quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A FACE DE DEUS NA CULTURA BRASILEIRA


A inserção evangélica no debate cultural da sociedade brasileira é um desafio extraordinário. Implica a busca sem tréguas de uma tematização relevante, uma linguagem entendível para os leigos em teologia cristã e uma abordagem eclética, não preconceituosa, e inclusiva. E, também, de uma abertura para chamar de irmão pessoas que a maioria dos evangélicos não receberia na mesa da eucaristia e disposição de aprender e ser enriquecido com a experiência daqueles que chamamos incrédulos ou perdidos.


Duas bases teológicas da tradição reformada deveriam ser oferecidas como fundamento para este diálogo com a cultura e seus artesãos; a graça comum, que incluiu sob a bondade, o governo e a instrumentalidade de Deus aqueles que ainda não o conhecem ou com ele se relacionam em termos eventuais e genéricos, à parte do conhecimento e compromisso com o todo da revelação bíblica; e a imago Dei, que faz todo ser humano, indistintamente, portador dos sinais do Espírito-espírito e capaz de expressar o ético e o estético divinos, além de conviver com a nostalgia do paraíso perdido.

Esta nostalgia é a primeira pregação do Evangelho que todo mortal ouve sua consciência, que por sua vez e também expressão sagrada do Deus que a todos busca em amor. Três gênios da música popular brasileira - Milton Nascimento, Chico Buarque e Lulu Santos - ofereceram-nos colheradas de sabedoria e súplicas do coração humano que arde de saudade de Deus. Analise comigo estre trecho da canção "Caçador de Mim", de Milton Nascimento.

"Por tanto amor; por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz, manso ou feroz
Eu caçador de mim 
(...) Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito à força numa procura
Fugir das armadilhas da mata escura 
Longe se vai sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir o que me faz sentir
Eu caçador de mim"

Caso pudesse conversar com o Milton, perguntaria onde foi que ele se perdeu para que necessite procurar por si mesmo. Ou o que entende por "mata escura", e que armadilhas existem nessa busca do ser humano por si mesmo. Imagino que poderíamos enveredar numa conversa a respeito do arquétipo judaico-cristão de Adão e Eva. Seria o afastamento de Deus a razão porque todo ser humano busca se encontrar? Será que o encontro da pessoa humana consigo mesma não deveria ser precedido pelo encontro com o divino? Será que a mata escura é o oposto do Jardim? Então não existe gente boa e gente ruim - todo mundo é ao mesmo tempo manso ou feroz, doce ou atroz? O encontro com o divino reconcilia essas contrariedades interiores que fazem de nós caça e caçador? Não seria o divino em nós o grande caçador? Ou o divino é a caça?

Nesse trecho de "Minha História", Chico canta a respeito de um menino Jesus:

"Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me em um manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré 
Minha mãe não tardou alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor 
Minha história e esse nome que ainda carrego comigo
Quando vou de bar em bar; viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus"

Estaria Chico sugerindo que o cabaré é a estrebaria contemporânea? Caso Deus estivesse encarnado hoje e tomando sobre todas as mazelas da raça humana, será que escolheria se identificar com ladrões e amantes de corpos e copos? Será que essa vida de amores errantes, de ilusões e esperas, de fugas através de bebedeiras e de calçada de bar é uma versão de cruz, e que aqueles cujas vidas têm apenas estes horizontes não são protagonistas de mau-caratismo, mas vítimas de niilismo (Doutrina filosófica que indica um pessimismo e ceticismo extremos perante qualquer situação ou realidade possível. Consiste na negação de todos os princípios religiosos, políticos e sociais.) existencial?

Já Lulu Santos especula sobre o mal e sua solução em "A Cura", um de seus grandes hits:

"Existirá, em todo porto tremulará (se hasteará)
A velha bandeira da vida
Acenderá todo farol iluminará
Uma ponta de esperança 
E se virá, será quando menos se esperar
Da onde ninguém imagina
Demolirá, toda certeza vã, não sobrará
Pedra sobre pedra 
Enquanto isso não nos custa insistir
Na questão do desejo, não deixar se extinguir
Desafiando de vez a nação,
Na qual se crê que o inferno é aqui 
Existirá,
E toda raça então experimentará
Para todo mal, a cura"

Que mal é esse que faz raça esperar a cura? Gostaria de saber de Lulu de onde vem a cura, quem é o portador da bandeira da vida. Aliás, por que velha bandeira da vida e quem vai hasteá-la? Quando foi que ela deixou de tremular (de ser hasteada)? Quem a tirou do seu lugar? Imagino uma boa conversa a respeito do desejo no qual se deve insistir, e certamente concordaríamos a respeito do fato de que o inferno não é aqui.

Agora me bate o desespero ao lembrar que Mário Prata decidiu responder algumas questões de um exame vestibular que tratava da interpretação dos seus textos para ver como se sairia. Teria sido reprovado... Fico a pensar se os gênios - gênios sim, ainda que você possa não gostar da obra deles - aqui citados não se ririam de minhas elucubrações ao redor de suas canções e palavras. Minha única saída seria argumentar que todo texto, por definição, é polissêmico (Palavra ou expressão que possui mais de um significado.), e que o ato de escrever implica repartir convicções, incluindo o leitor nas conclusões, especialmente quando a palavra é poesia, coisa do coração. Uma coisa é certa, já me dou por satisfeito por tentar abrir a conversa, aproximar-me das pessoas como humano cujo coração também clama por sentido e significado, em vez de me apresentar como detentor da verdade e guardião das relações com Deus.

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