quarta-feira, 16 de março de 2022

DIRETO AO PONTO — "ESTELIONATO SENTIMENTAL": FIQUE ESPERTA(O) OU A PRÓXIMA VÍTIMA PODE SER VOCÊ!

Eles chegam intensos, estão sempre disponíveis, te levam à paixão e, quando você menos espera, dão o bote. Em resumo, este é o jeito dos "golpistas do amor", "Don Ruans virtuais" ou "estelionatários sentimentais", os nomes são vários, o golpe ou - em liguagem mais peculiar — o "modus operandis", o mesmo. É o que veremos no texto deste artigo, mais um capítulo da minha série especial Direto ao Ponto.

É golpe!

Homem primata, capitalismo selvagem


O dinheiro está de tal forma enraizado ao nosso cotidiano e por vezes é tão banalizado que sequer nos damos conta do quanto esse assunto é complexo. Da escolha profissão até a forma de poupança, do valor do tempo até as escolhas amorosas, quase todos os aspectos de nossa vida estão sedimentados no poder financeiro.

Karl Marx (☆1818/✞1883), em sua famosa obra "O Capital" (Alemanha, 1867, 208 pg., Ed. Veneta), introduziu o conceito de "fetiche da mercadoria", ou seja: as pessoas são coisas, às quais é atribuído um valor simbólico, sendo a conduta humana precificada numa espécie de liberdade sem princípios. Nosso valor humano transmuta-se em valor de mercado e quanto maior nosso preço, melhor. Somos limitados tão somente pela falta de dinheiro: é assim que o mercado funciona.

Simpatizo com os conceitos de Sigmund Freud (☆1856/✞1939), que com maestria abordou sobre o significado do dinheiro em nossa vida emocional. Segundo o pai da psicanálise, no nosso inconsciente o dinheiro, a exemplo do pênis, possui qualidade "fálica", isto é: ambos são representantes do poder. A eles atribuímos o poder de preencher, de completar, de remediar o que nos falta, além, logicamente, de comprar, consumir, seduzir e conquistar.

Assim, de acordo com cada experiência de vida, têm-se as seguintes relações com o dinheiro: 
  • a) sujo e destrutivo — inconscientemente o dinheiro provoca repulsa, nojo, culpa ou medo. Quem tem esse padrão pode receber dinheiro muito facilmente (herança, jogos de azar), mas nunca terão nenhum, porque sempre inconscientemente rejeitam a fortuna; 
  • b) algo valioso — o dinheiro passa a ser uma preocupação constante. Próprio de pessoas sovinas, controladoras e rígidas; 
  • c) símbolo de poder — pessoas que desenvolvem este padrão experimentam várias sensações (fascínio, desdém e competividade quanto tem dinheiro; e inveja, ganância, desprezo e ressentimento quanto não tem). Atrelam o sucesso pessoal à quantidade de dinheiro (e poder), ignorando outras qualidades e;
  • d) dinheiro como dádiva — encaram o dinheiro como algo sagrado, com sentimento de júbilo, gratidão e generosidade, capaz de gerar abundância a si mesmo e aos outros.
A relação dinheiro "versus" relacionamento são sempre objetos de várias abordagens no âmbito jurídico: alimentos, pensão a ex-cônjuges, danos morais, relações "sugar" são alguns dos exemplos de como a vida financeira está intimamente atrelada à vida emocional.

Recentemente porém surgiu um novo conceito: "estelionato sentimental". Mas o que representa este termo?

Conceituando o "estelionato sentimental"


Oras, não é novidade que toda a relação (afetiva ou comercial) se estabelece com base na boa-fé e lealdade dos parceiros, sendo livre a forma de pactuação dos contratos. Porém, mesmo o contrato tácito (aquele que não possui documento escrito) faz lei entre as partes.

Quando uma das partes demonstra má-fé na condução de um contrato ou relação comercial, utilizando-se de artifício ou induz terceira pessoa a erro para, assim obter para si ou para outrem uma vantagem ilícita, comete um crime contra o patrimônio: o estelionato, previsto no art. 171, do Código Penal.

No campo dos relacionamentos, quando um dos parceiros age com má-fé e, de forma proposital, se utiliza do afeto alheio para obter vantagens pessoais, sua conduta pode caracterizar o que atualmente se denomina "estelionato sentimental".

O termo foi inicialmente utilizado por uma brasiliense que, apaixonada, deixou-se ludibriar pelo parceiro que, aproveitando-se da fase enamorada da mesma lhe prometia casamento enquanto requisitava (e era atendido) com vários empréstimos e depósitos em conta corrente, prometendo que seriam quitados assim que conseguisse a tão sonhada estabilidade financeira. 

