Na igreja evangélica brasileira, não raras vezes as músicas estão no centro das atenções, seja em razão da popularidade de algumas boas (raro, incomum), seja pela popularidade de canções ruins (maioria comum). Fato é, que a arte exerce influência, movimenta o mercado, propaga teologias, enriquece alguns e deturpa o coração de muitos que, ao serem "honrados", esquecem quem são.
O hinário gospel atual é tão pavoroso que há coisas inaudíveis. Verdadeiros lixos sonoros. Algumas vezes com boa técnica, mas com descomunal discordância bíblica e teológica que nada mais são do que trilhas sonoras para sustentação das heresias e desvios doutrinários que nascem como erva daninha no meio evangélico.
Pois bem, uma canção muito tocada no momento tem por título "Ninguém Explica Deus" (foi uma das músicas mais tocadas em 2016), do grupo Preto no Branco, com participação da cantora Gabriela Rocha. Já ouvi algumas vezes, mais precisamente o clipe gravado e disponível no you tube (se quiser ver, clique no link).
Uma canção muitos debates
Recentemente, li uma análise sobre a canção, uma crítica disponibilizada no blog Portal Missões & Teologia. Na postagem, dentre outros pontos o autor critica o fato de a canção enfatizar que "ninguém explica Deus". Abaixo, reproduzo um trecho da postagem:
"Embora o conhecimento não seja exaustivo, no entanto, há um abrangente conteúdo revelado que nos diz quem é o Deus triuno, criador dos céus e da terra. Quem sustenta que ninguém explica Deus são os deístas, que acreditam que o Divino se ausentou após criar o cosmos.
O teísmo, onde se encontra o cristianismo, é proposicional, por isso há um conteúdo comunicável e explicável. A afirmação de não se poder explicar Deus, indiretamente nega o principio da imanência e da revelação especial. Ela está mais para fideísmo do que para a fé cristã ortodoxa. Fideísmo é crer dando um 'salto no escuro'. Mas Deus trouxe luz acerca de si mesmo através da Escritura."
É preciso ter cuidado com determinadas afirmações. O próprio autor do texto aceita a ideia de que não é possível explicar Deus exaustivamente, mas que "...há um abrangente conteúdo revelado que nos diz quem é o Deus triuno, criador dos céus e da terra". Mais. "Quem sustenta que ninguém explica Deus são os deístas...".
Ao mesmo tempo que o autor assevera que Deus pode ser conhecido (explicado, não exaustivamente), afirma que negar poder explicá-lo é ser deísta. Há aí, penso eu, contradição na exposição, e aproveitando-me da questão, não para defender a música ou seu(s) autor(es), acho ser útil refletir (introdutoriamente, muito introdutoriamente) sobre a possibilidade ou não de explicar o Incognoscível.
O Deus Incognoscível
Os teólogos no estudo da Teologia costumam classificar Deus como ser cujos atributos são naturais (incomunicáveis) e morais (comunicáveis). Nem sempre tais classificações encontram consenso, haja vista a teologia ser produzia por homens, e estes, limitados, movidos por motivos às vezes desconhecidos etc., divergem em seu pensamento.
No entanto, para o fim aqui proposto, tomo uma classificação do teólogo Russel E. Joyner, o qual ao listar os atributos Naturais de Deus, após pontuar, em primeiro lugar, que Deus é Espírito, afirma que o Eterno é "cognoscível".
Antes porém, conforme Aurélio[1], o significado do termo cognoscível é "que se pode conhecer", por outro lado o antônimo, incognoscível é "que não se pode conhecer"[2]. Segundo Joyner, ao tratar do tema esclarece que:
- Deus jamais foi visto (João 1:18).
"O Deus onipotente não pode ser plenamente compreendido pelo ser humano (Jó 11:7), mas se revelou em diferentes ocasiões e de várias maneiras. Isto indica que é da sua vontade que O conheçamos e tenhamos um correto relacionamento consigo (João 1:18; 5:20; 17:3; Atos 14:17; Romanos 1:18-20).
Isso não significa, porém, que podemos compreender completa e exaustivamente a totalidade do caráter e da natureza de Deus (Rm 1:18-20; 2:14,15). Assim, da mesma forma que Ele se revela, também se oculta:
'Verdadeiramente, tu és o Deus que te ocultas, o Deus de Israel, o Salvador' (Isaías 45:15, grifo meu)."[3]
O autor defende que Deus é compreendido na medida que Ele mesmo permite que o homem o conheça: "Se temos algum conhecimento de Deus é porque ele optou por se nos revelar".[4] Assim, embora possa ser conhecido, isso é possível apenas parcialmente, na medida em que Ele quer.
Outro pentecostal, Eurico Bergstén , ao tratar dos atributos de Deus pontua que o Eterno é:
Incomensurável
Incomensurabilidade é o infinito quando aplicado ao espaço. Assim como é impossível imaginar a forma de Deus, também é impossível medir, pesar ou fazer algum cálculo a respeito de Deus. Não existem números ou expressões que possam nos fazer compreender Deus (Salmos 40:5; 71:15; e 139:6,17,18). Medida nenhuma pode dar uma ideia da sua grandeza (Jó 11:9; 1 Reis 8:27). Nenhum cálculo de peso pode fazer-nos compreender o seu "peso de glória" (2 Coríntios 4:17).
