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domingo, 18 de abril de 2021

FILMES QUE EU VI — 64: "CAMA DE GATO"

Eu já disse aqui inúmeras vezes que detesto filmes óbvios, do tipo "água com açúcar", mas, gosto de filmes confrontadores e que me levem à reflexão. Pois é, este é o caso desse longa nacional, que enfoco no sexagésimo quarto capítulo da minha série especial de artigos Filmes Que Eu Vi.

Perturbador! Polêmico! Confrontador! Ousado!... Qualquer um desses adjetivos veste como uma luva esse filme. Ele expõe as entranhas da vida de três adolescentes típicos de classe média brasileira, desses que estão assentados nas fileiras acadêmicas, das universidades custeadas pelos seus pais. Aqueles, do tipo que mergulha em banheira cheia de creme de avelã e pensam, aliás, acreditam que o todo o universo gravita em torno de suas circunferências umbilicais. 

Sinopse

(Contém spoiler)



Três jovens universitários — Cristiano (Caio Blat, no meio), [o "líder", não coincidentemente chamado de "Cristo", por seus amigos], Gabriel (Cainan Baladez, à direita), ["filósofo" e ateu] e Francisco, o Chico [o "mediador" do trio, à esquerda] resolvem armar uma sacanagenzinha para cima de uma colega de faculdade, Joana (Rennata Airoldi) paquera de um deles (do "Cristo"). 

Enquanto o casal estiver quase transando no quarto, eis o plano, os outros dois amigos saem de dentro do armário para ver tudo, quem sabe tocar a menina sem que ela perceba ou, percebendo, tentar convencê-la a participar do ménage à quatre (ou seja, fazer uma "suruba"). Esse é o ponto de partida de "Cama de Gato", primeiro longa de Alexandre Stockler.

Tudo corre da pior maneira possível. Essa pior maneira possível é mostrada sem meios-termos, direta, chapada, insuportável, numa das cenas de estupro mais pesadas do cinema, que não deixa nada a dever à polêmica sequência do francês "Irreversível", de Gaspar Noé (2002), e, em diversos aspectos, a supera em crueldade.
  • Primeiro — porque enquanto o exemplar europeu distancia o espectador com a violência pela violência, o nacional o aproxima pela verossimilhança de uma brincadeira estúpida de garotos indo longe demais.
  • Segundo — e reside aí a força de "Cama de Gato", pela colagem de depoimentos de diversos adolescentes de verdade (que, detalhe, ainda não haviam assistido ao filme), não-atores que, entre cervejas, risadas e tragos de cigarro, vão construindo na vida real a plausibilidade do que era ficção, mostrando que, sim, tudo o que aconteceu ou vai acontecer é tão provável que o incrível é não ocorrer mais frequentemente. É um trabalho de edição sutil, metódico e preciso que deve ter virado a marca fílmica deste talentoso diretor de teatro.

O elenco


Há ainda o elenco, formado por Caio Blat — à época um galãzinho global buscando ascensão —, Rodrigo Bolzan e Cainan Baladez (o trio de amigos) e a corajosa Rennata Airoldi — a jovem atriz dá um show de interpretação na polêmica e incômoda sequência do estupro —, que já havia mostrado seu valor na peça "Ka", do falecido Renato Cohen (1956/2003), todos muito bem. Esses são os méritos do filme em si.

Os atores encarnam com destreza os amigos cabeçudos e inconsequentes. Sem desmerecer os outros, Caio Blat merece um destaque por fugir do padrão global — o cara encarou sem nenhum pudor um ereto nu frontal (aliás, não só ele, mas os outros dois também mostraram "as partes baixas" em "estado de graça"). Pra brincar com a verossimilhança dos personagens e do próprio filme, a limitação adolescente é misturada à eloquência teatral digna de grandes debatedores.

Mas há ainda o valor político, extra-cinema, de "Cama de Gato". O longa digital com algumas inserções em celulóide cumpriu uma verdadeira epopeia para chegar às telas. Tudo começou com uma ideia bem-humorada de fazer a versão tupiniquim do Dogma 95, dos cineastas escandinavos, que nas mãos do jovem paulistano Stockler virou "T.R.A.U.M.A.", ou Tentativa de Realizar Algo de Urgente e Minimamente Audacioso.