Passados alguns meses, o namorado retomou o casamento com a ex-mulher, deixando a apaixonada provedora descrente no amor e no recebimento dos valores que havia desembolsado. 

Ela então ajuizou uma ação buscando o ressarcimento dos danos materiais (os empréstimos totalizaram R$ 101.537,71) e morais sofridos. Em sua defesa, o Réu alegou que o desembolso dos valores deviam ser considerados "mimos", presentes doados espontaneamente e, como tal, não era de bom tom exigir a devolução ou ressarcimento. 

O Juiz de primeiro grau aceitou as alegações da autora, afirmando que embora a ajuda financeira no curso de uma relação não seja ilícita (ou seja, não é contrária à lei), a questão posta nos autos na verdade configura abuso do direito de ajuda e desrespeito aos deveres decorrentes da boa-fé objetiva: lealdade e confiança. Assim, o requerido foi condenado em primeiro grau a ressarcir integralmente o valor dos empréstimos, tendo a decisão sido confirmada em grau de recurso. 

Também buscando ressarcimento de valores subtraídos por um golpista que se utilizava do famoso aplicativo de relacionamentos Tinder, 25 mulheres de cinco Estados e do DF criaram grupos via WhatsApp para, em conjunto, receber denúncias, rastrear e alertar os novos alvos do acusado. 

Seu método era muito simples: conhecia mulheres a quem se apresentava como o verdadeiro "príncipe encantado": charmoso, educado, culto e louco para casar. Em pouco tempo, conquistava a confiança das vítimas e falava dos problemas financeiros, convencendo-as a emprestar dinheiro que seria devolvido em breve, sumindo em seguida. 

Oras, a troca de favores no bojo dos relacionamentos é natural e frequente, sendo natural supor que, como em qualquer relação interpessoal, os participantes tenham suas atitudes amparadas na boa-fé e nas obrigações recíprocas. Partindo-se dessa premissa, cabe indagar: a atitude demonstrada pelos parceiros amorosos que, aproveitando-se da boa fé do outro colhem para si benefícios financeiros é matéria penal ou apenas mais um caso de reparação civil?

O entendimento jurídico


O crime de estelionato previsto no Código Penal possui as características próprias de obtenção de vantagem, prejuízo a outrem, e subtração de objeto sem que a vítima perceba ou, se perceber, não impede que ocorra. 

Em suma: a própria vítima disponibiliza, por acreditar na boa-fé do depositário, o objeto a ser subtraído. Tal disposição se dá através da entrega, da cessão ou da prestação patrimonial. Sempre há o binômio: vantagem ilícita e prejuízo alheio.

São raros os casos em nossos tribunais em que se enfrenta a matéria, mas é possível a condenação quando reconhecidas a autoria e materialidade do crime. No RS, houve a condenação de um estelionatário que se aproveitava de vítimas em quadro social de fragilidade no campo sentimental em decorrência de separação, viuvez ou outras tragédias pessoais. Sua pena alcançou inacreditáveis 43 anos de condenação. 

Quando se fala em "estelionato sentimental", há que se destacar o uso de artifício, malícia, astúcia, resultando em verdadeira fraude intelectual, ou seja: a vítima é induzida ao erro, através de uma falsa percepção da realidade, mantendo-se nessa condição até que se alcance o objetivo desejado. 

Induzindo a vítima a acreditar que há recíproca de sentimentos, o aproveitador cativa-a pelos laços afetivos e conquista sua confiança, muitas vezes colocando-se como a parte frágil e dependente da relação. Sentindo-se envolvida, a vítima abandona a razão e decide com base no sentimentalismo, cedendo aos pedidos do "estelionatário". 

Por isso se diz que há um "vício de consentimento", eis que a pessoa enganada não possui noção perfeita do que está acontecendo. Muitas vezes, a vítima é induzida a acreditar que há a recíproca sentimental.

Contrariamente ao decidido pelo TJDF, muitos são os juristas que discordam do entendimento de que o "estelionato sentimental" prevê, além da obrigatoriedade de ressarcimento dos prejuízos materiais sofridos pela vítima, também a possibilidade de reparação de danos morais, quando demonstrados os atos vexatórios aos quais a mesma restou exposta publicamente ou diante da família. 

Relembrando que o valor da condenação dos danos morais é apurado tendo em conta duas questões: as condições da vítima (padecimento, circunstâncias do fato e consequências psicológicas de longa duração) e do ofensor (gravidade da conduta, desconsideração dos sentimentos do outro, força econômica do autor, punição e desestímulo ao réu).

