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segunda-feira, 13 de maio de 2019

ACONTECIMENTOS - ESPECIAL: OS 30 ANOS DA NOVELA "VALE TUDO", UM MARCO NA TELEDRAMATURGIA BRASILEIRA

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Telenovelas, em geral, são vistas como um produto cultural menor. No Brasil, há certo senso comum – variante do conceito de indústria cultural da Escola de Frankfurt – disseminado de que as novelas alienam as massas, sendo negado ao espectador qualquer capacidade crítica. 

Ainda existe o agravante da quase - quase porque atualmente a Record TV não tem deixado muito a desejar em suas produções, haja vista os sucessos recentes de suas "novelas bíblicas", os "Dez Mandamentos" (2015) e "Jesus" (2018/19) hegemonia da Rede Globo na produção de telenovelas no Brasil – o que desperta a desconfiança em uma parte do público receptor pelo comportamento da emissora em eventos históricos do país como o Golpe Militar de 1964, as Diretas Já em 1984, as Eleições de 1989 e o impeachment de Dilma Rousseff em 2016. De qualquer forma, as novelas sempre tiveram imensa presença nos lares brasileiros e pautam, há décadas, a opinião pública, especialmente em temas ligados ao comportamento.

A influência das novelas na sociedade



Chamada de elenco da novela

Alguns autores como Aguinaldo Silva ("Tieta" - 1989/90, "Senhora do Destino" - 2004/05, "Império" - 2014/15) defendem que as novelas são obras coletivas e acabam reproduzindo, em sua ânsia por audiência, o momento no qual foram escritas e exibidas.

Algumas novelas, é verdade, acabam esquecidas algum tempo depois do último capítulo, mas algumas permanecem no imaginário popular e acabam sendo um interessante objeto para entender o momento em que atingiram o público. "Vale Tudo", novela do extinto horário das oito exibida entre maio de 1988 e janeiro de 1989, parece reproduzir em larga escala os anseios e o debate público daquele Brasil sem esperança do final da década de 80. Mas porque "Vale Tudo" parece ser uma novela que sobrevive no imaginário popular e continua a promover debates - inclusive nas searas acadêmicas - sobre seus personagens?

Odete Roitman (Beatriz Segall -✰1926/✞2018), a vilã mais amada de todos os tempos

"Vale Tudo", através da cultura pop, costuma ser recordada pelo assassinato de Odete Roitman - o mais famoso dos "quem matou?" das novelas brasileiras (antes a façanha era do "quem matou Salomão Hayalla", da novela "O Astro", de Janete Clair - ✰1925/✞1983, exibida em 1977, no mesmo horário e pela mesma emissora) - e pelas cenas de alcoolismo de Heleninha Roitman (Renata Sorrah), mas o texto da novela não é restrito ao mero conflito maniqueísta, tantas vezes reproduzidos. 

A trama e os personagens




Uma das cenas marcantes da novela: Raquel rasga o vestido de noivo da filha vilã Maria de Fátima

Logo no primeiro capítulo, somos apresentados a Raquel (Regina Duarte) e Maria de Fátima (Glória Pires, em um dos seus mais marcantes papéis). A mãe batalhadora e a filha ambiciosa. Estamos, é claro, diante de uma releitura do clássico americano "Mildred Pierce", personagem imortalizada no cinema por Joan Crawford (✰1904/✞1977) e na televisão por Kate Winslet. 

Raquel acredita no Brasil, Maria de Fátima quer fugir o mais rápido possível. 

"Sou uma cidadã do mundo, não tenho isso de nostalgia do Brasil"
dirá algumas vezes a alpinista social. 

Ainda no primeiro capítulo, temos a ideia do Brasil do final do governo Sarney – sucessivos planos econômicos fracassados e hiperinflação: Ivan (Antônio Fagundes) na fila para conseguir emprego, enquanto a simpática Aldeide (Lilia Cabral) rouba papel higiênico e sabonete da empresa onde trabalha ao afirmar que o salario não tem poder de 
compra. Isto há 30 atrás! Mais atual, impossível.


"Vale a pena ser honesto no Brasil?"

"Vale Tudo" e os "dilemas éticos da cultura brasileira"


Mais uma cena clássica: Odete Roitman esculacha o Brasil durante um jantar

No mesmo ano da veiculação da novela "Vale Tudo", especificamente em 1988, o sociólogo Jurandir Freire Costa publicava  o livro "A ética e o Espelho da Cultura" (Rocco, 184 pg), em que discutia, através de uma série de artigos, questões éticas da cultura brasileira no contexto dos anos 80. 