Brincando com fogo

A verdade dói(?)!


O enredo gira em torno de três amigos, adolescentes paulistanos de classe média alta, recém-ingressos na faculdade, inteligentes, sem grandes dificuldades na vida. 

O ambiente perfeito para uma vida calma, no velho padrão natural do nasce-cresce-se reproduz-e-morre, sem necessidade de conflitos com o mundo que gira à parte.

É aí, nesse "à parte", que mora o problema. Com os seus protagonistas, Alexandre faz uma análise crua de uma parcela significativa da juventude moderna — os marginais que não estão nas periferias, nas favelas, nos morros e que não frequentam os noticiários policiais da grande imprensa. 

Aquela que é mantida dentro de uma redoma cheirosa pelos pais e que acaba desenvolvendo moral e ética próprias, conflitantes com o padrão do bom-senso da sociedade em geral — sociedade essa que, fora a elite e a "nobreza", são completamente ignoradas por eles (essas nuances são reveladas magistralmente em várias cenas do filme).

Não que os três personagens sejam déspotas adolescentes, daqueles estereótipos de novela que humilham o porteiro — apesar de não deixarem de fazê-lo, mas não por crueldade deliberada. Os três amigos são mais inteligentes e esclarecidos que a média que se vê por aí — o diretor deixa isso clarividente nos filosóficos diálogos entre os três rapazes, que demonstram um enorme conhecimento (sem o devido discernimento) de cultura, política, religião e sociologia —, adeptos até mesmo de uma espécie de roleta russa filosófica, onde o melhor argumento leva as apostas (devidamente pagas por notas de dólares!).

Mas, apesar de esclarecidos, têm também poucos limites entre diversão própria e infração moral. Tal incongruência entre o discurso e a realidade é demonstrada em uma balada regada há muita bebida alcoólica, drogas, orgias sexuais (ninguém é de ninguém; todo mundo é de todo mundo...) embalada com música eletrônica de fundo e imagens distorcidas, o que dá um tom de veracidade incontestável na sequência. 

O estupro triplo de uma garota, por exemplo, pode ser bem divertido — para os três protagonistas, não passa de mais uma "simples brincadeira": 
"Nós não vamos contar para ninguém!"
Diz um deles aos risos, após o estupro consumado, como se o que fizeram não fosse algo abominável. Afinal, pela sua lógica viciada, ela vai acabar gostando — sim, a tão combatida cultura do estupro, entenderam a força da mensagem passada pelo cineasta? O processo desanda quando esses limites começam a gerar consequências maiores.

Degringolando ladeira abaixo


No filme, a descida do barranco começa exatamente com o tal estupro — exibido em detalhamento razoável pra incomodar boa parte da platéia, rivalizando-o com aquele sofrido por Mônica Bellucci em "Irreversível". 

Em pouco tempo, os três amigos têm dois corpos nas mãos e não fazem ideia de que atitude tomar. Na tentativa de encobrir os erros, segue-se uma sequência que beira o humor negro, em busca de uma solução que restaure o status quo.

Técnica sem muita perfeição, mas com conectividade contextual


"Cama de Gato" — título mais que propenso a todo o roteiro do longa (saiba porque na conclusão deste artigo) —, de ortodoxo não tem nada. Com a produção em digital, a qualidade técnica não é das mais perfeitas: granulação da imagem, falta de luz e som abafado são acontecimentos comuns. 

A direção e o jogo de câmeras, bem feito, vai do close ao plano aberto e ao close novamente em pouco tempo. Em vários momentos, Stockler utiliza o equipamento portátil para reproduzir o olhar dos personagens.

Adicionando ao roteiro — que por si só já abusa de metalinguagem — o diretor utiliza-se de trechos de uma série de entrevistas feitas nas ruas da cidade. A produção e o elenco conversaram com um sem número de adolescentes durante as filmagens, de várias classes sociais, que deram sua opinião sobre as situações do roteiro e as escolhas dos personagens.

Por vezes, os depoimentos chegam a incomodar mais do que a explicitação do enredo principal pela sua veracidade: aquela linha de pensamento é sim plenamente aceitável em algumas cabeças, e a edição dos depoimentos enfatiza o raciocínio raso dos entrevistados.

