Por certo algumas coisas na vida demoram, como esperar mais de 25 anos para ver esta popular história de amor musical se transformar em um filme. Mas, será que valeu mesmo a pena essa espera? Para mim, sim. Inclusive, não saí correndo para uma sala de cinema para assistir ao tão esperado longa "Eduardo e Mônica", filme baseado em música homônima, de autoria do Renato Russo (✩1960/✞1996) e que foi faixa do ábum "Dois", lançado em 1986. Fiquei na minha e só vim assisti-lo na manhã do último domingo, 26, numa plataforma de vídeos, gratuitamente e deitadinho na minha cama.
A música por si só, sem dúvida alguma, foi não só um dos grandes sucessos da banda, quanto um dos maiores hits nacioanis da década de 1980 e ainda hoje é uma das mais aclamadas na discografia da Legião. E, numa era de franquias cinematográficas, "Eduardo e Mônica" consolida o UCLU (Universo Cinematográfico da Legião Urbana) ao adaptar a singela e emblemática canção.
O filme é o terceiro de uma leva que começou com "Somos Tão Jovens" (de Antônio Carlos da Fontoura), que foi uma cinebiografia do compositor (focada em sua juventude em Brasília até a formação da banda); e seguiu com "Faroeste Caboclo" — ambos de 2013 —, que adaptou a canção homônima. Eu não gostei de nenhum dos dois, principalmente "Faroeste Caboclo", que na minha opinião, foi uma sucessão de equívocos, desde a escolha dos atores protagonistas (Fabrício Boliveira e Isis Valverde) até o fraquíssimo roteiro.
Há até um esforço consciente de direcionar essas ações como dentro de um mesmo universo, numa discreta cena no novo filme. Mas, a, digamos, "redenção" do diretor René Santana, que também assinou "Faroeste Caboclo", veio mesmo com "Eduardo e Mônica". É o que veremos no texto deste artigo, mais um capítulo da série especial Contém Spoilers.
Vamos às indispensáveis comparações
Como longametragem, "Eduardo e Mônica" funciona muito bem, trazendo uma típica história de amor e com a acertada decisão de não fazer uma típica comédia romântica brasileira, mas com uma abordagem mais realista, dramática, ainda que focada na força do grande amor.
Mais ainda do que "Faroeste Caboclo", mira numa bela fotografia a exibir Brasília, especialmente nas cenas noturnas.
É interessante que apesar da história ser focada no casal-título, a cidade aparece se não como um personagem, mas um cenário forte, quase sempre vazia, sem pessoas, como a contrapor a frieza urbana de bela arquitetura à vida romântica e artística de Mônica, com suas boates inferninhos e galerias de arte.
Outra vantagem de "Eduardo e Mônica" contra "Faroeste Caboclo" é no material de origem. Esta era uma canção estilo poema épico, com uma saga desafortunada de um retirante que abraça uma carreira criminal, recheada de situações pouco críveis e uma narrativa confusa.
Assim, "Faroeste Caboclo", o filme, precisou investir num trabalho maior de roteiro para resolver as lacunas e incongruências da narrativa da letra. Assim, foi uma "adaptação", optando por uma versão mais realista e sem o caráter "pão e circo" que marcava seu fim. Com isso, versos famosos foram cortados da história ou simplesmente modificados para fazer a trama cinematográfica funcionar.
Os personagens
O filme acerta bastante na construção dos personagens, mostrando as origens e ambiências de um e de outro e como a casual rota de colisão dos dois, por improvável que se mostre à princípio, vai se construindo.
Uma Mônica Queiroz perdida, vivendo entre dois mundos conflitantes — a vida artística e de vanguarda cultivada pelo pai e a preocupação mais fria, formal e pragmática de uma carreira na Medicina mantida pela mãe —, tentando uma vida quase dupla entre fazer happenings em galerias e boates e iniciar a sua residência médica; enquanto um Eduardo Souza vem de um lar simplório e dramático, com o pai que foi embora, a mãe falecida e a criação pelo avô militar e, prestes a fazer o vestibular para Engenharia Civil, está simplesmente levando as coisas, acomodado em sua vidinha de subúrbio (e vila militar) e uma expectativa mais pragmática do futuro, sem grandes ambições.
