domingo, 19 de agosto de 2018

LIVRO QUE EU LI / FILME QUE EU VI: "O BEBÊ DE ROSEMARY"

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O gênero terror geralmente não é dos meus preferidos. Aliás, esse gênero, tanto no cinema, quanto na literatura, é um investimento um tanto quanto ousado e nem sempre os resultados são muito satisfatórios pois, pode se descambar para coisas bizarras e, na minha opinião, totalmente dispensáveis, como as franquias "Pânico", "Jogos Mortais" e "Premonição" (só citando as mais conhecidas) - horríveis sob todos os aspectos -, como também surpreender com verdadeiras obras-primas como "Carrie, a Estranha" (o original, de 1976, sobre o qual escrevi ➫ aqui), o magnífico "Cemitério Maldito" (sobre o qual escrevi ➫ aqui) e o fenomenal, talvez o melhor de todos nesse gênero, "O Exorcista" (o original, sobre o qual escrevi ➫ aqui).

Mas há uma outra obra que também merece entrar para o hall dos grandes clássicos, aliás, muito pelo grande feito de conseguir um bom êxito ao levar para as telonas clássicos da literatura, fato assaz raro de acontecer na história do cinema. Estou falando do clássico - tanto o livro, quanto o filme: "O Bebê de Rosemary".

Sobre o livro


Livros clássicos de terror são famosos por serem capazes de construir uma atmosfera de terror. Conduzir o leitor através de suas páginas até uma situação terrível, envolvendo-nos em uma trama diabólica capaz de destruir nossa força de vontade e nossa sanidade. Em "O Bebê de Rosemary", Ira Levin mostra justamente isso: uma trama que vai se construindo progressivamente até chegar ao ponto de impacto e nos conduzir ao momento do pavor. 

Este é um livro escrito em terceira pessoa, mas acompanhando de perto a vida de Rosemary Woodhouse, nossa protagonista. O medo é construído ao longo das páginas, apresentando situações e plantando sementes de dúvida na mente do leitor. Lentamente vamos montando as peças até chegarmos às grandes revelações no final da história.

O ponto fraco


Alguns leitores podem discordar, mas eu achei a escrita o ponto mais fraco do livro. Não que a escrita seja ruim, mas eu a achei preguiçosa para um livro de terror. Em alguns momentos parecia que eu estava assistindo a um episódio de Scooby-Doo em que o narrador precisa mostrar todo o plano maligno para que o leitor pudesse entender exatamente o que estava acontecendo. 

Rosemary funciona como o personagem-orelha, mas ao mesmo tempo me parece que o autor foi didático demais. Muitos dos elementos para compor nossas conclusões acerca do que se passava ao redor da protagonista, o leitor já era capaz de deduzir a partir de várias pequenas pistas deixadas ao longo da história. Tem dois capítulos na segunda parte que são gastos para que Ira explique detalhe por detalhe do que aconteceu até aquele momento. 

Outro ponto que me deixou um pouco entristecido é que o livro não envelheceu bem. O estilo de escrita é clássico demais. Por exemplo, Lovecraft escreveu na década de 1930, mas seus contos são atemporais. Você não é capaz de datá-los... nem a escrita dele consegue ser datada. Aqui é fácil perceber algumas construções típicas do período em que foi escrito. Para um livro de terror, isso tira um pouco do impacto em determinadas cenas. A clássica cena no final é muito boa, mas o crescendo até chegar lá é muito regular. O leitor acaba acelerando a leitura porque quer ver logo a cena no final, não porque a história está interessante. 

O ponto forte


Se a escrita é o ponto fraco, os personagens são o ponto alto. Claro que, em uma história de terror, o autor precisa saber fazer uma construção adequada de personagens. Caso contrário não somos capazes de nos engajarmos na história. A protagonista é construída de uma forma muito respeitosa. Gostei da maneira como Rosemary não é aquela típica mulher de livros de terror: boba, submissa. Muito pelo contrário; ela procura ser decidida em certos momentos apesar de toda a trama que se desenrola ao seu redor.

Alguns pontos a gente pode questionar, mas faz parte da construção da própria personagem. O marido parece não importar no começo, mas aos poucos ele vai se tornando importante para a história e vamos percebendo o quanto a sua influência (ou falta dela) contribui para tudo aquilo que acontece à personagem. 