Um livro excelente. Pretendo destacar aqui a parte 2 de sua "Introdução", denominada justamente "Dilemas éticos da cultura brasileira", título ao qual recorri também para indicar do que se trata esta parte do artigo. Para Jurandir Freire Costa, estaríamos, naquele momento histórico, frente a um "dilema ético", em que 
"os princípios morais da cultura perdem a força que deveriam ter na direção das ações práticas" (p.38). 
Era, portanto, na concepção de Freire Costa, um momento de crise, e como tal, algo ainda não resolvido, em transição, sem definição mais concreta. Assim, 
"existe uma 'crise nos valores éticos' quando os indivíduos não mais se orientam pelos ideais de conduta moral aceitos e não sabem ou não conseguem propor novos ideais compatíveis com a tradição cultural" (id.). 
Neste momento de transição, Freire Costa diagnostica duas hipóteses para explicar as causas de crise e, como consequência, as formas de resolvê-las. Partindo das observações foucaultianas, chama a primeira de "hipótese jurídica". A partir dessa perspectiva, a ética (ou a moral): 
"É vista como um código de regras ideais de conduta. A crise é o conflito com o código, determinado pelo afastamento das condutas práticas do modelo ideal. O conceito central neste conflito 55 é o da transgressão (...). 
Pensamos que não agimos como seria bom agir porque uns transgridem as normas por cinismo e outros por ignorância" (p.39).
E ainda que "Vale Tudo" carregue esse clima de abertura democrática, a novela, por outro lado, expõe todo o cinismo do autor Gilberto Braga ao destilar ácidas criticas nos problemas estruturais do Brasil. Não só a abertura com Gal Costa - interpretando Cazuza (✰1958/✞1990) e George Israel na canção "Brasil" - dizendo que o seu cartão de crédito é uma navalha: a ambiciosa Maria de Fátima e seu amante, o garoto de programa César (Carlos Alberto Riccelli) mostram esse país que está disposto a tudo para subir na vida; Fátima vende a casa da mãe, se manda para o Rio de Janeiro, liga para o Segundo Caderno de O Globo para descobrir o corte de cabelo da moda, arma um golpe para o filho de Odete Roitman até que tenta se redimir, mas Gilberto Braga constrói um final feliz cínico para o casal Fátima e César ao lado de um político italiano que pretende disputar eleições e precisa fingir ser heterossexual - sendo, na verdade, o seu grande amor e comparsa César, o verdadeiro amante do tal político (Polêmico? Imagina!). Fátima, no último capítulo, admite mais uma vez que não nasceu para festinha infantil com salgadinho e brigadeiro em cidade de interior.

Já a vilã Odete Roitman, uma empresária que teve infância pobre, destila durante boa parte da trama um incontável número de senso comum preconceituoso sobre o país: 
"nostalgia de brasileiro no exterior é banzo, coisa de índio e negro",
resmunga, mas sem antes dizer que a classe alta brasileira é provinciana pois sequer conhece Buenos Aires. 

Os pobres, por sua vez, têm essa condição por serem preguiçosos, filosofa em um jantar no qual defende pena de morte e completa com um pedido para não debater Nordeste antes da refeição pois tira o apetite. Odete é o retrato do brasileiro sem empatia, mas sua vilania não é construída como uma caricatura, pois suas frases preconceituosas são críveis e repetidas até hoje. Odete, aliás, se mostra uma matriarca preocupada com a felicidade de filhos e netos, não é uma vilã que acorda e olha no espelho pensando em maldade. Ao fugir da caricatura, Gilberto Braga criou uma icônica personagem no imaginário popular e na teledramaturgia brasileira.

Último capítulo da novela, mas reticências para a vida real


O último capítulo de "Vale Tudo" não é ousado apenas por dar final feliz ao casal com desvio de caráter Fátima e César, mas ao também permitir a fuga, em um jatinho particular, da assassina de Odete Roitman, Leila (Cássia Kiss), e de seu marido, o empresário corrupto Marco Aurélio (Reginaldo Faria) – que em outra famosa cena manda uma banana para o Cristo Redentor enquanto Gal Costa canta "Brasil".