Assim, já sabíamos — pela canção — que Mônica é artística
("...tinha tinta no cabelo...")
e descolada
("...de moto..."),
enquanto Eduardo era convencional
("...festa estranha com gente esquisita..."),
não era um bebedor contumaz
("...'eu não tô legal, não aguento mais birita'..."),
nem boêmio
("...é quase duas e eu vou me ferrar...")
e ainda guardava uma atitude bem juvenil/adolescente andando de bicicleta ("camelo") por aí (eram os anos 1980, ok? — a juventude de classe média só usava bikes para lazer) e quando
"...decidiram se encontrar, o Eduardo sugeriu uma lanchonete, mas a Mônica queria ver o filme do Godard...".
Todos essas especificidades foram muito bem pontuadas na narrativa do filme e feito com um cuidado que dava uma verossimilhança que nos remetia ao trecho da música no qual eles estavam. Magnifíco, sem ser piegas!
O elenco
Vale à pena chamar a atenção ao trabalho do elenco — o que, como já disse, também foi um erro absurdo em "Faroeste Caboclo".
Como esperado, a maravilhosa e excelente Alice Braga, que carrega em seu sobrenome o enorme peso de sua tia Sônia, não ficando apenas na sombra do sucesso da tia famosa, mas, já tendo consolidada, assim como a tia, também uma brilhante carreira internacional, entrega uma Mônica carismática e fascinante, com uma personalidade forte e temperamento inconstante que enchem a personagem de profundidade e atitude, ainda que tenha suas fragilidades.
Nota mil para Alice, que quando faz algo específicamente para o público brasileiro, o faz com a mesma competência e brilhantismo do que é feito no exterior.
Destaque também para o jovem, porém promissor, ator Gabriel Leone. Leone assume um Eduardo mais intrépido, tímido e leal, que conquista por sua bondade, mas também é ajudado pela caracterização, com espinhas e aparelhos que o deixam mesmo com a aparência de um adolescente (Eduardo, tem 16 anos, Gabriel, à época das filmagens, 26), ainda que isso seria inútil sem sua postura corporal que torna tudo crível.
Gabriel Leone deu um show de interpretação que em absolutamente nada nos remete aos personagens que ele já interpretou em trabalhos televisivos, o que mostra que o jovem ator sabe muito bem lidar com as especifidades dos dois segmentos da dramaturgia.
A química do casal em cena é muito boa e passa veridicidade às cenas de romance — sem haver apelação, graças a Deus, no uso e abuso das incômodas cenas de sexo e nudez, algo, como todos sabem, muito comum (e na maioria das vezes, desnecessárias) nas produções nacionais.
O restante do elenco também está muito bom, em especial, Victor Lamoglia como o engraçadíssimo amigo Inácio (que em uma determinada cena [a do ônibus], deixa implícita uma singela homenagem a Cazuza [✩1958/✞1990]) e os veteranos Otávio Augusto como Bira, o avô com o qual Eduardo "jogava futebol de botão" e Juliana Carneiro da Cunha, que interpreta Lara, a mãe de Mônica.
Roteiro e ambientação
O roteiro de Gabriel Bortolini e Jéssica Candal investe em mostrar um Eduardo cheio de potencial, alguém de bom coração, que não finge ser quem não é e que vai se construindo como alguém que pode dar suporte emocional à mais volátil Mônica. Estabilidade. Um pé no chão.
Ele também traz um ar de realidade no sentido de que vive a vida ordinária (sim, o cotidiano sem graça da estranha — e por vezes asséptica — capital do país), sendo mais do povo, mais comum.
