life', com Frank Sinatra (☆1915/✞1998) e mesmo 'Smile', de Charles Chaplin (☆1889/✞1977) na voz de Jimmy Durante (☆1893/✞1980). 
"Smile though your heart is aching" 
ou 
"Sorria embora seu coração esteja doendo".
Ainda que com um viés patológico, não há nada melhor para definir o Coringa.

Conclusão


O filme "Coringa", nos remete a uma triste conclusão. Que em pleno século XXI, mesmo com os avanços na área da saúde mental, ainda é chocante o despreparo do Estado em lidar com os portadores de transtornos psiquiátricos. 

Por mais que o tempo passe, a falta de alteridade das pessoas umas com as outras e principalmente com a população psiquiátrica, ainda perdura. 

Atualmente, embora as políticas de internação sejam mais rígidas e menos banalizadas, essa população continua a ser marginalizada e subjugada. Talvez seja a inadequação de seus berros e pelas suas gargalhadas incompreensíveis que ela consiga se fazer escutar minimamente.

"Coringa" é um drama satisfatoriamente perturbante, que merece atenção, mesmo sem a performance transformadora de Phoenix. Sua história se desenrola em grande parte do jeito que você espera, uma pena, mas, novamente, o filme é mais sobre o funcionamento interno do cérebro de um psicopata, e não sobre os eventos que o cercam.

E olha que curioso: na linha do tempo da história em quadrinhos, Coringa é considerado um dos piores vilões. Até então, quando se falava sobre ele, era imediata a relação com Batman. Só. Joaquin Phoenix — e obviamente o diretor Todd Phillips — conseguiram um feito e tanto ao "deslocar" o eixo. 

Praticamente quebrar lugar comum. O "Coringa" de 2019, fala mais do homem do que do vilão. É isso que fez dele, na minha opinião, um dos melhores filmes do ano de 2019. (Há rumores de que uma sequência do filme pode ser produzida, mas, sinceramente, não sei se seria algo que valesse a pena conferir.)

Ficha Técnica


  • Elenco:  Joaquin Phoenix (como Coringa), Robert De Niro (como Murray Franklin), Zazie Beetz (como Sophie Dumond), Francis Conroy (como Penny Fleck) e outros.
  • Título original: "Joker"
  • Nacionalidade: EUA, Canadá
  • Gênero: Drama
  • Ano de produção: 2019
  • Data de estreia: 3 de outubro de 2019
  • Duração: 2h 2min
  • Classificação: 16 anos
  • Direção: Todd Phillips
  • Roteiro: Todd Phillips, Scott Silver

A Deus toda glória.

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