Este texto é mais um capítulo da minha série especial de artigos, "Canções Eternas Canções". E a canção que analisaremos hoje, é considerada um dos grandes clássicos da MPB.
Considerada atemporal, a belissíma canção 'Como Nossos Pais', ainda hoje é pauta temática até mesmo no meio acadêmico, devido a sua profundidade que nos leva à reflexão sobre questões de enorme relevância.
Considerada atemporal, a belissíma canção 'Como Nossos Pais', ainda hoje é pauta temática até mesmo no meio acadêmico, devido a sua profundidade que nos leva à reflexão sobre questões de enorme relevância.
'Como Nossos Pais' é uma música da autoria de Belchior, composta e gravada em 1976, integrando o disco "Alucinação". No mesmo ano, Elis Regina (✰1945/✞1982) gravou uma versão do tema, que se tornou extremamente popular.
Sobre o autor
Imagem: divulgação |
Cantava temas filosóficos, geracionais e humanos, em uma obra de forte caráter crítico, político e poético.
Dono de uma voz inconfundível e interpretação intensa, Belchior foi gravado por muitos outros grandes nomes da música brasileira. Seu legado e sua contribuição notória para o cancioneiro popular brasileiro são gigantescos.
Aliás, ele brincava — adicionando os sobrenomes do pai e da mãe — que seu nome completo era Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, o maior nome da música popular brasileira. Mas ele não precisava disso: apenas como Belchior, já era um dos maiores nomes da nossa MPB.
Do Ceará para o mundo
Belchior nasceu em Sobral, no Ceará, em 1946. Durante sua infância, foi cantador de feira e poeta repentista. Estudou música coral e piano — sua mãe cantava no coral da igreja.
"Não quero lhe falar, meu grande amor. Das coisas que aprendi nos discos, quero lhe contar como eu vivi. E tudo o que aconteceu comigo".
E como se pode completar o seu destino? Em 'Coração Selvagem', ele se expressa assim:
"Talvez eu morra jovem, alguma curva do caminho. Algum punhal de amor traído completará o meu destino".
E o tempo longe de casa, o que pode acontecer? 'Tudo Outra Vez' responde:
"Há tempo, muito tempo. Que eu estou longe de casa. E nessas ilhas, cheias de distância o meu blusão de couro se estragou".
Essas são canções de Belchior, que nos deixou em 2017, e no próximo 30 de abril, completa sete anos de sua morte.
Sucesso incompreendido
Belchior foi um dos maiores nomes da Música Popular Brasileira, além de cantor e compositor, era também artista plástico. Em 1974, lançou seu primeiro álbum, mas foi com seu segundo disco, o excepcional "Alucinação", de 1976 que emplacou sua carreira, com hits como 'Velha Roupa Colorida' e a icônica 'Apenas um Rapaz Latino Americano'.
O cantor, ao longo de sua carreira, lançou 14 discos, sendo o último "Autorretrato", de 1999. Compôs mais de 200 canções e suas músicas foram regravadas mais de 300 vezes, por diversos artistas.
Nos últimos 10 anos de vida, Belchior viveu em exílio no sul do país. Deixando uma carreira de sucesso, foi em um rumo a incertezas percorrendo várias cidades.
