Dizem que o ano de 1968 ainda não terminou. Eu, pessoalmente, sou fascinado por essa época tão marcante e emblemática da História recente do Brasil. Talvez, pelo fato de eu ter nascido um anos antes. E Cinquenta anos depois, muitas questões colocadas naquela época não foram resolvidas e ainda geram polêmicos debates e infindáveis imbróglios políticos. É por isso que muitos estudantes brasileiros continuam se lembrando e homenageando o garoto de 17 anos morto naquele 28 de março (apesar de ter um grande número de estudantes que nunca sequer ouviram falar nem dele e nem de sua morte, que foi um dos grandes marcos na Ditadura Militar).
- Quero deixar bem claro que todo o conteúdo no qual me baseio na composição do texto deste artigo NÃO IMPRIME nenhuma opinião ou posicionamento pessoal, mas trata-se de tal e qual consta nos registros históricos.
O que diz a História
Na cidade do Rio de Janeiro, em 28 de março de 1968 os estudantes se organizavam para acender uma pira (significa a fogueira onde se queimavam cadáveres, segundo Aurélio Buarque de Holanda no Novo Dicionário da Língua Portuguesa), que seria o símbolo da luta estudantil.
Eles se organizavam para ir em passeata à Assembléia Legislativa, onde reivindicavam melhoria das condições do icônico restaurante Calabouço. Na Assembléia iria se realizar um ato solene. Os estudantes não puderam sair em passeata, pois a tropa da polícia militar cercou o restaurante e atirou nos estudantes, alguns ficaram feridos e um morreu, que foi o estudante secundarista Edson Luis.
O calabouço
O nome Calabouço é atribuído por ter sido uma antiga prisão. Em 1968, era o restaurante central dos estudantes. O Calabouço era um dos centros do movimento estudantil. Ele é representado como um ponto de encontro e de luta pelos direitos sociais e políticos, tornando-se um espaço social de grande significação.
De acordo com os historiadores, a composição social dos estudantes do Calabouço era que 90% eram estudantes que trabalhavam: bancários, office boys, comerciários, escriturários. Trabalhavam de dia e estudavam de noite. De modo geral, eram também originários do interior ou de outros estados do Brasil, procuravam o Rio para tentar mudar de vida, atraídos pela cidade grande, com mais oportunidades de estudo e trabalho.
Havia também operários, mas com expressão pouco significativa. E um pequeno percentual, aí em torno de 5% de estudantes, morando em favelas: Jacarezinho, Praia do Pinto, Ladeira dos Tabajaras, etc. Mas outras pessoas também frequentavam o calabouço.
O Calabouço atendia a uns sete mil jovens vindos de todos os estados do Brasil. O local passou a representar muito mais do que um simples espaço onde os estudantes faziam as suas refeições. Aquele lugar era o ponto de partida para o que eles acreditavam ser uma conquista do direito à liberdade, à igualdade, à justiça social e o fim de qualquer discriminação das quais se julgavam vítimas.
O acontecimento
Ainda de acordo com os historiadores, o estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, então com 17 anos, foi morto pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Edson era um dos 300 estudantes que jantavam no restaurante estudantil do Calabouço no final da tarde de 28 de março de 1968 quando o local foi invadido por policiais, em meio à tensão do quarto ano da Ditadura Militar no Brasil.
Os integrantes da Frente Unida dos integrantes do Calabouço (FUEC) preparavam mais uma das inúmeras manifestações que vinham acontecendo naquele ano, quando foram surpreendidos pelos policiais. Figuras hoje ilustres no cenário da cultura nacional, como os jornalistas Zuenir Ventura, Washington Novaes e o também cartunista Ziraldo assistiram ao evento que resultou na morte de Edson a cerca de 200m da janela do 6°andar da revista Visão, onde trabalhavam.
Chamados a depor sobre o caso, Ziraldo e Washington Novaes relataram praticamente o mesmo.
"A tropa da PM chegou às 18h:00, brandindo cassetetes. Os estudantes fugiram em duas direções e depois se reagruparam, avançando sobre os policiais com paus e pedras e a área fronteira ao restaurante ficou logo deserta".