Os outros personagens de apoio também são muito bons. E o curioso é que em vários momentos chegamos realmente a duvidar da sanidade da Rosemary. Isso porque, apesar de todo o estranhamento da fixação das pessoas por ela, a gente fica com a pulga atrás da orelha. Pode ser? Não pode ser? É? Nesse sentido a construção é perfeita.
 
Roman me fez lembrar outro personagem de uma trama posterior: o antagonista de "Salem", livro escrito pelo genial Stephen King. King dizia que os livros do Ira Levin tinham sido muito influentes no início de sua carreira. Eu não estranharia uma relação entre os dois personagens. 

Uma cena que chama a atenção mesmo na trama é o "estupro" da Rosemary. Mesmo que toda a trama tivesse sido uma alucinação da parte dela, e aquela noite tivesse sido apenas a vontade de Guy de ajudar Rosemary a ter um bebê, aquilo foi super incorreto da parte dele. Para mim, Rosemary até pegou leve com ele, ao apenas se afastar por algum tempo. Nenhum marido tem o direito de se aproveitar de sua esposa daquela maneira. Mesmo que estejam casados? Sim. Sexo tem que ser algo consensual, um ato de amor e carinho entre o casal. Existe o elemento sexual e o fetiche? Com certeza, mas acima de tudo há de ter o respeito regendo tudo. Percebeu como a trama do livro, apesar do viés de terror, nos levar a reflexões mais profundas? Ponto para Levin!

A narrativa é bem retilínea. Digo isso em um sentido de que ela não tem altos e baixos. Ela segue em uma linha reta que pode irritar alguns leitores. Não temos grandes momentos de emoção e medo, salvo o final. A cena do "estupro" foi algo muito mais alucinógeno do que assustador. Na versão para o cinema, ela ficou bem mais assustadora. E, curiosamente, o diretor seguiu bem fielmente o livro. Naquela época em que o filme foi rodado, havia essa mentalidade de adaptar com fidelidade o conteúdo de um livro (quem não se lembra de "O Poderoso Chefão"? Escrevi sobre livro e filme ➫ aqui). Ouso dizer até que o filme ficou alguns níveis melhor do que o livro. É sobre o que falarei em seguida.

Sobre o filme


Sem dúvidas a década de 1960 foi um marco para a história do cinema mundial. O contexto da Guerra Fria, as novas conquistas e frustrações humanas, as revoluções culturais e políticas, enfim, vários acontecimentos que fervilhavam o cenário global e, consequentemente, as mentes mais inquietas, passaram a ser retratados direta ou indiretamente nas telas do cinema.

Foi nesse período que diretores renomado projetaram suas cinematografias, que anos depois se tornaram parte do Olimpo da sétima arte. Nomes como Stanley Kubrick, Woody Allen, Robert Altman, Francis Ford Coppola, Brian de Palma, Martin Scorsese, Milos Forman, entre outros, compunham o time de cineastas ativos nos anos 1960 que produziam filmes - verdeiras maravilhas do cinema - mais realistas e que abordavam temas como política, violência, sexo, drogas, etc.

Em meio a esse hall de grandes artistas está o francês filho de pais poloneses Roman Polanski. Na década de 60, após mudar-se para os EUA, Polanski obteve uma grande consagração pelos seus filmes, como por exemplo, "Chinatown", de 1974. Entretanto, sua estreia em solo estadunidense abriu as portas da notoriedade com o filme "O Bebê de Rosemary", de 1968.

Adaptação do best seller de Ira Levin, "O Bebê de Rosemary" tornou-se um clássico do cinema e é considerado por muitos como um dos filmes mais assustadores de todos os tempos. Com os produtores Robert Evans e William Castle, o elenco do filme também é de peso: Mia Farrow como Rosemary Woodhouse, John Cassavetes como seu marido Guy, Sidney Blackmer como o vizinho Roman e Ruth Gordon como a simpática vizinha Minnie (atuação impecável que rendeu à Ruth o Oscar de melhor atriz coadjuvante). 

A sinopse (ou, se preferir, o spoiler)


A jovem e ingênua Rosemary e seu marido Guy, um ator em busca de emprego, se mudam para Nova York ocupando um dos apartamentos de um concorrido edifício (o nome real do edifício onde o filme foi gravado é Dakota, aquele mesmo onde John Lennon foi assassinado).

