No dia 20 de novembro comemoramos em todo o território brasileiro o Dia Nacional da Consciência Negra, data reivindicada pelo movimento social de maioria negra para tornar-se símbolo da resistência e luta das populações africanas que, por meio da escravização, chegaram a terras brasileiras, e na condição de escravizados permaneceram por 350 anos.
Origem da data
Em um sábado de 1970, um grupo de negros no Rio Grande do Sul cunhou o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra. O idealizador do Dia Nacional da Consciência Negra foi o poeta, professor e pesquisador gaúcho Oliveira Silveira.
Nessa semana de celebração oficial do Dia da Consciência Negra, parece ser de conhecimento comum, tanto a realidade dos avanços na superação do racismo quanto a enormidade da tarefa ainda posta.
O paradoxo das cotas
Apesar de eu não concordar com as cotas de cunho raciais, concordo que medidas de reforma social como a política de cotas universitárias estabelecida em 2012 obtiveram sucesso mais do que psicológico com a ingressão de milhares de jovens negros na universidade e sua progressiva inserção competitiva no sistema de produção do conhecimento.
O aumento da pressão pública contra a linguagem e o comportamento racista e a valorização da cultura afro-brasileira ampliaram os espaços de reconhecimento do negro e de sua experiência de exclusão e expuseram com clareza excepcional a realidade do racismo como atitude imoral e antissocial.
O tamanho do desafio
O Brasil foi o último país do continente americano a abolir a escravização e um dos poucos a não incluir em seu plano de independência a liberdade dos africanos e africanas e seus descendentes. Muitas revoltas e inconfidências perpassaram os regimes monárquico, imperial e republicano, todas silenciadas e desarticuladas pelo Estado.
A população negra, composta por pretos(as) e pardos(as), no pós-abolição foi inserida de maneira desigual no processo de cidadania e acesso ao que denominamos políticas de direto social (saúde, educação, cultura e lazer) – as primeiras políticas educacionais eram enfáticas na proibição de acesso dos pretos(as) e pardos(as) à escola.
Aspecto religioso
No livro "Negro não entra na Igreja, espia pela banda de fora" (editora Unimep, 2002), o autor José Carlos Barbosa, através de pesquisa histórica, nos mostra que a Igreja também impediu o acesso da população de africanos(as) e seus descendentes nos templos e, por muito tempo, coadunou com os princípios do regime escravista.
E o preconceito ainda reverbera no preconceito explícito contra os adeptos das religiões afrodescendentes. Não irei aqui me ater nos detalhes e nas distinções de práticas e dogmas doutrinários, mas sim enfatizar a necessidade do respeito às pessoas que são praticantes do Candomblé, da Umbanda, da Quimbada e todas as demais religiões de matrizes africanas.
Vivemos em uma sociedade em que a diferença ratifica as desigualdades, por isso, precisamos falar desse assunto, e para pensarmos os avanços do tempo presente, não podemos perder de vista a linha histórica, que nos ajuda a compreender o que é ser afrodescendente no Brasil.
Foram 350 anos de escravização e 130 anos de uma abolição inacabada. Vivemos em um tempo histórico em que ainda as relações sociais se revestem dos resquícios da escravização, isso porque o pecado do racismo estrutural naturalizou as desigualdades. As desigualdades estruturais fazem com que, a depender da descendência, acessemos com desigualdade o mundo do trabalho, o direito à educação formal nos diferentes níveis, o direito à saúde.
Como cristãos, precisamos denunciar a prática do pecado do racismo com a mesma ênfase que o da prostituição e o da idolatria, por exemplo e anunciar a vida plena para a população negra brasileira. Falar sobre o racismo dentro das igrejas é um tanto indigesto, assim como o é em qualquer outro lugar da sociedade, pois solidificamos nossas relações sobre a falácia da democracia racial e sobre o racismo estrutural.
Responda minhas perguntas:
- Em sua igreja, a maioria é de brancos ou de negros?
- Quantos pastores negros, em liderança de grande igrejas você conhece?
Indicadores sociais
Mas os indicadores sociais seguem extremamente desfavoráveis para os negros. Vejamos:
- Somos mais de 75% dos pobres;
- Índices de analfabetismo e anos de estudo são proporcionalmente menores para a população negra, que também sofre com taxas de desemprego maiores e salários inferiores;
- O número de negros(as) mortos em e/ou por envolvimento na criminalidade é maior.
E aqui me valho de dados que podem ser pesquisados e confirmados, não é "mimimi".
Mas entre os escândalos, o maior deles é certamente o da violência: o número de homicídios por arma de fogo contra negros aumentou quase 50% desde 2003, mesmo enquanto ele diminuía em quase 30% entre brancos, e os homicídios de negros e pardos giram em torno de vezes mais do que os de brancos em todos os anos.
