"O Silêncio dos Inocentes" (disponível no Prime Vídeo e para locação via Apple e Google) é um dos meus filmes preferidos. Fui vê-lo em seu lançamento, em uma sala de cinema, do extinto Cine Palladium — que era localizado na rua Rio de Janeiro, com avenida Augusto de Lima, hoje transformado em centro cultural, o Sesc Palladium, que não só deixa saudades nos casais apaixonados como também entre aqueles que, como eu, exigem conforto e qualidade de projeção, o que falta nesses cubículos enfiados dentro dos shoppings —, depois ainda fiz a locação da fita de VHS e ainda tive a oportunidade de revê-lo em DVD.
Este é sem dúvida alguma, uma referência quando o assunto é thriller de terror psicológico desde seu lançamento, em 1991. O filme foi ganhando fama no boca a boca ao ir para os cinemas e terminou arrebatando as cinco principais estatuetas no Oscar:
Nunca um filme que flerta com o universo do horror foi tão premiado. Muito merecidamente, diga-se de passagem.
Pois é, agora, com um conhecimento mais específico das temáticas freudianas e lacanianas, eu revi ontem a este maravilhoso longa e decidi, então, escrever este texto, mais um capítulo da minha série especial de artigos, Contém Spoilers, sobre os filmes que eu já assisti.
É bom porque
Desde então, sempre que um serial killer ganha as telonas ou inspira uma série, "O Silêncio dos Inocentes" acaba sendo citado, seja para o bem ou para o mal.
Se algum vilão exibe grande astúcia e facilidade para entrar na mente de seu adversário, a figura do psiquiatra canibal Hannibal Lecter, magistralmente interpretado pelo excelente ator Antony Hopkins é lembrada.
Já Jodie Foster tem de conviver com a maldição de nunca mais ter feito uma interpretação tão genial quanto a de Clarice Starling. Quando manda bem, como em "O Quarto do Pânico" (2002), certos elogios vão na linha
"um grande trabalho, que chega perto do que ela alcançou em 'O Silêncio dos Inocentes'..."
E o que esse longa-metragem tem que o coloca em tantas listas de melhores de todos os tempos, tanto em eleições sem recorte por gênero quanto em rankings de veículos especializados em terror e suspense (aí é sempre top 5, no mínimo)? Aqui vão cinco escolhas que garantem "O Silêncio dos Inocentes" no panteão de grandes obras da sétima arte.
Protagonistas magistrais
Protagonistas magistrais
É curioso pensar que os papéis principais de "O Silêncio dos Inocentes" poderiam ter ficado com outros atores. Jodie Foster e Anthony Hopkins não foram as primeiras escolhas de Jonathan Demme.
O diretor gostaria de ter contado com Michelle Pfeiffer no papel de Clarice Starling, pois havia ficado impressionado ao trabalhar com a atriz em seu filme anterior, "De Caso com a Máfia".
Mas o roteiro sombrio assustou a loira. Demme então tentou Meg Ryan, que ficou ainda mais apavorada ao ler o script. Laura Dern também chegou a ser cogitada, mas Jodie Foster pulou na frente ao fazer chegar aos produtores a notícia de que tinha adorado o livro original e a personagem Clarice.
Já Hannibal Lecter foi ofertado a Sean Connery, que não quis se meter numa história tão perturbadora. Hopkins foi lembrado por ter brilhado em "O Homem Elefante" (1980) uma década antes.
Ao ler as primeiras páginas do roteiro, o galês avisou seu empresário que aquele era um dos melhores papeis que já tinha sido oferecido a ele. E sua interação com Jodie, separados pelo vidro da prisão de segurança máxima, é a força motriz do filme, com momentos de arrepiar todos os pelos do corpo.
Um diretor multitalentos
Um diretor multitalentos
Demme não tinha experiência com thrillers do tipo quando procurado para assumi-lo. Ainda por cima ficou sabendo que aquela vaga tinha sido reservada para o ator Gene Hackman, que faria sua estreia como diretor — também foi sondado para fazer o guru de Clarice no FBI, Jack Crawford, mas sua filha ordenou que o pai se afastasse daquele projeto sinistro.
Demme abraçou a missão com entusiasmo e o êxito conquistado ajudou a projetar sua carreira, que já tinha realizações impressionantes, caso do concert movie Stop Making Sense, que capturou a performática banda Talking Heads ao vivo e que no ano que vem completa quatro décadas de seu lançamento.
Depois, ele dirigiu "Philadelphia" (1993), que foi um arrasa-quarteirão e se tornou o grande filme a tratar temas como AIDS e homofobia. O diretor morreu em 2017, em decorrência de um câncer no esôfago, aos 73 anos.
A audácia do tema
A audácia do tema
Fazer um filme sobre um assassino em série nunca é algo trivial. Ainda mais se esse assassino é alguém que se entende como mulher trans, mas foi rejeitado nos hospitais em que buscou fazer a transição por conta de seu comportamento violento.
