sábado, 13 de junho de 2020

ACONTECIMENTOS — A PANDEMIA DE GRIPE ESPANHOLA: POR QUE NÃO APRENDEMOS?

Imagine a avenida Rio Branco ou a avenida Paulista sem congestionamentos ou pessoas caminhando pelas calçadas. Pense nos jogos de futebol. Mas, ao invés de estádios cheios, imagine os jogadores exibindo suas habilidades em campo para arquibancadas vazias. Comércio vazio. Pessoas confinadas e isoladas dentro de suas casas. Os poucos que podiam sair, estampavam em seus rostos além do pânico generalizado, as incômodas, porém necessárias máscaras de proteção. 

2020? Nada disso. Esse cenário antes inimaginável para nós e agora tão comum não tem nada de inédito. Pois é, durante a pandemia de 1918, as cidades ficaram exatamente assim: bancos, repartições públicas, teatros, bares e tantos outros estabelecimentos fecharam as portas ou por falta de funcionários ou por falta de clientes.

Revisitando a história

Nada de coincidência


Em carta descoberta e publicada no British Medical Journal quase 60 anos depois da pandemia de 1918-1919, um médico norte-americano diz que a doença começa como o tipo comum de gripe, mas os doentes 
"desenvolvem rapidamente o tipo mais viscoso de pneumonia jamais visto. Duas horas após darem entrada [no hospital], têm manchas castanho-avermelhadas nas maçãs do rosto e algumas horas mais tarde pode-se começar a ver a cianose estendendo-se por toda a face a partir das orelhas, até que se torna difícil distinguir o homem negro do branco. 
A morte chega em poucas horas e acontece simplesmente como uma falta de ar, até que morrem sufocados. É horrível. Pode-se ficar olhando um, dois ou 20 homens morrerem, mas ver esses pobres-diabos sendo abatidos como moscas deixa qualquer um exasperado".

Inimigo invisível


Ao contrário do advento tecnológico e científico que ilustra o cenário da pandemia atual, o cenário da pandemia da gripe espanhola era bem mais devastador. A Primeira Guerra Mundial, que durou de 1914 a 1918, foi considerada por muitos de seus contemporâneos como a mais terrível das guerras. Por este motivo, tornou-se conhecida durante muito tempo como "A Grande Guerra". 

Na segunda metade do século XIX, a junção entre capitalismo financeiro e capitalismo industrial proporcionou a integração econômica mundial, favorecendo assim, principalmente, as nações que haviam começado seu processo de industrialização. Essas mesmas nações expandiram significativamente seu território em direção a outros continentes, sobretudo ao Asiático, ao Africano e à Oceania. 

A Inglaterra, por exemplo, integrou grandes países ao seu Império, como a Índia e a Austrália. Todo esse processo é conceitualmente tratado pelos historiadores como Imperialismo e Neocolonialismo. Nesse cenário se desencadearam os principais problemas que culminaram no conflito mundial.

A "Grande Guerra" chegou ao fim em 1918, com vitória dos aliados da França e grande derrota da Alemanha. O ponto mais importante a se destacar quanto ao fim da guerra são as determinações do Tratado de Versalhes. Nessas determinações, os países vencedores não aceitaram a orientação da Liga das Nações de não submeter a Alemanha derrotada à indenização pelos danos da guerra. 

Sendo assim, a Alemanha foi obrigada a ceder territórios e a reorganizar sua economia tendo em conta o futuro ressarcimento aos países vencedores da Primeira Guerra, sobretudo a França. O saldo de mortos durante os cinco anos da Primeira Guerra foi de um total de 8 milhões, dentre estes, 1.800.000 apenas de alemães. Esse tipo de mortandade acelerada e terrivelmente impactante tornou a se repetir a partir de 1939, com a Segunda Guerra Mundial.

Em meio a esse contexto já devastador por si só, abrigados em trincheiras, os soldados enfrentavam, além de um inimigo sem rosto, que não podia ser abatido com o potencial bélico, chuvas, lama, piolhos e ratos. Eram vitimados por doenças como a tifo e a febre quintana, quando não caíam mortos por tiros e gases venenosos. 

Parece bem ruim, não é mesmo? Era. Mas a situação naquela Europa transformada em campo de batalha da Primeira Grande Guerra Mundial pioraria ainda mais em 1918. Tropas inteiras griparam-se, mas as dores de cabeça, a febre e a falta de ar eram muito graves e, em poucos dias, o doente morria incapaz de respirar e com o pulmões cheios de líquido.

Como e onde surgiu


A gripe espanhola — como ficou conhecida devido ao grande número de mortos na Espanha (há quem pense equivocadamente que o início da epidemia se deu no país europeu)  apareceu em duas ondas diferentes durante 1918. Na primeira, em fevereiro, embora bastante contagiosa, era uma doença branda não causando mais que três dias de febre e mal-estar. Já na segunda, em agosto, tornou-se mortal.

Desconhece-se sua origem geográfica, mas sabe-se que o primeiro caso observado verificou-se nos Estados Unidos em março de 1918, no Texas, e uma semana depois, em Nova Iorque. Chegou ao continente europeu em abril, atingindo os exércitos aliados franceses, britânicos e norte-americanos. 

Em maio foi a vez da Grécia, Espanha e Portugal, em junho, da Dinamarca e da Noruega, e em agosto da Holanda e da Suécia. Nesse último mês, encerrou-se a primeira onda da gripe, que, embora extremamente contagiosa, foi considerada mais benigna do que as seguintes por ter causado relativamente poucas mortes. 

