domingo, 28 de março de 2021

CANÇÕES ETERNAS CANÇÕES — "ANGRA DOS REIS", LEGIÃO URBANA

Todo fã de rock brasileiro já considerou, ao menos um dia, a Legião Urbana como a melhor banda de todos os tempos. Note bem que "rock" é uma coisa, e "rock brasileiro" é outra bem diferente. 

A história da Legião

O "lado B" 


Da esquerda para a direita: Renato Rocha, baixo (☆1961/✞2015); Renato Russo (☆1960/✞1991), vocal;
Marcelo Bonfá, bateria e Dado Villa-Lobos, guitarra
A banda liderada por Renato Russo resume, em suas contradições, tropeços e vitórias, tudo de bom e de ruim que o rock feito por aqui tem a apresentar. A Legião elevou o nível da poesia roqueira nacional. Conseguiu popularizar referências sofisticadas e apresentou ao mundo o talento inegável de Russo, frontman como pouquíssimos. 

Por outro lado, com frequência era capenga musicalmente. Após ser alçado à posição de poeta laureado, Russo conseguiu convencer os fãs de que qualquer bobagem que escrevesse seria instantaneamente genial. Acima de tudo, a influência da Legião  —  de sua seriedade "profunda" e seu engajamento político meio pueril  —  tornou todo o rock brasileiro posterior um pouco mais chato e pretensioso.

Todo fã de rock brasileiro já considerou, um dia, a Legião Urbana como a melhor banda de todos os tempos. Mas isso passa. Eu também atravessei essa fase. Inegavelmente importante nos meus primeiros anos de um  melhor discernimento musical, acompanhei toda a carreira do grupo, da ascensão ao fim melancólico com a morte do vocalista em 1996.

Deixei de ouvir seus discos à medida em que ia descobrindo que havia outros rocks além do brasileiro, e mais: outros tipos de música além do rock. Hoje, com a imparcialidade que só o tempo traz, sinto-me capaz de analisar de forma objetiva quais são as melhores e quais são as piores canções gravadas pela Legião. 

Neste artigo, vou analisar uma das canções mais melancólicas da banda. Que, sob uma melodia e linguagem com um romantismo subjetivo, é, na verdade, uma canção com uma mensagem de crítica e protesto:

"Angra dos Reis"

Composição: Russo, Bonfá, Rocha


'Deixa, se fosse sempre assim
quente, deita aqui perto de mim
Tem dias, que tudo está em paz
E agora os dias são iguais

Se fosse só sentir saudade
Mas tem sempre algo mais
Seja como for
É uma dor que dói no peito
Pode rir agora que estou sozinho
Mas não venha me roubar…

Vamos brincar perto da usina
Deixa pra lá, a angra é dos reis
Por que se explicar se não existe perigo?
Senti teu coração perfeito batendo à toa
E isso dói
Seja como for
É uma dor que dói no peito
Pode rir agora que estou sozinho
Mas não venha me roubar…

Vai ver que não é nada disso
Vai ver que já não sei quem sou
Vai ver que nunca fui o mesmo
A culpa é toda sua e nunca foi
Mesmo se as estrelas começassem a cair
A luz queimasse tudo ao redor
E fosse o fim chegando cedo
E você visse o nosso corpo em chamas
Deixa,a angra dos reis

Quando as estrelas começarem a cair
me diz, me diz pra onde é que a gente vai fugir?'

A história da letra


Depois do super sucesso do álbum "Dois", da Legião Urbana, lançado em 1986, era hora da banda lançar um novo álbum em 1987. Pressão do sucesso, expectativa e mais alguns fatores fizeram com que a banda decidisse por aproveitar canções antigas, a grande maioria de autoria somente do Renato Russo e compostas na época do Aborto Elétrico e do Trovador Solitário, como 'Que País é Este', 'Conexão Amazônia', 'Eduardo e Mônica', e outras. 

Mas no final entraram duas compostas para este álbum, 'Angra do Reis', de Russo, Bonfá e Renato Rocha, e 'Mais do Mesmo', de Russo, Bonfá, Rocha e Dado. E é o próprio Dado Villa-Lobos, no livro "Memórias de Um Legionário" (Ed. Mauad), escrito em parceria com Felipe Demier e Rômulo Mattos, que conta uma história bem interessante envolvendo a 'Angra dos Reis'.