Por isso, enquanto ela guarda a arrogância e a postura artística esnobe típica daqueles que se veem como vanguarda (o que se reflete na música punk e no som industrial típicos da época), ele adora (quem não?) a breguíssima "Total Eclipse Of The Heart", sem dúvida o maior hit na carreira da cantora galesa de inconfundível voz rouca, Bonnie Tyler. E mostra para Mônica (e seus amigos, por tabela) que não há mal nenhum nisso, e ao contrário, é um toque de humanidade, simplicidade e empatia.
Neste ponto, o roteiro trabalhou bem, afinal, é fácil entender por que Eduardo fica fascinado pela Mônica, pois
"...ela fazia medicina e falava alemão e ele ainda nas aulinhas de inglês...".
Sem falar que
"...ela gostava do Bandeira, e de Bauhaus, e de Van Gogh, de Mutantes e Caetano e de Rimbaud...",
enquanto o Eduardo
"...gostava de novela e jogava futebol de botão com seu avô...".
Mas fica bem mais difícil compreender como uma moça como Mônica poderia se interessar por Eduardo, quando
"...ela falava coisas sobre o Planalto Central, e também magia e meditação..."
e ele
"...ainda 'tava' no esquema 'escola-cinema-clube-televisão'"...,
mesmo que houvesse algo prazeroso em
"...Mônica explicava pro Eduardo coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar...".
Afinal,
"...ela se formou no mesmo mês que ele passou no vestibular...".
Não são coisas fáceis a vencer para viver um grande amor, não é?
Assim, cabe ao filme construir o meio termo
("...se encontraram então no parque da cidade...")
que vai unir essas personalidades tão diferentes que
("...mesmo com tudo diferente, veio meio de repente uma vontade de se ver, e os dois se encontravam todo dia e saudade crescia como tinha de ser...").
Isso era um desafio à produção, pois a canção diz que
"...Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia, teatro, artesanato, e foram viajar..."
(e, permitam-me repetir)
"...a Mônica explicava pro Eduardo coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar...".Vejam, são coisas bem artísticas e místicas. Dessa forma, a personalidade dela aparece como dominante, fazendo o rapaz se adequar à sua vida e visão de mundo, mas ainda sem responder porque ela se interessou num rapaz de 16 anos pré-vestibulando. Ou seja
E se por um lado, nenhum deles se encaixa no mundo do outro — e as tentativas não se mostram frutíferas no filme (ele indo para o acampamento na Chapada, ela na ceia de natal tradicional) — encontram em si a paz e o sentimento que buscavam.
A investida também serve para demolir estereótipos, exibindo os conflitos internos e familiares que rondam o casal individualmente, cada qual em sua realidade: Mônica e sua relação tensa com a mãe e Eduardo no abismo geracional (e um tanto de visão de mundo) com o avô conservador.
E o roteiro faz isso mostrando o romance como uma coisa real e não um paraíso na terra, afinal,
"...os dois comemoraram juntos e também brigaram juntos muitas vezes depois...",
e não temos uma historinha de mocinho que conhece a mocinha, sem também se render ao gancho hollywoodiano (e algo acontece para separá-los) pura e simples.
Com mais humanidade e realismo, o roteiro mostra que a vida a dois é difícil mesmo no início, no fogo da paixão, e que as diferenças celebradas na letra têm o seu preço, sim, e que se o casal quiser fazer a coisa funcionar tem que trabalhar nisso para poder chegar na parte do
"...e todo mundo diz que ele completa a ela e vice-versa, que nem feijão com arroz...".
Mônica precisa dosar o preço da liberdade (não ter um relacionamento fixo) e Eduardo sair de seu lugar cômodo e encarar algo desconhecido. Ambos precisam ceder. E aprender e crescer.
Como todo mundo. Ainda que em jornadas diferentes para cada um deles, dados os backgrounds específicos e a posição em que estão em suas vidas estudantis e profissionais.