Mais que uma morte, um marco
A mobilização em torno da morte do estudante foi o estopim para a primeira grande manifestação pública daquele ano, que culminaria três meses depois na Marcha dos 100 mil. O evento foi um dos principais protestos contra a Ditadura Militar. O aumento das manifestações públicas levaram a um endurecimento por parte do governo Costa e Silva (1967/1969) naquele ano que culminou com a edição do Ato Institucional 5 (AI-5).
O cineasta Eduardo Escorel filmou o enterro do estudante Edson Luís no dia 29 de março de 1968. Com o aumento da repressão, ele entregou o rolo com as imagens para a Cinemateca do Museu de Arte Moderna, de onde o material se extraviou e ficou perdido por cerca de 40 anos. Reencontrado e restaurado em 2008, o material com 12 minutos de filmagem em estado bruto, em preto e branco e sem áudio, está na Cinemateca Brasileira.
De manhã, na sexta-feira, 29 de março, o nome do estudante morto estava na primeira página dos jornais, passando desde então a ser de amplo conhecimento público. O Correio da Manhã trazia a notícia da invasão do restaurante do Calabouço que resultou no
"...massacre de alunos e na morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, assassinado por um tiro de pistola calibre 45 […]".
Ainda de acordo com a matéria do Correio da Manhã
"...os soldados teriam disparado rajadas de metralhadoras, enquanto o tenente que comandava o choque gritava pelo megafone parem de atirar, eu não dei ordem para ninguém atirar. Pouco depois, o mesmo oficial sacou sua arma e fez os disparos, um dos quais atingiu Edson Luís de Lima Souto. […]
Seus colegas, em seguida, levaram-no para o saguão da Assembleia Legislativa, onde se formou uma fila de populares para velar o corpo em meio a violentos discursos de vários líderes estudantis."
Na mesma matéria há alguns dados de Edson Luís, sugerindo a possibilidade de que ele pudesse vir a ser mais do que apenas um nome:
"...residia na rua Cairuçu, 302, em Vila Valqueire. Nasceu em 24 de fevereiro de 1950 e há três meses veio para o Rio procedente do Pará. Cursava o artigo 99 de 1º ciclo no Instituto Cooperativo de Ensino, anexo ao Calabouço, onde passava a maior parte do tempo, inclusive auxiliando em serviços burocráticos da secretaria do colégio, pois não possuía emprego".
O enterro e a missa de sétimo dia
No Rio de Janeiro, a cidade parou no dia do enterro. Para expressar seu protesto, os cinemas da Cinelândia amanheceram anunciando três filmes: "A noite dos Generais", "À queima roupa" e "Coração de luto". Com faixas, cartazes e palavras de ordem, a população protestava:
"Bala mata fome?", "Os velhos no poder, os jovens no caixão", "Mataram um estudante. E se fosse seu filho?"
e
"PM = Pode Matar".
Edson Luís foi enterrado ao som do hino nacional brasileiro, cantado pela multidão. Na manhã de 4 de abril, foi realizada a missa de sétimo dia de Edson Luís na Igreja da Candelária. Ao término da cerimônia religiosa, as pessoas que deixavam a igreja foram cercadas e atacadas pela cavalaria da polícia militar a golpes de sabre. Dezenas de pessoas ficaram feridas.
Mártir?
A transformação de Edson Luís em mártir, porém, não tardou. Teve início nesse mesmo dia. A página do Correio da Manhã dedicada à tragédia da véspera, trazia também o artigo "Da Primavera ao Outono de Sangue", de Arthur José Poerner, no qual ele afirma:
"Edson Luís de Lima Souto não é o primeiro estudante que tomba, no Brasil, vitimado pelo esquema de repressão policial. Ele é sim, possivelmente o mais jovem de todos.
O que não se pode adivinhar ainda é se ele será o primeiro a morrer em vão. Os outros contribuíram, com o seu sangue as suas mortes, para mudanças importantes na vida do país. […]
O assassinato de Demócrito de Souza Filho decretou a sentença de morte do Estado Novo. E o que representará o sacrifício de Edson Luís de Lima Souto, o mártir deste Outono de Sangue?"