Parte (a maioria, pode-se dizer) das músicas da Legião primeiro é gravada a música para depois Renato por a letra. No caso de 'Angra' não foi diferente. Gravados todos os instrumentos, o produtor-mor da Legião, Mayrton Bahia perguntou para Renato Russo da letra daquela música. 

Renato disse que não faria letra. Começou uma discussão no estúdio que se encerrou com Mayrton ameaçando não terminar o disco se aquela música não tivesse letra e Renato saindo furioso, batendo porta. Conseguem imaginar o clima?

No outro dia chega Renato Russo com um pedaço de papel cheio de frases. Ele dá para Mayrton e diz: 
"Aqui está a letra". 
Assim nasceu 'Angra dos Reis'. E a informação que consta é que Mayrton ainda guarda até hoje esse papel, que traz não só uma história como uma das letras mais lindas do nosso Rock 80 Brasil.

Análise da letra


A canção 'Angra dos Reis' apresenta um ar bastante irônico para falar do uso da energia nuclear, mas tem como pano de fundo uma melodia romântica. Já 'Mais do Mesmo' fala de drogas, dá uma cutucada no regime militar e nas grandes gravadoras, representantes da indústria cultural, e as consequências de sua influência sobre a produção do artista em seu processo criativo. 

A música inicia-se num mood romântico, em dó maior, e aborda um tema bastante político e ecológico em sua letra, que mescla uma relação amorosa de fundo, ou um romance, com o problema ecológico da energia nuclear em segundo plano. 

Isso mostra o traço característico de Russo, de romantizar, nas melodias, letras políticas e ácidas. Por mais que esta pesquisa seja literária, faz-se necessário recorrer, quando para melhor entendimento da letra, à melodia e ao ritmo, que reforçam a semântica:
 
'DEIXA, se fosse sempre assim quente 
Deita aqui perto de mim 
Tem dias, que tudo está em paz E agora os dias são iguais...' 
 
A letra abre com o verbo "Deixar", com a noção de "não se aborrecer". Os sintagmas "quentes", "sempre" e "perto" trazem uma sensação de segurança no meio do caos nuclear. 

"Deixa" o mundo e "deita aqui perto de mim." No mesmo contexto de deixar, o eu poético pede "Deita". Há um diálogo, e apenas uma voz se pronuncia. O sentido imperativo dos verbos demonstra isso. Os verbos no modo imperativo têm por ontologia o outro. 

As marcas "vamos", "Pode rir agora", "vai ver" denotam a existência de outra presença. Destarte, o primeiro verso da letra nos leva, inicialmente, a um sentimento abstrato até a palavra 29 "assim", ainda mais com o espaço melódico que temos antes da palavra "quente".

Contudo, quando ela surge, o leitor é atingido pela surpresa da ideia de calor. Vemos ironia de que "tudo está em paz", como se os dias não importam mais. Há um jogo de ideias, no sentido de conformidade, afinal, os dias em paz são iguais uns aos outros, há continuidade e não há mudança. 

Resumindo: os dias estão quentes, em paz e iguais. A expressão "tem dias" sugere a incerteza. Esse sentido é explorado em toda a letra: a incerteza, insegurança, aqui se confundindo com as incertezas das questões do uso da energia nuclear. 

Russo traz essa discussão análoga das inseguranças e incertezas a um relacionamento amoroso. Questões amorosas e políticas misturadas são marcas de Russo.
 
'...Se fosse só sentir saudade 
Mas tem sempre algo mais 
Seja como for 
É uma dor que dói no peito 
Pode rir agora que estou sozinho
Mas não venha me roubar...' 

Essa estrofe reflete o sentimento chave da letra. As combinações "só sentir/algo mais" estruturam o efeito do sentimento "saudade" que está carregado de outras nuanças. E nos lembra de que o amor não é apenas amar, há toda uma complexidade humana nas relações. Há uma dualidade vibrante de dois seres. 