Bergstén não nega a possibilidade de conhecermos algo sobre Deus, mas que é impossível medi-Lo, compreendê-Lo plenamente dentro dos padrões humanos. Nesse sentido, considerando a grande e grave lesão causado à humanidade em decorrência da Queda, é fácil concluir que o homem não pode compreender a Deus plenamente, diria ainda, facilmente, que conhece apenas parte.
Dois bons exemplos, são afirmações contidas no livro de Jó: Para Eliú,
"Eis que Deus é grande, e não o podemos compreender; o número dos seus anos não se pode calcular" (6:26).
Já o patriarca, falando sobre o Todo-poderoso diz:
"Eis que isto são apenas as orlas dos seus caminhos! Que leve sussurro temos ouvido dele! Mas o trovão do seu poder, quem o entenderá?" (26:13,14).
Seria muito útil uma leitura da obra "A História das Doutrinas Cristãs", de Louis Berkhof. Nela, o leitor verá que muito do cremos hoje e defendemos como verdades incontestáveis já foi crido diferente e objeto de muita contradição e debate, pois grande parte das doutrinas essenciais da fé cristã foram moldadas nos primeiros séculos, de forma que parte do que cremos hoje cremos por ter sido fixado anteriormente, não por termos chegado a conclusões sozinhos, a partir de reflexão própria.
A teologia nos deu, pronto muito do que às vezes "compreendemos" ao ler o Texto Sagrado. Berkhof esclarece, por exemplo, as controvérsias iniciais acerca da Doutrina da Trindade (pp. 77/83) e de Cristo (pp. 93/111), de como duros embates fixaram muito do que aceitamos hoje. A teologia cristã não foi dada como está (nem mesmo há consenso hoje sobre vários pontos), mas através dos séculos vêm sendo alterada, com pontos bem fixados é verdade, mas que outrora foram objeto de disputas por séculos.
Uma breve citação sobre o saber teológico é necessária. Para César Moisés Carvalho[6], tratando acerca da "Educação Cristã como Labor Teológico":
"Sem reconhecer que ela [teologia] é um discurso humano – e, por isso mesmo, falível! – acerca de Deus e não Ele em si mesmo, sistemas teológicos relutam em exercer autocrítica e confundem sua confissão com própria Escritura.
Por isso, apesar dessa opinião clássica de Bottigheimer, o teológo Antônio Carlos de melo Magalhães, afirma que a 'teologia não é ciência, muito menos ciência da fé, ela é, tão somente, discurso, fala, narrativa, sistematização de práticas, crenças, desejos, aspirações, perspectivas, textos'.
Isso significa dizer que, em 'seu âmbito estão as experiências e as formas como as comunidades humanas tentaram, ao construir significados e sentidos para o mundo, criar instituições, estabelecer regras e estruturas de funcionamento e crença'.
É por isso que, para Karl Barth, a 'teologia é obra humana, ela não é a obra divina'. E mais, 'Ela é serviço prestado à palavra, ela não é a própria Palavra de Deus."
A teologia é necessária, é inevitável, mas deve haver cuidado ao status que lhe conferimos e apreciar o que ouvimos, lemos e entendemos teologicamente.
Voltando à questão inicial, afirmar que Deus é "explicável" é verdade desde que seja ressaltado que o que podemos conhecer dEle é apenas em parte. Por outro lado, dizer que "ninguém explica Deus" também é verdadeiro, desde que tal afirmação seja aclarada no sentido que se diz que o que não se pode conhecer é o todo, em sua total abrangência, pois impossível explicá-lo tal qual Ele é não somos capazes, nossas limitações não comportam, nem mesmo Ele desejou dar-se a conhecer como é.
Conclusão
Polêmicas à parte sobre a letra da tal música – que eu particularmente não gosto, diga-se (acho chata, cansativa) – basta-nos saber que podemos conhecer o necessário de Deus em Cristo, afinal:
"Ele [Jesus], que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas" (Hebreus 1:3).
Conheçamos Cristo e o que se pode compreender, gradualmente, à medida de nossa limitação!
Certo é que não há nada aqui em desfavor do blog citado, aliás, a música está causando discussões por todo lado. Mas, fica aqui a reflexão estrita ao que foi abordado sobre a possibilidade ou não de conhecer a Deus.
[Fonte: [1] - FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Dicionário da língua portuguesa. 6. ed. Curitiba: Positivo, 2006. p. 243. [2] - ibid, p. 470. [3] - JOYNER, Russell E.Joyner. O Deus Único e Verdadeiro, In, HORTON, Stanley (Ed.). Teologia Sistemática, Uma Perspetiva Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2012, p.129. [4] - ibid, p. 130. [5] - BERGSTÉN, Eurico. Teologia Sistemática. Rio de Janeiro: CPAD, 2015, pp.26,27.
[6] - CARVALHO, César Moisés. Uma Pedagogia para a Educação Cristã. 1.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2015, pp. 284/285]
A Deus toda glória.
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