É claro que o movimento LGBTQIAP+ não ficou nada satisfeito quando o filme começou sua ascensão nas salas de cinema e passou a colecionar prêmios. Representantes do movimento feminista também chiaram.
Em vez de celebração pela personagem de Jodie Foster se destacar num universo masculino de investigadores de alto nível, sobraram críticas pelo fato de ser uma obra em que mulheres têm suas peles arrancadas com brutalidade.
E é bem provável que se "O Silêncio dos Inocentes" fosse rodado hoje, haveria gritaria também do movimento negro. Afinal, o único preto com fala é um carcereiro que cuida da ala de Hannibal Lecter, e que pouca importância tem na história.
Elenco secundário e pontas espertas
Elenco secundário e pontas espertas
O filme também deve muito aos atores coadjuvantes envolvidos no projeto. O sólido Scott Glenn ficou com aquele papel de chefe e mentor de Clarice oferecido a Gene Hackman, o do ponderado Jack Crawford.
E Ted Levine fez o assassino Jame Gumb, o Buffalo Bill, com extrema categoria. A cena em que ele dança "Goodbye Horses", canção de Q Lazzarus, e se maquia no espelho é especialmente incômoda. Dois cineastas icônicos fazem pequenas pontas em "O Silêncio dos Inocentes": George Romero, o cara que basicamente definiu como os zumbis seriam vistos no cinema, e Roger Corman, o papa dos filmes independentes, cults e de baixo orçamento. Também há um papel de comandante da SWAT dado ao cantor Chris Isaak, conhecido pelo hit "Wicked Game".
As várias leituras possíveis
As várias leituras possíveis
Um dos trunfos do streaming da Brasil Paralelo é oferecer conteúdos extras quando um filme como esse entra em sua plataforma. Dessa vez, um vídeo de 43 minutos foi produzido para ampliar a experiência de ver ou rever "O Silêncio dos Inocentes".
Ele basicamente é um resumo do ensaio de 100 páginas que Olavo de Carvalho (✩1947/✞2022) escreveu sobre a película. Ávido entusiasta de todos os elementos em cena, ele relaciona Hannibal com a figura do diabo, Buffalo Bill como um demônio menor, Clarice como a heroína que luta contra as trevas sem se utilizar de mentiras, e Jack Crawford como o mago, o cérebro que guia sua subordinada pela jornada.
E vários outros artigos e livros foram publicados debatendo aspectos desse sucesso de crítica e bilheteria. Quem deseja ir além tem diversas fontes para explorar o fascínio que o filme desperta, até mesmo sua continuação, rodada em 2001, prequelas (2002 e 2007) e séries de TV ("Hannibal e Clarice"), ainda que esses produtos estejam muitos degraus abaixo.
Hannibal e Clarice no meu divã
Muito além de apenas uma narrativa de suspense e terror, "O Silêncio dos Inocentes" convida o espectador a refletir sobre a natureza humana e suas infinitas peculiaridades, apresentando personagens com perfis psicológicos complexos e bem trabalhados.
Acompanhamos a dura trajetória de Clarice Starling, a tímida, mas forte e determinada detetive do FBI, durante o desenrolar do caso Buffalo Bill.
Seus encontros com o psiquiatra e temido assassino em série Hannibal Lecter não só a tocam profundamente como contribuem para o próprio processo de investigação criminal.
"O Silêncio dos Inocentes" é, sem dúvidas, um prato cheio para o estudo da psicologia. Repleto de nuances que trabalham a complexidade da psique humana, o filme aborda aspectos como os traços psicóticos da personalidade de serial killer, o reflexo dos traumas de infância no desenvolvimento e suas consequências na vida adulta, e questões para além do campo psicológico, como o machismo no ambiente de trabalho.
Indo ainda mais além do que já foi citado, há presente no filme algo ainda mais delicado e complexo de se debruçar sobre: a relação entre Hannibal e Clarice.
O primeiro contato entre a detetive e o psiquiatra dá-se quando ainda há um grande distanciamento entre os dois, expresso não só pela cela que separa Hannibal da jovem, como também pela própria história, personalidade e universo de ambos.
Os encontros, para Clarice, possuíam um único e claro objetivo: colher informações sobre o caso Buffalo Bill. Para Hannibal, a presença da detetive significava uma rotina já vivenciada por ele inúmeras vezes antes, repleta de interrogatórios, questionários e entrevistas.
As percepções individuais de cada um dos polos envolvidos na relação, no caso, Hannibal e Clarice, refletem a história de vida de cada um, ou seja, seus modos de existir, o ser-no-mundo.
Para a fenomenologia existencial, o ser-no-mundo reflete a maneira de existir de cada ser humano, baseada em suas vivências e percepções (TEIXEIRA, 1997). As formas de existir estão atreladas a três tipos de relações: o homem com o meio que o cerca, o homem com o outro e o homem consigo mesmo.