Como se todo o perigo não fosse suficiente, Russo volta para a relação amorosa. Há algo mais na relação, não é só a falta de amor que separa, mas o sentimento sobrepujado pelos acontecimentos que transcendem a relação a dois. O eu poético traz para si uma dor existencial e a transforma em dor real que "dói no peito".
 
'...Vamos brincar perto da usina 
Deixa pra lá 
A Angra é dos Reis 
Por que se explicar 
Se não existe perigo? 
Senti teu coração perfeito batendo à toa 
E isso dói...'

O inusitado verbo "brincar" perto da usina mostra o sentimento deixa-ser. No verso "A Angra é dos Reis" a inclusão do verbo SER representa o uso poético do óbvio, extraído da poesia do improvável e do limite, criando a ironia, no sentido sarcástico. Assim, constata-se que a ironia é figura de linguagem que se destaca no álbum.

Aqui está um exemplo fino da poesia de Russo. Ele trabalha a proximidade semântica dos verbos "bater" e "doer", criando uma imagem construída do uso polissêmico dos verbos. Dói porque é vã a existência sem um par. Tem-se também uma comparação com o coração batendo à toa e a utilização da energia nuclear, a usina e o coração que pulsam.
 
'...Seja como for 
É uma dor que dói no peito 
Pode rir agora que estou sozinho 
Mas não venha me roubar...' 

Isolado e fragilizado pede para não ser roubado: os bens materiais ou seu coração? Não venham roubar os mil pedaços que sobraram dele. É um diálogo:
  
'...Vai ver que não é nada disso 
Vai ver que já não sei quem sou 
Vai ver que nunca fui o mesmo 
A culpa é toda sua e nunca foi 
Mesmo se as estrelas começassem a cair 
E a luz queimasse tudo ao redor 
E fosse o fim chegando cedo 
E você visse o nosso corpo em chamas! 
Deixa, pra lá...' 

"Senti teu coração perfeito batendo à toa/E isso dói". Um jogo de culpa atinge o eu poético e ele busca se entender e se reconciliar consigo mesmo. Resignação conferindo incerteza é uma característica da letra. A locução verbal "vai ver" traz um sentido de insegurança, uma incerteza do acontecido, os verbos "ser" e "ir" nesses versos estão precedidos de advérbios de negação, com a intenção de colaborar para esta atmosfera incerta.

O uso negativo do verbo faz duvidar de sua real condição existencial e amorosa. Este romance com tintas de remorsos faz com que o eu poético lute contra si e, numa confusa emoção, tente se encontrar. As dúvidas se vão no momento de acusar. O sintagma "culpa" traz à tona o resumo do relacionamento. Esse movimento de incertezas que povoa o eu poético cria uma atmosfera que reflete as incertezas do uso de energia nuclear e a insegurança narcísica do amor.

Conclusão


O contraponto melodioso e reflexivo incluído no disco mais punk da Legião. Talvez seja o mais perto que a banda chegou de fazer uma balada soul, se não na forma, ao menos na intenção. 

Em meio à discurseira ideológica explícita de "Que País É Este", mostrava que o grupo também conseguia falar de temas sérios (a preocupação em torno da usina de Angra) de forma mais sutil, paradoxalmente protestando da forma mais romântica, por mais inusitado e até mesmo improvável que isso possa ser. A Legião conseguiu!

[Fonte: Bula, por Marco Antônio Barbosa; Rock 80 Brasil por Fabricio Mazocco é jornalista, doutor em Ciência Política, professor universitário, fã de rock e criador do blog Rock 80 Brasil]

A Deus toda glória.
Fique sempre atualizado! Acompanhe todas as postagens do nosso blog https://conexaogeral2015.blogspot.com.br/. Temos atualização diária dos mais variados assuntos sempre com um comprometimento cristão, porém sem religiosidade. 
E nem 1% religioso. 
O uso correto da máscara não precisava ser obrigatório, por se tratar de uma proteção individual extensiva ao coletivo. É tudo uma questão não de obrigação, mas de consciência.
Respeite a etiqueta e o distanciamento sociais e evite aglomerações. A pandemia não passou, a guerra não acabou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário