quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

GRAMOFONE — "O PAPA É POP", ENGENHEIROS DO HAWAII

Não, eu não sou fã dos Engenheiros do Hawaii, nunca fui. Gosto de uma música ou outra, mas, fã não chego a ser. O fato de eu escolher este disco para ser mais um capítulo da minha série especial de artigos "Gramofone", é justamente pelo fato de dentre as músicas do trio gaúcho que eu gosto, algumas delas serem faixas justamente desse álbum, que é considerado pela maioria dos críticos musicais, como o melhor na carreira do "poeta de Dândi", Humberto Gessinger e sua trupe.

A história da banda


Formação clássica dos EdH: Humberto Gessinger, vocal
teclados e baixo; Augusto Licks, guitarra
 e Carlos Maltz, bateria
Durante as décadas de 80 e 90, era comum uma certa resistência da crítica e até mesmo um preconceito escancarado quando se falava em Engenheiros do Hawaii, seja pelas letras de Humberto Gessinger, repletas de citações literárias que partiam de Sartre ou Albert Camus, consideradas pretensiosas, ou apenas aversão por não ser mais uma banda do eixo dominante do Rio-São Paulo ou Brasília, algo envolvendo a áurea dos gaúchos parecia causar um relativo incômodo. 

Com um árduo início, a conquista por respeito veio aos poucos; distantes da cena onde tudo parecia acontecer, sem amigos influentes, conhecidos de gravadoras, totalmente outsiders, todos esses fatores pareciam influenciar.

Após estes desafios do começo para se firmarem no então abundamente frutífero cenário do rock nacional da década, já na virada da década de 1980 para a década de 1990, os Engenheiros do Hawaii estavam com o prestígio em alta. Desde o segundo álbum de estúdio, "A Revolta dos Dândis" (1987), a popularidade do trio gaúcho estava em franco crescimento. 
A banda emplacava um sucesso atrás do outro, as vendagens de discos aumentaram e as apresentações passaram a ter plateias cada vez maiores. A fase estava tão boa que em setembro de 1989, a banda fez quatro apresentações em Moscou, ainda na então União Soviética. No mesmo ano, em outubro, os Engenheiros do Hawaii lançaram o primeiro álbum gravado ao vivo do trio, "Alívio Imediato".
Com o prestígio tão em alta, os Engenheiros no Hawaii figuravam-se naquele momento entre as quatro maiores bandas do rock brasileiro. As outras três eram a Legião Urbana, Titãs e Paralamas do Sucesso. Contudo, o sucesso dos gaúchos parecia não convencer uma parcela da crítica musical, principalmente a do eixo Rio-São Paulo. 

Alguns analistas pareciam ter implicância com o trio, e isso ficava evidente em algumas resenhas e matérias a respeito da banda, o que em alguns momentos, acabou gerando atritos e troca de farpas entre alguns críticos e a banda. Ainda, os Engenheiros do Hawaii procuravam, ao lado dos seus fãs, dar de ombros a esses críticos, afinal o sucesso da banda era uma realidade.

A história do álbum


Se na estreia com quase não lembrado "Longe demais das capitais" o respeito não veio de forma instantânea e imediata, no segundo, "A revolta dos Dândis", a banda foi construindo uma sólida discografia e felizmente isso foi mudando a passos lentos. Em 1990 era a vez de, com "O Papa é Pop", a banda lançar seu salto mais ambicioso, partindo de influências diversas, sobretudo o rock progressivo inglês, com o Rush exercendo enorme influência em Humberto, tanto no teclado, no baixo ou no conceito de power trio.

Uma das faixas que ajudou a popularizar o disco é a versão de 'Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones', gravada pela banda Os Incríveis em 1967, mas que tem sua versão original italiana — 'C'era un Ragazzo Che Come me Amava i Beatles e i Rolling Stones' (Gianni Morandi) — lançada um ano antes, a aposta foi certeira e a música instantaneamente se torna um dos maiores hits da banda, lembrada até hoje.

O ápice da fama dos Engenheiros, portanto, aconteceu em 1990, através do seu quarto álbum de estúdio, ele mesmo, "O Papa é Pop". Lançado em outubro daquele ano, "O Papa é Pop" foi um divisor de águas na carreira do trio gaúcho, tanto do ponto de vista comercial como artístico. 
Foi o álbum mais vendido dos Engenheiros do Hawaii, e artisticamente, promoveu um redirecionamento musical do grupo.
O fã mais atento deve ter percebido que essa reorientação estava por vir já no álbum "Alívio Imediato", que embora gravado ao vivo, trazia duas faixas inéditas gravadas em estúdio que davam sinais de um processo mudança musical: 'Nau à Deriva' e 'Alívio Imediato'. Essas duas músicas já davam pistas de que o som da banda se distanciaria do folk rock que predominou nos álbuns "A Revolta dos Dândis" e "Ouça O Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém" (1988) e se direcionaria para o rock progressivo.

Em "O Papa é Pop" é notável que ouvimos uma banda se tornando mais ambiciosa, optando por ousar em composições mais complexas que as dos trabalhos anteriores, seja na faixa de abertura em 'Exército de Um Homem Só', claro exemplo do cuidado que a banda vai dar as faixas seguintes ou em 'Anoiteceu em Porto Alegre', a favorita de muitos, com sua extensa letra com direito a citações diretas de Pink Floyd 
"...The sun is the same in the relative way, but you’re older..." 
e Beatles, com 
"...Here comes the sun..." 
e uma das melhores linhas de baixo de Gessinger. 

Por falar no instrumento que Gessinger domina tão bem, já começa o destaque na forte introdução de 'A Violência Travestida Faz Seu Trottoir', beirando seus quase 7 minutos de duração, assim como 'Anoiteceu...', são alguns exemplos de como o caminho da banda destoava das escolhas mais retas e tradicionais que a maioria das bandas do país vinham executando.

Faixa a Faixa


  • Na versão LP do álbum, cada lado foi batizado com um nome. O lado A foi chamado de "Lado Papa", e o lado B de "Lado Pop".
O chamado "Lado Papa" começa com 01) 'O Exército de Um Homem Só I', música cujo título foi inspirado no livro "O Exército de Um Homem Só", do escritor gaúcho Moacyr Scliar (✩1937/✞2011), lançado em 1973. A música é dedicada ao piloto alemão Mathias Rust, que em maio de 1987, com apenas, 18 anos de idade, invade o espaço aéreo da União Soviética com um avião Cessna 172, e pousou em plena Praça Vermelha, em Moscou.

Em seguida vem 02) 'Era Um Garoto Que Como Eu Amava Os Beatles e Os Rolling Stones'. Composta por Franco Migliacci (✩1930/✞2023) e Mauro Lusini, e gravada originalmente por Gianni Morandi em 1966. 

A letra trata sobre um jovem que foi mandado para a Guerra do Vietnã, deixando para trás sua família, amigos e sonhos para encarar uma guerra que não era sua. Voltou de lá morto, enfiado num caixão e com duas medalhas no peito. A música era tocada pelos Engenheiros dos shows da campanha para presidente da república de Leonel Brizola, em 1989. Empolgados pela boa recepção do público nos shows dos comícios, decidiram gravá-la.

A versão dos Engenheiros para 'Era Um Garoto...' é mais robusta, mais elaborada que a dos Incríveis, recheada de teclados, loops e efeitos de gravação. Existem exageros como um solo de guitarra tocando o Hino da Independência do Brasil e uma voz de um locutor berrando "Brasil!, Brasil!" — extravagâncias sonoras completamente desnecessárias, diga-se de passagem — descaracterizando a proposta original da canção que faz referência a um conflito que envolveu os Estados Unidos e o Vietnã. 

A regravação da música em si soa anacrônica para a época, já que a Guerra do Vietnã já havia acabado há mais de 15 anos, e as questões geopolíticas eram outras como a recém queda do Muro de Berlim, a reunificação das Alemanhas e a Guerra do Golfo, que havia começado em agosto de 1990, dois meses antes do lançamento de "O Papa é Pop".