O filme também acerta em manter a trama no contexto do lançamento da canção, ali por volta de 1986 (embora a canção tenha sido composta em 1982, após Renato Russo sair da banda punk Aborto Elétrico e passar um tempo se apresentando apenas com voz e violão — ou uma craviola — sob o nome Trovador Solitário, e antes de fundar a Legião Urbana, em 1983).
A ambientação original impede a armadilha de adicionar elementos outros (como a tecnologia) que poderia embaralhar ainda mais a trama. Assim, coisas como o evento que era uma ligação telefônica [de telefone fixo!] (ainda mais se fosse interurbana ou com fichas em um orelhão) contribuem para criar as situações de erros e acertos de uma história de amor.
O filme "Eduardo e Mônica" termina, nesse sentido, mostrando que em outros tempos o amor era possível mesmo sob contextos políticos conflitantes, com a menina filha do comunista exilado que se apaixona pelo neto de militar; algo que parece tão difícil nos tempos polarizados de hoje. Mas também não deixa de fazer crítica social com algumas arbitrariedades que resultam da perseguição política.
A trilha sonora: outro acerto
A trilha sonora também está muito boa, bem representada pelos anos 1980, ainda que Legião Urbana apareça até menos do que o esperado (só me lembro de ter ouvido ao longo do filme as canções "Geração Coca-Cola" e lá no final, durante a subida dos créditos, a música que dá nome ao filme).
Mas, além da "balada-chiclete", "Total Eclipse Of The Heart", de Bonnie Tyler, destaco outros dois hits oitentistas internacionais: a deliciosa "Private Idaho", do B52's e "Should I Stay Or Should I Go", da banda punk britânica The Clash.
"Eduardo e Mônica" conta uma história de amor embalada, não somente pela música que serviu como base e outras da banda de rock de Renato Russo. A qualidade das músicas vai além, sejam elas nacionais ou internacionais. Não há como negar, a trilha sonora do filme é belíssima.
Conclusão
Enquanto "Eduardo e Mônica" tentam lidar com os opostos de cada um, toda a sensibilidade da trama floresce, por isso que não há como deixar de se emocionar.
Desde a estrutura familiar dos dois lados, ela que acaba de perder o pai ou Eduardo que foi criado pelo avô e tem como lembrança marcante um peixinho dourado. "Eduardo e Mônica" é o tipo de filme para ver e rever.
Para além do filme, a equipe da Legião Urbana Produções e o cineasta René Sampaio já anunciaram os planos de outro longa baseado em uma canção de Renato Russo, o que dará continuidade ao UCLU.
Não foi dito que música, mas o repertório da Legião Urbana está repleto de candidatas, com suas narrativas e personagens, desde óbvias como "Pais e Filhos" (escrevi artigo especial sobre essa música ➫ aqui) ou "O Mundo Anda Tão Complicado" até outras mais obscuras, como "Andréa Dória", "Maurício", "Leila", "Clarisse", "Dado Viciado", "O Descobrimento do Brasil", "Dezesseis" e até "Perfeição" e "Meninos e Meninas", que são a cara do Brasil de hoje.
- Aguardemos, por enquanto, "Eduardo e Mônica" leva meu carimbo de:
[Fonte: HQRock — original, por Irapuam Peixoto (cantor e compositor)]
Ao Deus Perfeito Criador, toda glória.
Fique sempre atualizado! Acompanhe todas as postagens do nosso blog https://conexaogeral2015.blogspot.com.br/. Temos atualização diária dos mais variados assuntos sempre com um comprometimento cristão, porém sem religiosidade.
E nem 1% religioso.
O uso correto da máscara não precisava ser obrigatório, por se tratar de uma proteção individual extensiva ao coletivo. É tudo uma questão não de obrigação, mas de consciência.
Respeite a etiqueta e o distanciamento sociais e evite aglomerações. A pandemia, graças à vacinação, está controlada, mas, infelizmente, ainda não passou, a guerra não acabou.