Poucos novelas posteriormente ousariam livrar seus vilões da morte, da prisão ou de algum tipo de punição, em geral exigida pelo público. Essa punição não encontramos em "Vale Tudo". E talvez por isso, a novela tenha sobrevivido durante estes trinta anos (e certamente ainda irá sobreviver por mais tempo): por ter um texto que, ao contrário de outros folhetins – criou uma polissemia em sua trama ao debater o Brasil.

E esse debate irônico, às vezes otimista, outras pessimista, viria a se tornar uma marca autoral das novelas de Gilberto Braga. Ao enfrentar as mazelas nacionais em seu texto, o escritor se acostumou a sacudir o espectador e a torná-lo parte estrutural daquele problema. Caminho oposto de outros novelistas como Manoel Carlos e Glória Perez que investem em merchandising social e tentam "educar" (entenda-se doutrinar) o público. Já Braga cutuca o público que o assiste. 

Gilberto Braga inclusive teria alguns problemas de audiência em obras posteriores ao debater luta de classes em "O Dono do Mundo" (1991) – novela com um texto pesado para quem procura entretenimento – "Pátria Minha" (1994) – que além de problemas de bastidores com o então casal Vera Fischer e Felipe Camargo, enfrentou resistências ao tratar de racismo e ocupação de terras – e mais recentemente com  "Babilônia" (2015) - uma das piores novela de todos os tempos - com um ousado - e totalmente dispensável - beijo entre Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg no primeiro capítulo que despertou a fúria de setores conservadores da sociedade brasileira.

Mas como já havia mostrado em "Vale Tudo" (1988), há trinta anos, Gilberto Braga nunca teve medo de incomodar, mesmo trabalhando em um sistema industrial que espera retorno financeiro. E suas críticas ao deslumbramento da classe média, ao racismo, machismo, homofobia – e suas releituras do cinema clássico americano – continuaram em trabalhos como "Celebridade" (2003), "Paraíso Tropical" (2007) e "Insensato Coração" (2011).

"Vale Tudo", porém, acima de tudo, era uma novela que representava a abertura política do Brasil e a promulgação da Constituição de 1988 – a chamada Constituição cidadã – e nesse sentido parecia ter certa esperança com o país do futuro. O otimismo exacerbado do personagem Poliana (Pedro Paulo Rangel), o não deslumbramento com o exterior de Afonso (Cássio Gabus Mendes), o caráter de Celina (Nathalia Timberg), a fé da protagonista Raque – que com trabalho duro sobe na vida e monta uma pequeno negócio – a autonomia feminina da estilosa jornalista Solange Duprat (Lídia Brondi) que chama a todos de cheri e o casal de lésbicas Laís (Cristina Pochaska) e Cecília (Lala Deheinzelin) – homossexualidade retratada no horário nobre que apontava para meios de comunicação sem as garras 
da censura federal da Ditadura Militar. 

Conclusão


"Vale Tudo" já foi reprisada duas vezes nesses 30 anos de sua exibição original: entre maio e novembro de 1992, na sessão Vale a Pena Ver de Novo; e no Canal Viva, na TV fechada inaugurando a faixa da madrugada (à 0h45min), de outubro de 2010 a julho de 2011. Foi a primeira novela exibida pelo canal também num horário alternativo (12h00min), para aqueles que não conseguiam acompanhá-la devido ao horário tardio.

Em 2002, a Globo produziu uma versão de "Vale Tudo" para o mercado hispânico nos Estados Unidos, intitulada "Vale Todo", em tradução literal, com texto de Yves Dumont e direção geral de Reynaldo Boury. A iniciativa de refazer a história naquelas circunstâncias foi reprovada por Gilberto Braga, como declarado em entrevista a André Bernardo e Cintia Lopes no livro "A Seguir, Cenas do Próximo Capítulo”"(Panda Books, 2009): 
"Achei a ideia lamentável e disse isso a eles. O resultado foi a catástrofe que previa. Claro que o tema é universal, mas eles não queriam uma história transgressora. Deviam ter escolhido uma novela mais convencional para o projeto."
Você pode até não gostar de novelas, mas não tem como negar o sucesso de "Vale Tudo" - que identifica que há uma perda da dimensão política solidária na sociedade contemporânea, o que ainda hoje reflete em vários aspectos da vida social, como as relações de trabalho e as pessoais. E isso não é novela, é vida real

[Fonte: Anallogicos; Scielo]

Ao Deus poderoso, toda glória. 
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E nem 1% religião

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