segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

OS 50 ANOS DE KURT COBAIN: MORRE O HOMEM, ETERNIZA-SE O ÍCONE

18 de Novembro de 1993. O Nirvana preparava um concerto diferente. Guitarras elétricas no lugar das acústicas, Dave Grohl de rabo de cavalo e gola alta e Kurt Cobain de casaco de malha e calças de ganga rasgadas. Krist Novoselic muito alto, mesmo sentado num banco, e o já quase veterano Pat Smear (guitarrista dos Germs e futuro membro dos Foo Fighters), descalço, tentando integrar-se numa banda em desagregação.

Kurt não queria aquele concerto. De resto, desde o início da digressão americana de "In Utero", um mês antes, não quisera nenhum deles. Apenas a carreira comercial pouco satisfatória do disco (os lucros perdidos em vendas tinham que se ser recuperados) e a pressão dos restantes membros da banda, do management (empresário) e de Courtney Love (a esposa), o haviam forçado a fazê-lo.

Ainda assim, isto era diferente. Um concerto intimista serviria como escape da loucura das atuações em estádio. Um concerto naquele formato permitir-lhe-ia até fugir um pouco do Nirvana, que eram a sua banda, que eram banda que começava a considerar insuportável. Certo que era para a MTV, alvo constante do seu sarcasmo, mas ele era Kurt Cobain e, desta vez, poderia utilizar em seu favor o estatuto de estrela rock. Por isso foram aceites os Meat Puppets como convidados a produção preferia alguém de renome da cena "grunge" e um alinhamento onde não figuravam muitos dos singles, substituídos por versões de músicos que Kurt Cobain admirava: David Bowie, Leadbelly, Vaselines e os próprios Meat Puppets.

O concerto, todos sabemos, pertencia à série "Unplugged" (o nosso Acústico) da MTV e tornou-se parte da iconografia do Nirvana. Para muitos, tornou-se a principal imagem que deles se reteve, a de Kurt Cobain como figura trágica e indecifrável. Alheado e distante no intervalo entre canções, quase figura ausente, era se como apenas nelas vivesse realmente tal imagem, contudo, é inevitavelmente marcada pelo futuro que conheceríamos meses depois.

Ensaio fúnebre?


Durante a preparação do espetáculo, quando lhe perguntaram o que desejava como cenário de palco, Kurt pediu velas e lírios brancos. "Como num funeral?", brincaram. "Exatamente!". Fora do seu círculo mais próximo, tal resposta não era mais que demonstração do humor negro que o público reconhecia das entrevistas e aparições públicas. Visto de fora, tudo continuava como sempre no mundo do Nirvana.

Dois meses depois, Cobain e Love trocam a vida nômade de hotel em hotel por uma casa, a primeira que compram enquanto casal. Localizada no bairro de Denny-Blaine, em Seattle, é uma imensa mansão de início de século XX, com 15 quartos e o lago Washington nas proximidades. A ausência quase total de mobília num espaço tão vasto empresta-lhe uma aura fantasmagórica. 

O desconforto é acentuado pela decisão de decorar a sala com uma réplica de cera, em tamanho real, de Lizzie Borden, mulher que figura na cultura popular americana desde a segunda metade do século XIX, quando a acusação de assassinato de pai e madrasta a golpes de machado a torna um dos casos mais midiáticos da sua época. Mais uma vez, Kurt Cobain manifesta o seu interesse por figuras mórbidas do imaginário americano. Mal acabada a mudança, esgota-se o tempo para mais decorações. Espera-o aquilo que, na altura, Kurt encarava como um suplício.

A dependência química e a depressão 


A componente europeia da digressão de "In Utero". O consumo de heroína, pautado por uma série de mal sucedidas tentativas de desintoxicação, é um problema latente. Ainda assim, aparece com bom ar a David Fricke, histórico jornalista da Rolling Stone. Numa entrevista em Janeiro de 1994, conta-lhe que o seu estômago serenou. 

Já não sente as dores crônicas que o acompanharam nos cinco anos anteriores, essas que responsabiliza pela sua toxi-dependência só a heroína, dissera, minimiza aquele sofrimento insuportável. Candidamente, conta à Rolling Stone que no dia anterior à entrevista, e pela primeira vez em muito tempo, desfrutou de uma pizza sem efeitos secundários.

Mas não era verdade. Enquanto Kurt falha sucessivamente às hipóteses de desintoxicação e se fecha cada vez mais num casulo de depressão, aqueles que lhe são mais próximos tentam blindá-lo à especulação midiática. Kurt e Courtney não podem ter uma vida normal.

O último concerto do Nirvana acontece em Munique, dia 1 de Março. No final de um atuação desastrosa, as datas seguintes são adiadas para Abril. A Kurt, que perde a voz durante o concerto, são diagnosticadas laringite e bronquite agudas. Nessa mesma noite, telefona ao primo Art Cobain, de 52 anos. Não se falam há muito. Kurt diz-lhe que irá abandonar o Nirvana e a indústria musical. Art convida-o para uma reunião marcada para o verão seguinte.