Enquanto a primeira onda de gripe atingiu especialmente os Estados Unidos e a Europa, a segunda devastou o mundo inteiro: também caíram doentes as populações da Índia, Sudeste Asiático, Japão, China e Américas Central e do Sul.

Ainda hoje restam dúvidas sobre onde surgiu e o que fez da gripe de 1918 uma doença tão terrível. Estudos realizados entre as décadas de 1970 e 1990 sugerem que uma nova cepa de vírus influenza surgiu em 1916 e que, por meio de mutações graduais e sucessivas, assumiu sua forma mortal em 1918.

Essa hipótese é corroborada por outro mistério da ciência: um surto de encefalite letárgica, espécie de doença do sono que foi inicialmente associada à gripe, surgido em 1916.

As estimativas do número de mortos em todo o mundo durante a pandemia de gripe em 1918-1919 variam entre 20 e 40 milhões. Para você ter uma ideia nem os combates da primeira Grande Guerra Mundial mataram tanto. Cerca de 9 milhões e 200 mil pessoas morreram nos campos de batalha da Primeira Grande Guerra. 

O mal chega ao Brasil


No Brasil, a epidemia chegou em setembro de 1918: o navio inglês "Demerara", vindo de Lisboa, desembarca doentes em Recife, Salvador e Rio de Janeiro (então capital federal). No mesmo mês, marinheiros que prestaram serviço militar em Dakar, na costa atlântica da África, desembarcaram doentes no porto de Recife. Em pouco mais de duas semanas, surgiram casos de gripe em outras cidades do Nordeste e em São Paulo.

Qualquer semelhança...


As autoridades brasileiras ouviram com descaso as notícias vindas de Portugal sobre os sofrimentos provocados pela pandemia de gripe na Europa. Acreditava-se que o oceano impediria a chegada do mal ao país, assim, nenhuma medida de prevenção foi tomada. Mas, essa aposta se revelou rapidamente um engano.

Tinha-se medo de sair à rua. Em São Paulo, especialmente, quem tinha condições deixou a cidade, refugiando-se no interior, onde a gripe não tinha aparecido. Diante do desconhecimento de medidas terapêuticas para evitar o contágio ou curar os doentes, as autoridades aconselhavam apenas que se evitasse as aglomerações.

Fake news


Nos jornais multiplicavam-se receitas: cartas enviadas por leitores recomendavam pitadas de tabaco e queima de alfazema ou incenso para evitar o contágio e desinfetar o ar. Com o avanço da pandemia, sal de quinino, remédio usado no tratamento da malária e muito popular na época, passou a ser distribuído à população, mesmo sem qualquer comprovação científica de sua eficiência contra o vírus da gripe.

Pedro Nava (✩1903/1984), médico e escritor historiador que presenciou os acontecimentos no Rio de Janeiro em 1918, escreve que 
"aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas. Nenhuma de nossas calamidades chegara aos pés da moléstia reinante: o terrível não era o número de casualidades — mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. 
O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes, a impossibilidade de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva".
Durante a pandemia de 1918, o médico mineiro Carlos Chagas (1879/1934), assumiu a direção do Instituto Oswaldo Cruz, reestruturando sua organização administrativa e de pesquisa. 

A convite do então presidente da república, Venceslau Brás (1868/1966), Chagas liderou ainda a campanha para combater a gripe espanhola, implementando cinco hospitais emergenciais e 27 postos de atendimento à população em diferentes pontos do Rio de Janeiro.

Estima-se que entre outubro e dezembro de 1918, período oficialmente reconhecido como pandêmico, 65% da população adoeceu. Só no Rio de Janeiro, foram registradas 14.348 mortes. Em São Paulo, outras 2.000 pessoas morreram.

Conclusão

"Só uma gripezinha"


Sim, mesmo com toda essa devastação, houve também quem considerasse a gripe espanhola "uma gripezinha" e sim, também houve quem, mesmo com todas as evidências, acreditasse que ela "não existia" e que não era nada assim tão letal. E as "coincidências" não param por aí. Politicagem, batalhas por protagonismos, guerra de egos, desgovernos... "Tudo como dantes no quartel de Abrantes". Como podemos ver, ao que parece, os vírus em seu universo invisível, andam bem mais evoluídos e inteligentes que os humanos com todo o seu aparato tecnológico. 

Embora a gripe espanhola tenha efetivamente atravessado toda a pirâmide social, sua feição "democrática" deve ser olhada com atenção, pois a maioria das vítimas provinha das camadas populares e daqueles grupos chamados pelas autoridades de indigentes. De todo modo, a doença vitimou até o presidente eleito, Rodrigues Alves (✩1848/✞1919), que na pôde tomar posse na presidência em 15 de novembro de 1918 e morreu em janeiro de 1919.

[Fonte: História do Mundo; Invivo Fiocruz, por Juliana Rocha; Fundação Getúlio Vargas - CPDOC. Referência Bibliográfica: Artigo The Influenza Pandemic of 1918 - Human Virology at Stanford University. DE SOUZA, Christiane Maria Cruz. "A gripe espanhola na Bahia de Todos os Santos: entre os ritos da ciência e os da fé". Dynamis 2010; 30: 41-63. GOULART, Adriana da Costa. "Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro". Hist. cienc. saude-Manguinhos (online). 2005, vol.12, n.1 (cited 2015-12-04), pp. 101-142 . Available from: . ISSN 1678-4758. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702005000100006. KOLATA, Gina. "Gripe: a história da pandemia de 1918". Rio de Janeiro: Record, 2002. 382p. TEIXEIRA, Luiz Antonio. "Medo e morte: Sobre a epidemia de gripe espanhola de 1918". Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Instituto de Medicina Social, 1993. 32p. "Série Estudos em Saúde Coletiva", n.59.]

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