Conclusão


Quem já foi criança sabe: cama-de-gato é aquele passatempo que se faz com um barbante, produzindo labirintos entre os dedos, que deve ser passado para a mão de outra pessoa, formando novos padrões. 

Aparentemente sem fim, a brincadeira é a metáfora perfeita para essa juventude retratada no filme, que só faz transformar uma confusão em outra, sem se preocupar com uma solução — afinal estão bem aparados, seja pelo dinheiro, seja pelo "pai".

Lançado o manifesto, etapas importantes da produção foram realizadas com o auxílio da internet, de uma maneira então pioneira. Pronto o filme, houve o vendaval de recusas de festivais e, principalmente, de cinemas e cadeias de salas — por ser digital, diziam umas, devido ao conteúdo polêmico, afirmavam outras. 

Uma delas não tinha visto o mesmo problema ao exibir o filme de Noé (estupro em francês pode, em português pega mal). Stockler pagou por não baixar a cabeça, e só por isso já tem lugar garantido no combalido panteão do cinema independente do Brasil.

Panteão de resto formado por ele, Cláudio Assis (de "Amarelo Manga", o melhor filme brasileiro do ano anterior); Paulo Caldas e Lírio Ferreira (de "Baile Perfumado"); Beto Brant (que dispensa apresentações), claro; os patronos Carlos Reichenbach e Ivan Cardoso; o superlativo Sergio Bianchi e pouquíssimos mais. 

São bodes na sala da corte do cinema tupiniquim "for export". Se você for assistir a apenas um filme brasileiro, assista a este (está disponível no YouTube — "bendita seja" a internet). Nem que seja para ficar com raiva.

Quando o vi pela primeira vez, devo confessar que foi mais pela curiosidade em relação à polêmica que eu já estava acompanhando pela imprensa. Ao revê-lo recentemente, pude entender que o auê por causa das cenas de sexo, é ignóbil à mensagem que o filme nos trás.

Advertência


Há ainda pequena fama do filme veio de seu conteúdo polêmico, pontuado por cenas cruas de sexo e violência, que roubou à força a atenção dos críticos. Além das palmas — e vaias — colecionadas nas poucas exibições, o longa, que não foi muito divulgado (acredito que muitos nunca sequer ouviram falar desse filme: se você é um desses, fica me devendo essa dica) vem sem apoio de marketing ou mídia maciça. Praticamente uma incógnita, que infelizmente não sobreviveu muito em cartaz e passou desapercebido como apenas "mais um dos péssimos filmes nacionais", o que, nem de longe, é uma verdade no caso em questão.

Mas, aos meus irmãos e irmãs cristãos, enfatizo a advertência: o filme contém cenas de sexo (nada com a explicites de um filme pornográfico, mas com um realismo um tanto quanto explícito), com direito a nu frontal masculino (bem mais enfático do que o feminino, outra peculiaridade do longa que foge muito do comum), muito palavrão (e não me refiro à algo como "Pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico" — palavrão que indica alguém ou algo relacionado com uma doença aguda nos pulmões que se origina com a inalação de cinzas vulcânicas), além de muita cena de violência e consumo de drogas.

Portanto, pense bem antes de se aventurar a assistir ao filme e, se resolver fazê-lo, não venha colocar a culpa em mim e muito menos me criticar por indicá-lo. Indicação não significa em absoluto obrigação, mas apenas uma sugestão e essa eu faço sem medo de ser feliz e em paz com a minha consciência! Em tempo: se você quiser algo mais, digamos, "inocente", vá ver "A Culpa é das Estrelas"!

Ficha técnica


  • "Cama de Gato": Brasil , 2002 Drama — 92 minutos
  • Direção: Alexandre Stockler 
  • Roteiro: Alexandre Stockler 
  • Elenco: Caio Blat, Rodrigo Bolzan, Cainan Baladez, Rennata Airoldi, Val Pires, Claudia Schapira, Nany People, Alexandra Golik, Bárbara Paz, Cabeto Rocker, Carla Trombini, Élcio Rodrigues, Jairo Mattos, Janaína Kan, Lavínia Pannunzio, Luís Araújo
[Fonte: Omelete, por Eduardo Viveiros; Folha Ilustrada por Sérgio d'Ávila]

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