O outro lado


Mas há entendimento contrários à condenação do "estelionatário sentimental". Seus defensores pregam que o estelionato é crime de mão dupla: não seria responsável somente quem deu amor para receber dinheiro, mas quem dá dinheiro para receber amor também contribui para o "crime", numa verdadeira culpa concorrente. 

Veja abaixo como identificar e se precaver contra esse tipo de golpe, que, com advento da popularização da internet e suas redes/mídias sociais/digitais, ficou ainda mais potencializado, mesmo apesar de não ser um tipo de golpe que podemos dizer ser novo.
  • 1. O que é estelionato sentimental? É crime?
Ocorre quando alguém se aproveita do carinho e da confiança de um relacionamento para aplicar golpe contra outra pessoa.

Em determinado momento, depois de nutrir o amor na parceira ou no parceiro, o golpista passa a desvirtuar o afeto para obter vantagem econômica ilegal em cima do patrimônio da vítima. Para isso, o autor induz a pessoa ao prejuízo ou ao erro por meio de fraudes e farsas para obter dinheiro e outros bens materiais.

Como visto acima, essa prática é tipificada como estelionato, crime previsto no artigo 171 do Código Penal Brasileiro, que prevê pena de reclusão por um a cinco anos.
  • 2. Como reconhecer que estou sendo vítima de estelionato sentimental?
De maneira geral, o estelionato encontra terreno fértil na paixão e em relações abusivas. É importante saber reconhecer sinais de um relacionamento tóxico, como, por exemplo, situações em que você teme a forma como a pessoa reagirá caso você negue algo.

É difícil falar não, especialmente para quem se ama. Esteja atento se essa relação está te colocando num estado de manipulação, aproveitando-se de alguma vulnerabilidade sua.

Culturalmente, mulheres têm uma dificuldade maior de estabelecer limites, de dizer não. Em estruturas familiares, por exemplo, a figura do pai, do homem, é quem briga, quem diz não com maior tranquilidade. Das mulheres, as sociedades patriarcais esperam que seja só dela o papel do acolhimento, do abraço, do cuidar e servir.

Além das mulheres, homossexuais masculinos também estão entre os alvos preferidos desse tipo de golpista. Em muitos casos, a extorsão acontece pelo fato de que muitos gays mantém relacionamentos secretos, porque não ter assumida sua orientação sexual. Valendo-se dessa peculiaridade, os golpistas começam a extorquir suas vítimas através de chantagens, ameaçando-as da revelação pública de seus segredos.

Fique atento a
Analise três pontos básicos da relação: se há boa fé, lealdade e transparência. Ajudar o seu parceiro financeiramente não configura exatamente um estelionato, mas se essa pessoa diz que vai te pagar, que devolverá aquele valor, mas não devolve, há uma quebra de requisito para um relacionamento saudável. Se a pessoa não fala a verdade, não te apresenta para familiares e amigos dele e faz falsas promessas, isso é um péssimo sinal.

Observe se ele te priva da liberdade de ver seus amigos e familiares, se anda restringindo o seu contato com o mundo externo. Muitas vezes, essa é uma forma que estelionatários se utilizam para exercer o controle sobre você e evitar que quem te ama de verdade te ajude a ver indícios de abuso no seu relacionamento.
As relações humanas são complexas e nem tudo é estelionato sentimental. Se você estava namorando e deu algum bem em forma de presente, mas depois se arrependeu, isso não configura crime por parte da pessoa com quem você se relacionou.
  • 3. Qual o perfil dos criminosos? Como eles costumam se comportar?
Estelionatários são conhecidos pela inteligência em enganar e costumam agir quando as vítimas estão desatentas, envolvidas. Eles se mostram muito presentes, apaixonados, são intensos, falam em oficializar o relacionamento e trazem ao parceiro a sensação de lua de mel.

O perfil desse tipo de bandido é estudado pelas ciências criminais e é sabe-se que alguns deles costumam agir em sequência. Geralmente, estelionatários não têm apenas uma vítima, têm histórico de relacionamentos onde a prática da enganação para vantagem pessoal é reiterada. 

Esse tipo costuma ter facilidade de comunicação oral e, não raro, se mostram bem apessoados, bem vestidos. Eles têm em sites e aplicativos de relacionamentos os locais preferidos para a caça de suas vítimas: muito cuidado, pois por trás de um príncipe, pode se esconder algo mais asqueroso — e perigoso — que um sapo!
  • 4. Quem são as principais vítimas de estelionatários sentimentais?
Não há uma estatística específica para essa modalidade do estelionato. Qualquer pessoa pode ser vítima, mas os criminosos preferem aquelas em situação de vulnerabilidade, como idosos, viúvos, pessoas com deficiência ou acometidas por alguma doença ou transtorno de saúde mental. Estes bandidos também miram pessoas de minorias sociais, como mulheres, negros e população LGBTQIA+.