Esses exemplos de indicadores confirmam a herança de desigualdade setorizada e sistemicamente estabelecida de tão difícil enfrentamento. E em resposta, ouvimos o crescente clamor pelo investimento em políticas públicas contra o racismo e pela garantia de oportunidades para negros jovens.
Esse clamor é justo é racional: é função do Estado promover a justiça pública, e isso significa, também, a promoção da equidade. A promoção da equidade envolve ajustes institucionais para que pessoas em desvantagem social tenham sua fragilidade compensada, como se faz no caso das cotas; para que tenham atenção jurídica especial, contra os casos de assédio e racismo; para que possam ter seus méritos reconhecidos em igualdade de condições no que se refere a concursos e salários.
Os movimentos sociais foram essenciais para as alterações de leis, proposições de alternativas e de políticas de ação afirmativa, que trouxeram à tona a discussão das desigualdades que historicamente moldaram a sociedade brasileira.
Mas sabemos, pela experiência nas lutas por direitos civis em lugares diversos como os EUA, a África do Sul e certamente no Brasil, que tais iniciativas são insuficientes para produzir uma cura profunda. Não apenas porque o racismo é um crime e uma imoralidade difícil de extirpar, mas porque suas vítimas, não sendo necessariamente melhores seres humanos que seus algozes, não serão capazes de, perdoar, transcender o mal e livrar-se do ressentimento sem recursos espirituais excepcionais.
Assim, na luta contra o racismo, vem sendo amplamente adotada a ambígua estratégia da produção de uma "consciência de identidade negra" com a finalidade de adensar e aguçar o conflito social, na esperança de que a luta por reconhecimento pelo grupo excluído conduza à subversão dos opressores, à destruição de seu discurso discriminatório e assim à paz social.
Nazismo, fascismo, racismo: doenças letais e contagiosas
A periculosidade dessa estratégia já se mostrou, por exemplo, após a derrota na primeira Grande Guerra, quando os alemães aceitaram o discurso fascista da identidade nacional baseada na raça ariana (uma ficção) e, seguindo essa "fé romântica", buscaram sua pureza biológica, cultural e espiritual, a unidade "do sangue e da terra".
Mas ao fixar-se na identidade nacional, perderam o sentido cosmopolita, o universalismo que o Ocidente aprendeu do apóstolo Paulo, e logo entraram em Guerra contra outras culturas e nações, dentro e fora de seu território. Também o regime do Apartheid teve suas raízes na teoria do desenvolvimento de culturas independentes, com o separatismo Africâner sendo inicialmente confirmado por separatismos tribais negros.
O fruto demoníaco dessa balcanização da natureza humana, dessa retribalização das relações sociais, mostra-se nítido agora na reação global contra a "política da identidade" ou "identity politics", com a terrível reemergência de discursos de supremacia branca e de pureza nacional, cuja lógica e estratégias de ação são, ironicamente, similares às de seus oponentes.
O retorno fascista foi alimentado não por mero pluralismo, mas por décadas de políticas sociais focalizadas na constituição de identidades particulares às expensas do corpo social e dos valores cosmopolitas: as novas mentalidades microfascistas. Nos Estados Unidos – berço de diversos experimentos das políticas de reconhecimento – cristaliza-se o legado do acirramento dos conflitos entre negros e brancos, homens e mulheres, religiosos e secularistas.
No Brasil, políticas de inclusão como a das cotas, claramente definidas pelo princípio da equidade, mostram sucesso mensurável e significativo na melhoria na inserção do negro; mas políticas de identidade-como-resistência, embora ajudem a fornecer recursos de afirmação emocional necessários para a resiliência e a superação da discriminação, deixam intocado, quando não ampliado, o depósito do ressentimento social. O subproduto de emoções políticas gerado por essa estratégia não é claramente benigno.
Dado que tanto o fascismo quanto a política de identidade têm raízes comuns no Romantismo do século XIX e se mostram historicamente geradoras de graves tensões sociais, é mister encontrar um ponto de equilíbrio. Mas tal ponto de equilíbrio deve reunir equidade e cosmopolitismo.
A resposta da fé cristã
A fé cristã tem uma resposta sobre como resolver o problema da injustiça e o problema do conflito e separação: a resposta se encontra no sangue de Cristo na Cruz do Calvário, que não apenas expiou a injustiça como também "de ambos os povos – judeus e gentios – fez um". E uma vez que todos são um, não há mais "estrangeiros", pois todos são concidadãos;
"não há mais grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou homem livre, mas, sim, Cristo, que é tudo em todos" (Gálatas 3:28).
Em Cristo não há negro nem branco; em Cristo há, acima da consciência branca ou da consciência negra, a mente de Cristo (1 Coríntios 2:16).