Primeira tentativa de suicídio


Dois dias mais tarde, encontramo-lo num hotel de luxo em Roma, o Excelsior. Courtney e Frances Bean chegam no dia seguinte. Nessa mesma noite, um funcionário do hotel é destacado para adquirir Rohypnol na farmácia mais próxima comumente usada para tratar insônias, o fármaco serve como substituto da metadona durante ressacas de heroína. Juntamente com o Rohypnol, Kurt encomenda duas garrafas de champanhe. Considerando que praticamente não bebia álcool, parecia querer assinalar um momento especial.

Na manhã seguinte, Courtney encontra o marido no chão, inconsciente. No seu estômago, acumulam-se cerca de cinquenta comprimidos. Por perto, um bilhete: 
"Como Hamlet, escolho entre a vida e a morte. Estou a escolher a morte". 
Falhou. Transportado em coma para o hospital, acorda vinte e cinco horas depois. Nesse intervalo, o canal televisivo CNN transmite o seu obituário e Krist Novoselic é informado pela editora da morte do companheiro de banda.

Desfeito o equívoco, a tentativa de suicídio passa a ser, na versão oficial, um trágico acidente. Num extenso artigo da Rolling Stone de Junho de 1994, onde se reconstituem os últimos meses da vida de Kurt Cobain, Lee Ranaldo, guitarrista do Sonic Youth e amigo próximo, recorda o incidente como "o último episódio na criação de uma fachada de normalidade por parte daqueles que o rodeavam". A partir daquele momento, Cobain está em queda livre.

O clube dos 27


De volta a Seattle, o caos adensa-se. Courtney impede-o de injetar heroína em casa e Kurt muda-se para um motel barato onde a heroína é vendida ao balcão. Dia 18 de Março, a polícia é chamada à mansão de Denny-Blaine.

Cobain trancara-se num quarto com um revólver e ameaça suicidar-se. Depois de lhe serem confiscadas três armas, 25 caixas de munições e uma de comprimidos, abandona a casa. Uma semana depois, o mesmo cenário é palco de uma derradeira tentativa de recuperação.

Krist Novoselic, Pat Smear, Courtney Love e Dylan Carlson, o melhor amigo de Kurt, lhes dão um ultimato. Caso se recuse submeter-se a uma desintoxicação definitiva, Courtney Love irá abandoná-lo e Kris acabaria com o Nirvana. Nessa noite, Cobain cede. Na manhã seguinte, recusa entrar no avião com direção a Los Angeles. Cinco dias mais tarde, reconsidera. Está pronto para partir.

Antes disso, pede a Carlson que o acompanhe na compra de uma arma. Justifica a decisão com o receio de que estranhos lhe invadam a propriedade. Recusa deixar o revólver ao cuidado do amigo. Guarda-o em casa. Então sim, parte para o Exodus, em Los Angeles, clínica famosa pela sua midiática clientela (Amy Winehouse - ✯1983/♰2013, outro ícone morto, também passou por lá).

Kurt Cobain passa dois dias no Exodus. Ao fim da tarde do segundo, salta o muro. Uma excentricidade. Dado que o estabelecimento não funciona em regime fechado, Kurt poderia ter atravessado calmamente o portão principal.

Nessa mesma noite, está de volta a Seattle. Numa bizarra coincidência, encontra como companheiro de voo Duff McKagan, que tenta também superar a dependência de heroína. Segundo o baixista dos Guns N'Roses, a viagem é um típico encontro entre toxicodependentes: dar um chute e dizer que é o último.

Incontatável e sem qualquer vontade de informar do seu paradeiro, Kurt passa os dias vagando por Seattle. Para o management dos Nirvana, enlouqueceu. A editora considera estar perante um grave momento de crise. Os amigos, por sua vez, desesperam.

Mark Lanegan, vocalista dos Screaming Trees, pressente que algo de terrível se aproxima e procura-o sem sucesso. Enquanto isso, Kurt Cobain divide-se entre um quarto de motel decadente, onde se registra sob o nome Bill Bailey (o nome verdadeiro de Axl Rose, líder do Guns), e casas de amigos tóxico-dependentes. Estes, ao constatarem as doses perigosas de heroína que injetava na veia, expulsam-no com receio que sofra uma overdose no meio deles.

A 4 de Abril, segundo refere uma investigação de 2006 do diário britânico The Guardian, Kurt quebra a rotina com uma ida ao cinema "O Piano" (considerado um dos expoentes do cinema da década de 1990) foi o filme escolhido. Na tarde do dia seguinte, em casa, abriga-se num quarto secreto, localizado sobre a garagem. Prepara mais um pico de heroína, pega numa caneta e, à tinta vermelha, escreve uma carta dirigida a Boddah, o seu amigo imaginário na infância.