O gerente do local, Sr. Nicklas (Elisha Cook) conta ao casal que sua nova residência foi anteriormente ocupada por uma senhora que apresentava problemas psíquicos ocasionados pela idade avançada. Um amigo do casal, Hutch (Maurice Evans) tenta convencê-los a não alugar o apartamento, contando um pouco das estranhas histórias que rondam o lugar. Entretanto, Rosemary e Guy são ainda mais atraídos pelo imóvel e fecham o negócio.

No decorrer do filme o espectador acompanha o processo de adaptação dos novos moradores do apartamento e seus ideais de prosperidade e vida nova, bem como o desejo de engravidarem e terem ali seu primeiro filho. Rosemary conhece uma jovem chamada Terry (Angela Dorian), que está em processo de recuperação para o seu vício em drogas. Essa jovem conta que vive no mesmo prédio no apartamento ao lado, com um casal de idosos que a adotaram e cuidam dela. Durante a conversa, Rosemary se encanta com um colar de pingente no pescoço de Terry, mas percebe um cheiro um tanto que desagradável vindo dele.

Certa noite, Guy e Rosemary estão voltando para casa e percebem que na rua em frente ao prédio estão reunidas várias pessoas em torno de um corpo. Era Terry, que se jogou do apartamento em que morava em direção à morte. Preocupados, eles aguardam até que o casal de idosos que morava com a jovem apareça, e é nessa noite que eles conhecem Roman e Minnie Castevets, com quem rapidamente começam uma amizade.

Entre flertes e convites para jantar, Guy, Rosemary e os Castevets vão se tornando cada vez mais íntimos. Minnie presenteia Rosemary com o estranho pingente usado por Terry. Roman conversa em particular com Guy a respeito de suas pretensões como ator.

Até então, nada de surpreendente ou aterrorizante. Porém, no decorrer da trama, Guy recebe um telefonema dizendo que conseguiu o almejado papel em uma peça, pois o ator que havia sido escalado em seu lugar misteriosamente havia amanhecido cego. A partir daí, o casal Woodhouse decide engravidar. Nessa noite, a senhora Minnie presenteia Rosemary com copos individuais de mousse de chocolate.

Após alguns bocados ela se sente mal e vai dormir, porém tem alucinações terríveis que misturam fantasia e realidade. Rosemary tem recordações da infância, vê freiras, barcos, marinheiros, figuras psicodélicas. No ápice de sua experiência alucinógena, a jovem Woodhouse se vê em um ambiente escuro cercada de pessoas estranhas falando idiomas desconhecidos, como se fosse uma oração ou invocação de alguma coisa. 

Em meio a essas pessoas, vê o casal Castevet vestido de preto e seu marido Guy nu vindo em sua direção. Eles começam uma relação sexual, porém logo o homem com quem está fazendo sexo se transforma em uma criatura bizarra com aspectos demoníacos. Rosemary tenta acordar, dizendo que aquilo não é um sonho, mas a realidade. Quando atinge o ápice do prazer ela vê o papa que se dirige para "perdoá-la" do pecado que está cometendo, oferecendo o anel para beijar. O anel, no entanto, é o misterioso pingente que ganhou de Minnie.

No dia seguinte, Rosemary acorda exausta e se vê nua na cama com arranhões por todo o corpo. Questiona seu marido a respeito da noite passada e ele responde que tinha bebido um pouco e não pode evitar fazer amor com a esposa. Naquela noite alucinante, Rosemary havia engravidado.

A partir daí, o filme se desenrola em diversas coincidências e incidentes macabros. Ainda que esse texto se trate de uma resenha, seria indelicado de minha parte revelar o resto do enredo – o gênero de terror e suspense deve ser assistido por você, leitor. No entanto, a trama apresenta a gravidez de Rosemary de forma não convencional, pois ao invés de engordar ela vai emagrecendo e adquirindo um aspecto funéreo.

A gestante sente muitas dores, decide procurar um médico de confiança – o doutor Hill (Charles Grodin) – mas é desencorajada pelos Castevets, que exultam de alegria ao descobrirem que a vizinha está esperando um filho e recomendam seu amigo médico doutor Abraham Sapirstein (Ralph Bellamy), cujo tratamento recorre a medicina alternativa como chás e misturas naturais para beber.