'Como Nossos Pais'
A letra
'Não quero lhe falarMeu grande amorDas coisas que aprendiNos discosQuero lhe contar como eu viviE tudo o que aconteceu comigoViver é melhor que sonharEu sei que o amorÉ uma coisa boaMas também seiQue qualquer cantoÉ menor do que a vidaDe qualquer pessoaPor isso cuidado, meu bemHá perigo na esquinaEles venceram e o sinalEstá fechado pra nósQue somos jovensPara abraçar seu irmãoE beijar sua menina na ruaÉ que se fez o seu braçoO seu lábio e a sua vozVocê me perguntaPela minha paixãoDigo que estou encantadaComo uma nova invençãoEu vou ficar nesta cidadeNão vou voltar pro sertãoPois vejo vir vindo no ventoCheiro de nova estaçãoEu sinto tudo na ferida vivaDo meu coraçãoJá faz tempoEu vi você na ruaCabelo ao ventoGente jovem reunidaNa parede da memóriaEssa lembrançaÉ o quadro que dói maisMinha dor é perceberQue apesar de termosFeito tudo o que fizemosAinda somos os mesmosE vivemosAinda somos os mesmosE vivemosComo os nossos paisNossos ídolosAinda são os mesmosE as aparênciasNão enganam nãoVocê diz que depois delesNão apareceu mais ninguémVocê pode até dizerQue eu tô por foraOu entãoQue eu tô inventandoMas é vocêQue ama o passadoE que não vêÉ vocêQue ama o passadoE que não vêQue o novo sempre vemHoje eu seiQue quem me deu a idéiaDe uma nova consciênciaE juventudeTá em casaGuardado por DeusContando o vil metal
[Psico]Analisando a canção, por estrofes
Reflexo do contexto histórico e social da época — muito embora se faz muito mais relevante do que nunca — a canção fala de um conflito geracional e da angústia da juventude. Também por isso, continua fazendo sentido nos dias que correm e ainda é um sucesso, tanto tempo depois.
- Estrofes 1 e 2
'Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vidaDe qualquer pessoa...
Desde os primeiros versos, podemos perceber que a música tem um interlocutor. O sujeito está falando com alguém, que identifica como sendo o seu "grande amor".
Explica que não quer falar de assuntos abstratos como sonhos, nem de arte ou música. Ele precisa falar da sua vida, partilhar com o outro aquilo que tem passado — mais associação livre impossível.
Existe, no ar, um clima de urgência, que vai sendo confirmado ao longo da canção. Na segunda estrofe, é sublinhado o valor da vida como algo superior, mais importante do que qualquer outra coisa.
- Estrofes 3 e 4
...Por isso cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braçoO seu lábio e a sua voz...
A terceira estrofe começa com um aviso. Há uma ameaça constante que paira em volta do sujeito, o "perigo na esquina" que espera para atacar.
O sujeito e seu interlocutor são aliados numa guerra na qual foram vencidos. Os adversários ganharam e hoje os perseguem. Esta é uma referência ao regime ditatorial instaurado em 64 e os retrocessos de mentalidade que trouxe ao povo brasileiro.
Cenário político da época

Perante a repressão, a juventude tentava resistir mas estava estagnada, parada no "sinal vermelho", esperando o seu tempo. Na música, o clima de medo e violência contrasta com a natureza desses indivíduos, que acreditavam ser feitos para o carinho e a camaradagem.
Aliás, a maneira sutil e poética, com a qual Belchior compunha suas obras, foi uma bem sucedida estratégia para vencer a dureza do regime militar, que através da censura, fazia um cerco extremo nas diversas manifestações artísticas e culturais.
Cenário cultural/social
- Estrofes 5 e 6
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva
Do meu coração
Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais...
Apesar de tudo, o eu-lírico não desiste. Assim, declara que não vai deixar a cidade, nem voltar para a terra onde nasceu. No meio do caos, ele continua tendo esperança e sente no ar indícios de um novo tempo que está a caminho.
Mesmo tentando ter uma perspectiva otimista, o sujeito não esconde a dor, declarando que o seu coração é uma "ferida viva". Recorrendo às lembranças, partilha memórias de um passado bem diferente, onde tudo era liberdade e leveza.
As ideias de "cabelo ao vento" e "gente jovem reunida" parecem ser referências ao movimento hippie, a contracultura que pregava "paz e amor". Para o sujeito, toda essa harmonia foi interrompida de repente e dominada pela opressão.
Refrão
...Minha dor é perceberQue apesar de termosFeito tudo o que fizemosAinda somos os mesmosE vivemosAinda somos os mesmosE vivemosComo os nossos pais...