Ainda sobre a relação Engenheiros do Hawaii e os Incríveis, um dado curioso sobre a capa de "O Papa é Pop" é que o seu projeto gráfico foi inspirado na capa de um single dos Incríveis, lançado, em 1971. Da faixa preta na parte superior da capa até a disposição foto e das letras, percebe-se uma grande semelhança entre as capas.

Assim que acaba 'Era Um Garoto...', entram a bateria de Carlos Maltz em ritmo marcial, seguida por um som de soldados marchando, dando início a 03) 'O Exército De Um Homem Só II', a segunda parte da música que abre o álbum, também dedicada ao piloto Mathias Rust. Desta vez, por um envolvimento do piloto numa tentativa de homicídio, que tentou esfaquear uma enfermeira por quem se apaixonou, mas não era correspondido: foi preso e condenado a quatro anos de prisão.

04) 'Nunca Mais Poder' possui um título de duplo sentido: ora uma negação a ter poder, ora poder ter ou fazer alguma coisa. Inspirada no poema "Eterno", de Carlos Drummond de Andrade (✩1902/✞1987), 'Nunca Mais Poder' trata sobre o passado e o presente, o eterno e o moderno, o ontem e o hoje. A música termina com uma linha melódica bastante conhecida como se fosse uma "senha" para a faixa seguinte.

05) 'Pra Ser Sincero' começa com um solo de piano citando o final da faixa anterior. Esta é uma das mais famosas canções dos Engenheiros do Hawaii, uma balada romântica e melancólica sobre um relacionamento acabou. Aliás, não tenha dúvida que essa obviedade é o que fez com que essa faixa se tornasse um hit radiofônico. Afinal, a maioria absoluta gosta de coisas óbvias, né?

O "Lado Papa", se encerra com o rock balada 06) 'Olhos Iguais Aos Seus', que começa com a voz de Humberto Gessinger acompanhado por um piano elétrico, para mais adiante ter o acompanhamento dos outros instrumentos. Ao final, a canção termina com a voz de Gessinger num efeito "metálico" perguntando 
"...o que fazem as pessoas para serem tão iguais?".

O "Lado Pop" começa com a faixa título 01) 'O Papa é Pop', a faixa que dá nome ao álbum, um dos maiores sucessos da carreira dos Engenheiros do Hawaii. A música trata sobre consumismo e o imediatismo do mundo moderno, onde qualquer coisa pode virar produto de consumo ou elemento promocional, desde uma camiseta com frases de efeito a um atentado contra personalidades, como a que ocorreu contra o Papa João Paulo II (✩1920/✞2005), em 1981. Tudo vira marketing, tudo vira produto, tudo é capaz de vender qualquer coisa, e esse é o mote da canção. 
Em 'O Papa É Pop', a canção, os Engenheiros do Hawaii contam com participação especial dos veteranos do Golden Boys, grupo vocal que fez muito sucesso na Jovem Guarda, e que também era muito solicitado para fazer vocais de apoio nas gravações de discos de diversos artistas.
As duas próximas faixas, 02) 'A Violência Travestida Faz Seu Trottoir' e 03) 'Aconteceu Em Porto Alegre', apesar de não terem sido sucessos radiofônicos, sãos duas das mais interessantes faixas do álbum "O Papa é Pop". São também as mais longas do disco e as que mais deixam evidentes o direcionamento da banda para o rock progressivo.

Em 'A Violência Travestida Faz Seu Trottoir' o trio gaúcho aborda as várias facetas e sutilezas da violência em nossas vidas, algumas até quase imperceptíveis. A música é dividida em vários andamentos, ora mais rápido, ora mais lento. No meio da canção, Humberto narra uma história inusitada de um homem apaixonado por uma apresentadora de programa infantil da TV, que se suicidou por não ter o seu amor correspondido. Na área instrumental da música, o destaque fica para o ritmo cavalgado da linha de baixo executada por Humberto Gessinger. 