Por isso a palavra-chave na ação cristã contra o racismo e a exclusão sistêmica do negro não pode ser a alimentação de uma consciência negra reativa, de um espírito de pureza racial e cultural que leve ao policiamento das roupas, da arte, da linguagem e das associações de negros e de brancos. Pois o que não queremos que os brancos façam, não podemos nós mesmos praticarmos.
Confiando em Cristo, buscamos, como pregava Martin Luther King, o sonho no qual a cor da pele não importe mais, e na qual – diríamos hoje – brancos façam "coisas de pretos", e pretos façam "coisas de brancos"! Ora, nessa situação a negritude ou a branquitude serão acidentais e não essenciais, pois essencial será a nossa humanidade comum.
Como incluir o negro nas igrejas locais?
De que modo o cristão comum pode lutar pela plena inclusão do negro? Desde as igrejas locais isso pode ser aprendido e ensaiado, combatendo-se diretamente o racismo na disciplina eclesiástica (sem assumir que o mais preto é sempre o culpado), na eleição de líderes (reconhecendo os méritos dos irmãos negros), na lembrança e confissão das injustiças históricas; no apoio emocional e pastoral especial a irmãos feridos pelo racismo em suas famílias, trabalho ou igrejas (por demais comum!), combatendo-se de púlpito a prática de tantos pais de ainda dificultar casamentos de seus filhos com pessoas mais pretas do que eles... e num sem-número de pequenas situações em que as metástases do racismo teimam em se manifestar.
Combater, sim; mas o combate do pecado pressupõe sempre a reconciliação. É preciso que os negros perdoem os brancos, e os brancos confessem seus pecados; mas para tanto ambos devem crer que em Cristo não há mais brancos nem negros.
E então saberemos o que fazer para além das paredes das igrejas! Com a sabedoria de não racializar as relações e não alimentar o passivo político-emocional do ressentimento, devemos promover a equidade e reunir as pessoas.
A violência contra os negros
Mas entre todas as urgências extraeclesiásticas, uma se eleva: é preciso lidar com a violência. A violência que não é apenas contra o pobre e o negro, mas que é também do pobre e do negro contra o pobre e contra o negro.
Certamente essa violência não será mitigada com o mero aumento do estado policial e da repressão ao crime; mas certamente não o será com a mera redução do aparato policial ou muito menos com a maior conscientização e orgulho identitário dos negros – como ficou evidente no brutal aumento da violência entre os pobres durante os anos progressistas, desde 2003. Ademais, qual povo tirano não foi também orgulhoso e cheio de consciência cultural?
Segundo as Escrituras a autoridade pública deve punir a injustiça; não há como contornar a injunção bíblica. O Estado não reconcilia; mas a igreja tem a mensagem da reconciliação.
É a momentosa tarefa da igreja cristã brasileira assumir a tarefa reconciliatória e atuar politicamente para que o Estado não combata a injustiça de forma injusta, nem adote discursos fascistas à direita ou microfascistas à esquerda; a tarefa de esfriar suas paixões ideológicas e buscar a audição de soluções eficientes para reduzir as taxas de homicídio de jovens pobres – a maioria deles negros. Pois talvez partes da resposta estejam em todos os lados do debate cívico; mas que pode transcender os polos da cidade, senão aqueles cuja pátria está nos céus?
Por isso esperamos nEle, que a Mente de Cristo nos ajude a transcender as consciências particulares e viver uma verdadeira reconciliação nacional.
Conclusão
Nos últimos 40 anos, tivemos avanços significativos da população negra em relação a alguns aspectos, como: acesso, permanência e sucesso na trajetória escolar tanto na educação básica quanto na superior; acesso ao mundo do trabalho, reconfigurando os lugares socialmente estabelecidos para a população negra; avanços significativos na política pública na área da saúde e assistências.
O 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, simboliza e homenageia a resistência de Zumbi dos Palmares (✰1655/✟1695) e de tantos(as) outros(as) afrodescendentes que lutaram no passado e ainda lutam no tempo presente por uma sociedade menos desigual.
Meu convite é para a reflexão, o que cada um(a) de nós, cristãos, temos a ver com o dia 20 de novembro de cada ano?
A resposta não deve ser única, no entanto, podemos iniciar uma reflexão a partir de nosso Documento Oficial – a Bíblia Sagrada –, que nos convida a dialogar coletivamente sobre o impacto do pecado do racismo na vida de negros(as), brancos(as) e da nossa vida comunitária.
Documento que foi produzido ao longo da história da humanidade. São textos que nos orientam, nos elucidam, nos pastoreiam e nos conduzem ao centro da suprema e absoluta vontade do Senhor a sermos discípulos e discípulas – toda língua, raça e nação –em todo o tempo.
A Deus, toda glória.
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