Um comunicado das faculdades da Pontifícia Universidade Católica (PUC), reproduzido no Correio da Manhã, declarava:
"O atual regime instituído pelo golpe de 1º de abril acaba de demonstrar definitivamente a sua verdadeira face. Pena que isso custasse tão caro. Não bastava a repressão total, violenta, indiscriminada, a todas as ideias defendidas pelos estudantes; não bastava a supressão dos nossos órgãos de representação; não bastava nada disso.
Cometem agora assassinatos. Não é forte a palavra. Quando matam estudantes indefesos, qualquer que seja o motivo de sua manifestação, é um assassinato que praticam. Esperamos que, a esta altura, ninguém tenha dúvida sobre o caráter odioso do regime de força da ditadura. Porque a ditadura está definitivamente desmascarada.
Aí está a tão propalada abertura democrática. Aí está a boa vontade dos detentores do poder. Um regime que permite a morte de um estudante não merece mais que a nossa repulsa. […]
Não temos medo de afirmar, sem tom demagógico, que este fato assinalou, objetivamente, a implantação do terror. O crime de pensar, de querer alguma coisa melhor, não será mais permitido com a simples violência cívica. Aberto o precedente, a morte poderá passar a ser, a qualquer momento, o castigo oficial.
Diante disso, a PUC não se pode omitir. Ninguém se pode omitir. O protesto não é mais uma veleidade: é um dever. O DCE, conjuntamente com os diretórios acadêmicos da PUC decreta greve geral, e convoca suas Assembleias em caráter permanente."
Nada será como antes(?)
Naquele ano, manifestações e organizações estudantis eram proibidas – A primeira coisa que os militares fizeram, no dia seguinte ao Golpe Militar de 1964 (escrevi uma série especial de artigos sobre este tema: ➫ aqui, ➫ aqui, ➫ aqui e ➫ aqui), foi fechar as entidades estudantis e demolir a sede da UBES e da UNE.
Desde então, foram reprimidos todos os protestos por uma educação pública de qualidade ou que questionassem o regime.
Mesmo assim, estudantes insistiam na liberdade de expressão. Marcavam protestos relâmpagos, tentavam driblar policiais e agentes infiltrados nos movimentos, apanhavam e resistiam.
Circulava um "manual do protesto" distribuído pelo Comando Intelectual, com recomendações como "ir em jejum" e usar "leite de magnésia em torno dos olhos, para anular o gás".
Conclusão
O episódio Edson Luís levou à fase mais tensa da Ditadura. Em vez de permitir a liberdade de expressão e a democracia, sob pressão o regime autoritário se tornou ainda mais cruel. O ano de 1968 terminou com o Ato Institucional número 5 (AI-5): não existiam mais deputados nem Congresso Nacional. E as pessoas estavam proibidas de se reunir, em clubes, sindicatos, até nos próprios lares.
O regime iria durar nesses termos por mais 17 anos. A UBES não conseguiu atuar nem na ilegalidade por 10 anos, de 1971 a 1981. O mesmo ano foi decisivo para estudantes de outros lugares do mundo.
É um fenômeno de 1968 a existência de estudantes que contestavam a realidade, acreditavam num mundo diferente e acabaram presos, feridos ou mortos pelo Estado em vários lugares do mundo.
- Nos Estados Unidos, a juventude criticava a Guerra do Vietnã, o racismo e a exploração econômica da sociedade americana, por meio de manifestações, barricadas, ocupações.
- Na França, maio de 1968 entrou para a história pelos protestos estudantis que pediam reforma da educação.
- No México, estudantes pediam direitos civis e fim da repressão policial. Centenas foram mortos no "Massacre de Tlatelolco", às vésperas da Olimpíada.
Edson Luís, a partir de sua morte, transforma-se em personagem público. A sua morte é ritualizada. Em cada rito, no velório, no enterro, na missa de sétimo dia são momentos em que podemos ver uma expressão de sentimentos coletivos.
Antes, personagem anônimo, transforma-se em símbolo das lutas estudantis. O lugar em que é morto é fechado. A sua imagem está presente nas manifestações posteriores a sua morte. Importante pensar na luta pela destruição de alguns lugares que representavam expressões tanto no campo da política quanto da cultura. O fato é que a morte de Edson Luís se tornou – quer concordemos ou não – em um dos tantos acontecimentos que marcaram o período da Ditadura Militar no Brasil.
A Deus toda glória.
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