Uma curiosidade: a voz feminina que participa da canção é a da cantora Patrícia Marx (foto), que na época tinha apenas 16 anos.

'Anoiteceu Em Porto Alegre' é uma espécie de crônica em forma de música que retrata os fatos que acontecem nas ruas e becos da cidade de Porto Alegre durante a noite e madrugada de um dia qualquer. 

A letra faz citações de Beatles e Pink Floyd. Em meio aos versos, há várias colagens sonoras como as do programa A Voz do Brasil e de uma narração de um locutor esportivo narrando a vitória do Grêmio (time do qual Humberto Gessinger é torcedor) campeão da Taça Libertadores e campeão mundial de clubes em 1983.

04) 'Ilusão De Ótica' é a faixa que encerra o álbum, e brinca com as frases subliminares. Na época que o álbum foi lançado, 'Ilusão de Ótica' causou uma certa polêmica. Num determinado trecho final da música, Humberto Gessinger parece falar em russo, mas na verdade, a rotação de sua voz está em sentido inverso. 

Executando o disco ao contrário, pode-se ouvir o que realmente quis dizer: 
"Por quê que cê tá ouvindo isso ao contrário? O quê que 'cê tá procurando? Hein?" 
e aí, mais adiante, volta ao normal, quando o final da música é marcado por mais coisas da "linguagem alienígena" do vocalista, encerrando a música, os versos ao contrário eram 
"...mal entendido, bem intencionado/mal informado, bem aventurado/Jesus salva, salve as baleias, leia livros/safe sex, relax/o papa é pop, o país é pobre, o PIB é pouco/meu pipi no seu popô, seu popô no meu pipi/poesia é um porre/o futebol brasileiro são várias camisetas com a mesma propaganda de refrigerantes/a juventude brasileira.../sem bandeiras, sem fronteiras pra defender".
Ou seja, tudo não passa de uma brincadeira, uma "pegadinha" para surpreender aqueles que veem teoria da conspiração em tudo, usando algo que à época estava muito na moda — principalmente nos círculos religiosos —: as tais mensagens subliminares.
Nas versões CD e fita cassete, foi incluída uma faixa bônus, 'Perfeita Simetria', que é uma "irmã" da faixa "O Papa É Pop", por possuir uma base instrumental semelhante, a mesma linha melódica, mas uma letra diferente.

Conclusão


Com a formação clássica Gessinger, Licks e Maltz, clamada por muitos ate hoje, não é à toa que "O Papa é Pop" segue como o disco mais vendido da história do grupo, seja nas músicas mais memoráveis ou pelas excelentes do lado B. Um dos melhores registros de uma banda que, apesar da árdua resistência, conquistou o país e não precisa mais provar nada pra ninguém.

O que fica na cabeça ao final de "O Papa é Pop" é que este foi, verdadeiramente, o álbum que mudou tudo para os Engenheiros do Hawaii. Ele é um salto enorme, apresentando diferenças quase assustadoras quando comparado a "Ouça O Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém" — com muito mais ambição, maturidade e resultados muito mais satisfatórios. 

Ainda que, para muitos, a banda veio a se superar nos dois álbuns seguintes, "O Papa é Pop" continua sendo meu disco favorito da banda. Apesar das críticas duras de uma parcela da imprensa, os Engenheiros do Hawaii não se abalaram com os ataques. 

Depois da turnê de "O Papa é Pop", o trio entrou de férias, mas que não duraram muito. Logo estavam de volta ao trabalho para preparação de repertório para o disco seguinte, "Várias Variáveis", de 1991, trabalho em que banda deu prosseguimento ao seu direcionamento musical para o rock progressivo. É ele que podemos chamar de um dos mais importantes, melhores e mais inventivos discos do mainstream do pop rock nacional.

Vai levar meu seleto carimbo de:
[Fonte: Entre Acordes, original por Régis Moura (acessado em 10/01/2024); Discos Essenciais, original por Sidney Falcão (acessado em 10/01/2024)]

Ao Deus Todo-Poderoso e Perfeito Criador, toda glória.
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E nem 1% religioso.

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