O fundo do poço como o fim da linha


Na missiva, queixa-se de há muito não sentir entusiasmo "em ouvir e criar música, bem como em ler e escrever". "Sinto-me culpado para além do que as palavras possam exprimir". Fala de Courtney como "uma deusa" que "respira ambição e empatia" e de Frances Bean como a filha que o lembra demasiado aquilo que fora: "Sempre cheia de amor e felicidade, beijando todas as pessoas que conhece porque todos são bons e não irão magoá-la". Despede-se: "Já não sinto paixão (...). É melhor apagar de uma vez que desaparecer aos poucos". Atira a carteira aberta ao chão e, sentado numa cadeira encostada à janela, dá mais um pico. Pega na arma essa que escondeu antes de partir para dois dias no Exodus e puxa o gatilho.

Três dias passaram até ser encontrado por um eletricista, contratado para instalar luzes de alarme. A polícia nunca chegou a entrar na casa, limitando-se a questionar os vizinhos. Tom Grant, o detetive privado contratado por Courtney Love, aterrissa em Seattle a 6 de Abril, um dia após o suicídio. Desconhecendo o quarto secreto sobre a garagem, as suas buscas são infrutíferas.

No momento em que se juntou a Jimi Hendrix (✯1942/♰1970), Janis Joplin (✯1943/♰1979) e Jim Morrison (✯1943/♰1971) nesse trágico panteão das estrelas rock desaparecidas aos 27 anos, tinha a televisão ligada na MTV, em silêncio. Na aparelhagem, o CD de "Automatic For The People", álbum do R.E.M. editado em 1992.

Meses antes, confessara que Michael Stipe (vocalista e líder do R.E.M.) era o único músico com quem desejava trabalhar. Este chegou a enviar-lhe um bilhete de avião para que se reunissem num projeto. Kurt nunca apanhou o voo. É que poderia ser uma forma de desaparecer lentamente. E Kurt Cobain tinha pressa.

Conclusão


A trajetória de um ícone


  • 20/02/1967 

Kurt Donald Cobain nasce em Aberdeen, Washington, ­filho de um mecânico e de uma empregada doméstica. É um rapaz pequeno e franzino, mas desenvolve uma atitude insolente e revoltosa que o coloca várias vezes em confusões e polêmicas. Eis que, aos 14 anos, o tio lhe oferece uma guitarra. A partir daí, canaliza grande parte da sua frustração e raiva interior para a música. 
"Uso pedaços das personalidades de outros para formar a minha." 

  • 15/06/1989 

Chega às lojas "Bleach", o álbum de estreia do Nirvana, banda de rock alternativo então composta por Cobain (voz e guitarra), Krist Novoselic (baixo) e Chad Channing (bateria). É elogiado pela crítica, mas Cobain admite-se mais tarde incomodado com a escassa substância das letras, bem como com o tom excessivamente duro e negativo dos temas. 
"Prefiro ser detestado por quem sou do que amado por quem não sou."

  • 24/09/1991 

Já com Dave Grohl – o homem que viria a ser responsável pela banda Foo Fighters – na bateria, o Nirvana lança "Nevermind" (escrevi sobre esse álbum aqui), um segundo álbum de estúdio. E que álbum! Com sucessos como 'Smells Like Teen Spirit' e 'Come as You Are', vende mais de 30 milhões de cópias em todo o mundo, populariza o grunge como estilo musical e faz de Kurt Cobain um símbolo de uma geração descontente. Precisamente a mesma que o cantor não se cansa de criticar. 
"Não leio muito, mas quando leio, leio bem."

  • 24/04/1992 

No auge da popularidade Kurt Cobain casa com Courtney Love, vocalista da banda de rock alternativo Hole. O casamento decorre numa praia havaiana com Cobain vestido de pijama. A relação é controversa, turbulenta e marcada pelo consumo de drogas. Em agosto do mesmo ano nasce a única filha do casal: Frances Bean Cobain. 
"[A minha relação com Courtney Love] é como água mineral e ácido sulfúrico. E quando misturas os dois? Tens amor." 

  • 21/09/1993 

"In Utero", o terceiro – e último – álbum de estúdio do Nirvana, surpreende os fãs da banda por ter um som bastante distinto do seu antecessor, que muitos entendem como mais polido e comercial. Cobain concorda que é um álbum largamente "impessoal", mas não deixa de vender perto de 15 milhões de cópias. 
"O melhor dia que alguma vez tive foi quando o amanhã nunca chegou."

  • 05/04/1994 

Depois de uma intervenção relacionada com o consumo de álcool e drogas, Kurt Cobain concorda ingressar num programa de desintoxicação. Acaba, no entanto, por escapar da clínica, apanha um avião de volta para Seattle e, chegando em casa, suicida-se com um tiro de espingarda na cabeça. Deixa uma carta endereçada a Boddah, o seu amigo imaginário de infância. Junta-se desta forma a nomes como Jim Morrison, Janis Joplin e Jimi Hendrix no grupo de grandes artistas mortos com apenas 27 anos.

Enfim, por mais que eu queira, infelizmente, não dá pra dizer: "descanse em paz, Curt!"

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