Trazendo para o contexto do filme, Clarice e Hannibal, com a soma de suas vivências individuais e suas vivências sociais com seus respectivos meios, se encontram na dimensão da relação eu-outro, construindo assim um vínculo inicial que se desenrolará ao longo da trama.
Conforme Teixeira (1997), o ser-no-mundo torna-se patológico quando as relações do indivíduo são infrutíferas no âmbito pessoal, ou seja, quando o ser é incapaz de adentrar seu mundo interno e estabelecer conexões saudáveis consigo mesmo.
Partindo desse ponto, o indivíduo também seria incapaz de manter boas relações nas outras esferas (eu-outro e eu-meio). Essa dinâmica é observada em Hannibal, cujas atitudes e vivências no mundo foram conduzidas de modo a trazer sofrimento ao outro e satisfazer o próprio desejo.
A incapacidade do indivíduo de tecer uma reflexão sobre as próprias atitudes ao relacionar-se consigo mesmo levaria à incapacidade desse mesmo indivíduo de se relacionar com o meio e com outras pessoas.
Dessa forma, o primeiro encontro entre os dois personagens é permeado pelo fenômeno patológico de Hannibal, que se manifesta na relação através de comentários irônicos, sarcásticos e até mesmo ameaças contra a detetive. Essa dinâmica de relação pouco a pouco sofre alterações.
De encontro a encontro, Clarice e Hannibal fortalecem o vínculo e passam a enxergar além dos rótulos de detetive e assassino para enxergarem a essência de cada um, o ser-no-mundo como ele é. Para isso, um elemento mostra-se indispensável.
De acordo com Silva (2013), o diálogo é a base para que a relação eu-outro seja construída e se desenvolva de maneira saudável. Sem a presença de uma relação dialógica, a dimensão eu-outro é ineficaz e não gera frutos.
Como observado no filme, os diálogos entre Hannibal e Clarice, apesar de serem poucos e acontecerem em curtos períodos de tempo, servem como uma ponte entre o muro que os separa.
A aproximação entre os dois personagens atinge o ápice quando o psiquiatra pede que a jovem conte sobre sua infância e seus traumas — dessa maneira, o rótulo "detetive" é substituído pela pessoa Clarice, e o foco da relação acontece no encontro entre duas pessoas, muito além do significado social da existência de ambos.
Conclusão
Sem dúvidas, há uma complexidade de relações intra e interpessoais que são trabalhadas em "O Silêncio dos Inocentes", e são inúmeras as possibilidades de interpretação dos personagens e eventos da trama. A aproximação de Hannibal e Clarice, inusitada pela diferença de valores e preceitos de cada um, convida o espectador a refletir.
O filme evidencia que, por mais diferentes que sejam os indivíduos, um encontro é possível – e a relação sempre terá como resultado um produto capaz de tocar a essência de cada sujeito que esteja em interação. Ser-no-mundo é individual e intrapessoal.
Ser-com é um convite para o encontro, para o estabelecimento de relações interpessoais. E as duas maneiras de existir se completam para formar um produto que é dotado de possibilidades: o ser humano, com seus fenômenos e complexidades, capaz de transformar e de ser transformado.
O filme teve uma cópia praticamente escondida lançada pela Criterion, com 30 minutos a mais. Gerou também "Hannibal" (de Ridley Scoth, 2001) como sequência, e "Dragão Vermelho" (de Brett Hatter, 2002), prequel ambientada após a captura de Lecter.
Uma série de TV também foi produzida, mas nenhum dos exemplares citados se aproximou da representatividade que o filme de 1991 teve, tamanho sucesso deste expoente clássico da condição frágil e também destrutiva do ser humano. Obviamente vai receber meu seleto carimbo de
Ficha técnica
- Direção: Jonathan Demme
- Elenco: Jodie Foster, Anthony Hopkins, Ted Levine, Scott Glenn
- País: EUA
- Ano: 1991
- Gênero: Suspense; Terror
[Fonte: Gazeta do Povo, original por josé Flávio Júnior; (En)Cena, original por Breno Leonardo. Referências Bibliográficas: FEIJOO, Ana Maria; MATTAR, Cristine Monteiro. A Fenomenologia como Método de Investigação nas Filosofias da Existência e na Psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa; Out-Dez 2014, Vol. 30, n. 4, pg. 441-447. SILVA, Edna Maria. O ser na relação com o outro. Revista de Psicologia, Edição I. pg. 123-124, 2013. TEIXEIRA, José A. Carvalho. Introdução às abordagens fenomenológica e existencial em psicopatologia (II): as abordagens existenciais. Análise Psicológica, 2 (XV). pg 195-205. 1997.]
Ao Deus Perfeito Criador, toda glória.
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E nem 1% religioso.
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