O refrão carrega o pesar do sujeito, forçado a admitir a derrota. Olhando em volta, percebe que todos os esforços foram em vão, a luta não adiantou. Apesar da sua geração ter ideias consideravelmente diferentes das que vigoravam antes, o Brasil estava parado no tempo.
Por isso, os jovens eram forçados a viver segundo os mesmos padrões conservadores da geração anterior, sentindo que a sua era foi roubada por entre os seus dedos.
- Estrofe 7
...Nossos ídolosAinda são os mesmosE as aparênciasNão enganam nãoVocê diz que depois delesNão apareceu mais ninguém...
Ainda com o tom derrotista dos versos anteriores, a terceira estrofe mostra que estes indivíduos estão presos ao passado. Face a um presente tenebroso, continuam viajando nas memórias...
A passagem transmite também uma sensação de abandono, de orfandade. O sujeito e seu interlocutor parecem sentir que estão perdidos e não há ninguém para indicar o caminho.
- Estrofes 8 e 9
...Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando
Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vêQue o novo sempre vem...
Nas estrofes 8 e 9, o eu-lírico e seu amor parecem discordar. O interlocutor já não acredita que uma mudança seja possível, enquanto o sujeito tem um laivo de positividade.
Mesmo desanimado com a realidade em que vive, ele tenta convencer o outro que "o novo sempre vem". Embora pareça impossível, perante tanta repressão, a liberdade vai chegar.
A mensagem parece ser destinada a todos os que escutam a música: Belchior pede que não entreguem os pontos, porque a realidade vai mudar.
- Estrofe 10
...Hoje eu sei
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por DeusContando o vil metal'
A última estrofe parece ser uma reflexão acerca de todo o percurso da sua geração. Desiludido, o sujeito faz uma crítica evidente àqueles que foram seus companheiros de luta.
Os antigos revolucionários, e mesmo os artistas, que despertaram a sua consciência, são os mesmos que se venderam. É visível o rancor do sujeito, ao perceber que seus antigos ídolos foram corrompidos pelo dinheiro, o "vil metal".
Significado da música
O tema dá voz a uma geração de jovens que viram a sua liberdade confiscada pela instauração da ditadura militar brasileira.
Frutos de uma época marcada pela inovação, a experimentação e a contracultura, seu estilo de vida foi alterado pela chegada da repressão.
O retrocesso cultural e social gerou sentimentos de angústia e frustração nessa juventude, que não teve a oportunidade de trilhar seus caminhos longe da perseguição e da censura.
Conclusão
Belchior é, em 'Como Nossos Pais', porta-voz do seu tempo e do conflito geracional que se vivia. Embora pensassem de forma diferente e tivessem batalhado pela liberdade, esses jovens acabaram condenados a viver segundo a mesma moral conservadora que a geração anterior.
Apesar do contexto histórico fortemente marcado, a música continua fazendo sucesso e recebendo o reconhecimento das novas gerações.
A marcante versão de Elis Regina e outras interpretações
No mesmo ano em que a canção de Belchior foi lançada, Elis Regina gravou a sua versão, no célebre álbum "Falso Brilhante".
Considerada uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, a artista tornou 'Como Nossos Pais' num dos principais hinos da resistência.
- Maria Rita, filha de Elis, regravou o êxito, muitos anos depois.
- Pitty, cantora conhecida pelas músicas de forte crítica social, também fez a sua versão.
- Também é válido citar a interpretação da Sandy.
[Fonte: UFMG; Nova Brasil]
Ao Deus Perfeito Criador, toda glória.
- O blogue CONEXÃO GERAL presa pelo respeito à lei de direitos autorais (L9610. Lei nº 9.610, de 19/02/1998), creditando ao final de cada texto postado, todas as fontes citadas e/ou os originais usados como referências, assim como seus respectivos autores.

E nem 1% religioso.

Nenhum comentário:
Postar um comentário