A seguir há uma série de ocorrências misteriosas, como a morte do amigo Hutch, que em todo o filme suspeita dos novos amigos de Rosemary e quer avisá-la de alguma coisa terrível que está se passando. Antes de morrer, Hutch providencia que Rosemary receba em seu próprio funeral um livro sobre bruxaria. Esse livro contém um anagrama que vai decifrar toda a gama de mistério sobre a relação de Roman, Minnie e todas as pessoas de seu convívio com o satanismo.

A conclusão é que o filho que está sendo gerado no ventre de Rosemary na verdade não é de seu marido Guy, mas do próprio diabo. A jovem Woodhouse foi um objeto de barganha para que a semente do mal pudesse ser plantada e cultivada até o seu parto. O bebê é um menino de nome Adrian, uma espécie de Anticristo aguardado por essa maléfica seita de bruxos.

O "filme maldito" e "suas maldições"


A temática de "O Bebê de Rosemary" é, por si só, muito pesada. As questões e implicações éticas envolvidas levam a uma reflexão sobre a sacralidade da gravidez, a benção da maternidade e as relações pessoais e familiares num antagonismo à geração do mal, ao satanismo, a rituais pagãos e ao grande dilema da trama: ter o filho ou sacrificá-lo? Uma implícita reflexão sobre um assunto cuja polêmica está cada vez mais atual: o aborto.

Além das muitas indagações e polêmicas internas do filme, vale também lembrar os amantes de teorias da conspiração  (nenhum bom filme de terror que se preza escapa delas) que essa obra de Polanski também teve coincidências macabras na vida real. Vamos a elas:
  • Após o lançamento do filme o produtor William Castle começou a receber ameaças de morte, por causa do "sacrilégio" que o longa metragem propõe. Castle esteve internado com falência renal um ano depois (1969) e testemunhas dizem ter ouvido ele gritar em seu leito: "Rosemary, pelo amor de Deus, solte esta faca!", provavelmente tendo alucinações que se referem à cena final do filme.
  • No mesmo dia, e no mesmo hospital, estava Krysztof Komeda, compositor da trilha sonora do filme que morreu devido um coágulo cerebral, a mesma autópsia do personagem Hutch do filme.
  • Também em 1969, a atriz Sharon Tate, esposa do diretor Roman Polanski, que coincidentemente estava grávida, foi brutalmente assassinada junto com quatro amigos em sua casa. Os autores do crime eram membros de uma seita chefiada pelo mundialmente conhecido serial killer e satanista Charles Manson, que cumpria sua prisão perpétua nos EUA até sua morte em 2017.
  • Para terminar, vale lembrar que o edifício Dakota onde fica o apartamento em que o filme foi gravado também ganhou atenção da mídia internacional vários anos depois, pois foi justamente em sua frente, em dezembro de 1990, que o cantor John Lennon foi assassinado a tiros por Mark Chapman, um fã lunático que achava ser o próprio ídolo.

Conclusão


Reclame do jornal O Estado de São Paulo, anunciando o filme que
estava em cartaz  no Cine Bela Artes, em 15 de junho de 1969 
"O Bebê de Rosemary" é um clássico do terror e acho que todos os fãs do gênero deveriam ter contato com ele. Ira Levin criou uma atmosfera de suspense que se estende ao longo de toda a narrativa. Personagens bem criados e uma protagonista feminina marcante, algo bem diferente na época em que foi escrito. Entretanto, a escrita é fraca e um pouco datada, sendo que Roman Polanski, na adaptação cinematográfica foi capaz de mostrar melhor aquilo que o autor quis ilustrar aos leitores e obter o impacto desejado. 

"O Bebê de Rosemary" vai além de um livro e filme cercados de mistérios e coincidências sinistras. É uma obra indispensável para os admiradores do gênero terror e também para aqueles que cultuam o cinema clássico.

Fichas técnicas

Livro




Nome: O Bebê de Rosemary
Autor: Ira Levin
Editora: Amarilys (no Brasil)
Gênero: Terror
Tradutor: Cléo Marcondes Silveira
Número de Páginas: 224
Ano de Publicação: 2014 (no Brasil)







Filme


Data de lançamento: 21 de maio de 1969 (2h16min)
Direção: Roman Polanski
Gêneros: Terror, Drama, Suspense
Nacionalidade: EUA




A Deus toda glória. 
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