Especialistas acreditam que este tipo de crime pode ter aumentado na pandemia devido ao estado de fragilidade emocional de muita gente, gerando carência que deixa as pessoas mais expostas a aproveitadores.
  • 5. Como me proteger contra estelionatários sentimentais?
A primeira grande recomendação é não compartilhar as suas senhas bancárias e dados pessoais importantes, como CPF, RG, carteira de habilitação. Preserve a sua privacidade financeira e evite que o bandido utilize suas informações e documentos para compras ou outros atos em seu nome.

Estelionatários iniciam seus crimes construindo uma determinada confiança para só depois agirem para te prejudicar. Dentro de relações amorosas, é comum haver bastante entrega, mas, mais tarde, isso pode ser um problema porque a vítima deixa de produzir provas para comprovar o crime.

Se você for emprestar um dinheiro, por exemplo, procure documentar esse acordo através de conversa no WhatsApp e envie comprovantes da transferência por e-mail, sinalizando na escrita que aquele é um valor emprestado para tal finalidade, tenha prints de tudo (E, em último caso, não exite: diga, não!).

Dessa forma, você estará produzindo provas documentais que podem te dar segurança jurídica contra o bandido. Tenha também provas testemunhais de quem convive com você para ter mais chances de ter o reconhecimento do golpe.

Desconfie ainda mais de parceiros que te pedem empréstimo em dinheiro vivo porque essa é uma maneira que eles utilizam para evitar o rastreamento. Após te prejudicar, ele pode desaparecer.
  • 6. O que devo fazer se eu for vítima de estelionato? Qual o primeiro passo?
O primeiro passo é entender se há chances de o estelionatário violar seus dados bancários e de redes sociais. Se sim, troque todas as senhas imediatamente e entre em contato com a gerência do seu banco.

Em seguida, procure uma delegacia para registrar queixa contra o criminoso. Se você tiver condições, compareça ao local na presença de um advogado para ter melhor orientação sobre seu caso. Se não, procure suporte da Defensoria Pública do seu Estado.

Se você descobriu que está sendo vítima de um golpe, mas o golpe ainda não foi concluído, trabalhe a sua inteligência emocional e procure uma delegacia para que a polícia possa fazer o que chama de "flagrante esperado" — quando a polícia te acompanha para evitar que o crime seja cometido e em seguida prende o criminoso.

Jamais diga ao autor que você descobriu que ele está te aplicando um golpe. Procure as autoridades imediatamente.

Se você for mulher e se houver essa estrutura na sua cidade, o mais indicado é procurar uma Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam), já que o estelionato sentimental está na seara das violências cometidas contra esse público.

O crime de estelionato pode ter repercussões criminal e civil. Isso significa que o golpista pode ser preso e você pode entrar com uma ação judicial para tentar reaver o que perdeu, movendo um processo por danos morais e materiais.
  • 7. Como lidar com minhas questões psicológicas depois do crime?
De imediato, saiba que você não precisa se envergonhar de ter caído no golpe. Você é uma vítima disso tudo. O criminoso é quem deveria se envergonhar. Apesar disso, sabe-se que o processo de lidar com tudo o que aconteceu pode ser doloroso, então procure acolhimento familiar e de amigos para lidar com os sentimentos ruins que isso possa ter gerado em você.

O melhor a fazer é buscar ajuda profissional de psicólogos para entender e lidar com o trauma, a fim de que você consiga se organizar mentalmente para se reerguer.

Conclusão


Amor, afetividade, carinho e companheirismo não se exigem: se recebe ou não. Não há ilícito em se apaixonar, bem como não é crime encerrar um relacionamento, sendo, ao contrário, um exercício regular de direito. Também não o é aceitar presentes de quem se ama.

Mas compartilho do entendimento de que, se alguém maliciosamente se utiliza de forma sórdida da boa fé de outrem, violando os princípios da lealdade e confiança que permeiam os relacionamentos para obter vantagens ilícitas em benefício próprio, deve responder civilmente pelos prejuízos causados.

[Fonte: Jus Brasil, por por Débora Spagnol; Jornal Correiro, por Hilda Cordeiro — Daniela Portugal, advogada criminalista professora da Ufba e da Faculdade Baiana de Direito (FBD); Roberto Figueiredo, advogado cível e professor da Universidade Salvador (Unifacs); Camila Andrade, advogada e coordenadora do curso de Direito da UniFTC de Jequié; Jacqueline Valles, advogada criminalista; Cartilha Estelionato Amoroso da Polícia Civil do Distrito Federal]

A Deus toda glória.

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