quarta-feira, 14 de junho de 2017

LIVROS QUE EU LI - "VIDAS SECAS"

Capa original da primeira edição
"Vidas Secas" é daquelas obras clássicas atemporais. Apesar de seu peso literário, o que dá a ela uma responsabilidade com viés acadêmico, essa magnífica obra é de uma magnitude e abrangência tão grandes que lê-la, mais do que uma obrigação literária é um inenarrável prazer.

Eu a li pela primeira vez há quase trinta anos, quando eu cursava a sétima série do antigo 2º. Grau – atual Ensino Médio – para fazer uma prova final de Literatura. Foi paixão à primeira leitura, apesar de ter lido com mais foco na prova, o que não me impediu de nascer em mim um desejo pessoal e voluntário por uma segunda leitura, sem a responsabilidade de uma prova, mas com o interesse em me transportar para o fascinante universo narrado pelo autor.

"Vidas Secas", romance publicado em 1938, retrata a vida miserável de uma família de retirantes sertanejos obrigada a se deslocar de tempos em tempos para áreas menos castigadas pela seca.

Importância literária


A obra pertence à segunda fase modernista, conhecida como regionalista, e é qualificada como uma das mais bem-sucedidas criações da época. É a obra mais conhecida do escritor Graciliano Ramos. É também o livro mais representativo de uma temática conhecida como "romance de 30" ou "neorrealismo regionalista", que predominava na segunda fase do modernismo brasileiro. 

"Vidas Secas" é um dos livros indicados para leitura nos vestibulares de 2017, 2018 e 2019 da Fuvest. Esta indicação também é referência para outros vestibulares, como Unesp, Unifesp, Puc e Mackenzie.

O estilo seco de Graciliano Ramos, que se expressa principalmente por meio do uso econômico dos adjetivos, parece transmitir a aridez do ambiente e seus efeitos sobre as pessoas que ali estão. 

Contexto histórico da obra

Criador e criatura


"Vidas Secas" foi escrito e publicado em 1938, logo após o seu autor ser libertado da prisão. Graciliano Ramos foi preso em 1937 sob acusações vagas de defender ideologias comunistas. Na década de 1930, o mundo passava por uma grave crise financeira. Na Europa, acirravam-se os conflitos que dariam origem à Segunda Guerra Mundial, em 1939. 

Da mesma forma, crescia a tensão entre duas ideologias opostas: o capitalismo e o socialismo. No Brasil, sob o governo de Getúlio Vargas, iniciava-se uma "caça aos comunistas", que levaria muitos artistas e intelectuais ao exílio ou à prisão.

Quando Graciliano Ramos foi preso em 1937, ele já era um escritor reconhecido, com três obras publicadas. Ao sair da prisão, procurou serviço como jornalista em um jornal do Rio de Janeiro. O editor lhe ofereceu a oportunidade de publicar um texto curto (um conto).

Graciliano escreveu então um conto chamado Baleia, que contava o sofrimento e morte de uma cachorrinha de uma família de retirantes, no sertão nordestino. Com o sucesso da publicação, o jornal encomendou outros contos no mesmo estilo. Graciliano escreveu então um conto para cada membro daquela família: o pai, a mãe e os dois filhos. Nascia assim sua obra mais famosa: "Vidas Secas", que manteve a estrutura de capítulos-contos. 
Resumo do enredo e personagens 


A história e seus personagens


"Vidas Secas" narra a história de uma família de retirantes nordestinos em sua constante luta pela sobrevivência. No primeiro capítulo ("Mudança") vemos o pai ('Fabiano'), a mãe ('Sinhá Vitória'), os dois filhos – personagens sem nomes próprios – ('menino mais velho' e 'menino mais novo') junto com a cachorrinha da família ('Baleia' – uma crítica sutil, mas sensacional: como pode uma cachorra chamada Baleia em pleno cenário de seca nordestina?) e um papagaio (que será morto para servir de alimento) fugindo de uma seca que assola a região. 

Eles andam em direção ao sul, sem um destino certo, movidos pela esperança de chegar a um lugar onde encontrem água e comida para sobreviver. Eles acabam chegando a uma fazenda abandonada onde encontram um pouco de água e algumas raízes para comer. Como há sinais de que choverá nos próximos dias, decidem ficar e esperar o dono da fazenda retornar com o gado. Fabiano é vaqueiro e acaba aceitando cuidar do gado do dono da terra.

Uma narrativa de crítica social e psicológica mais atual do que nunca


Segue-se então uma sequência de fatos que vão mostrando ao leitor toda a miséria desta família. Fabiano é humilhado e roubado em seus direitos pelo dono da fazenda, a quem chama de patrão. A família vive em condições animalescas. As crianças brincam na lama com os animais. Não estudam e não têm condições nem mesmo de aprender a linguagem básica, uma vez que os pais quase não falam.

Fabiano tem uma enorme dificuldade de raciocinar e se expressar de maneira lógica e organizada. Comunica-se com gestos e grunhidos, o que o aproxima muito de um bicho, como ele mesmo reconhece. Quando vão para a cidade (capítulo "Festa"), sentem-se deslocados e assustados. Fabiano é preso e surrado como um animal por capricho de um "soldado amarelo".

Paralelo ao drama físico-social desta família, acompanhamos o seu drama psicológico. Fabiano vive a angústia de se saber inferior por não conseguir falar com clareza, questionando-se constantemente se é um bicho ou um homem. Sinhá Vitória vive o drama da constante frustração do sonho de ter uma cama de lastro (metáfora para o desejo de ter um lugar definitivo e seu para viver) e os meninos "sem nomes" vivem a angústia de não terem como satisfazer a sua curiosidade natural (capítulo "Inferno") ou a falta de perspectiva para o futuro (capítulo "Menino mais novo").

Vale ressaltar aqui a figura do seu 'Tomás da bolandeira'. Esta personagem aparece apenas nas lembranças do casal. Era um vizinho da fazenda anterior, onde eles viviam até a seca os expulsar. Seu Tomás era um homem "letrado". Sabia ler e falava "difícil". Possuía uma cama de lastro, que despertara o desejo de Sinhá Vitória, e uma bolandeira, espécie de prensa rústica de moer cana.

Seu Tomás também é um homem rústico e pobre do interior. Mesmo assim, serve de referência ao casal, tanto no aspecto cultural quanto social. Fabiano deseja ter a capacidade de "falar" como o seu Tomás da Bolandeira. Sinhá Vitória deseja ter a sua estabilidade financeira (simbolizada na cama de lastro) para largar aquela vida nômade de ter de se mudar a cada período de seca.

A estrutura cíclica 


No último capítulo ("Fuga"), ocorre um novo período de seca e a família é obrigada novamente a fugir em direção ao sul para sobreviver. Dessa forma, temos a estrutura cíclica desta narrativa. O livro começa e termina com a família na mesma situação de retirantes, como se tivessem voltado ao mesmo ponto de partida.

Aqui vale ressaltar que esta estrutura cíclica da narrativa tem um forte aspecto simbólico. Graciliano Ramos está chamando a atenção do leitor para o drama dos retirantes nordestinos, que se repete ciclicamente, não apenas na questão da seca, mas das misérias e injustiças sociais que vão passando de geração para geração. O drama vivido por Fabiano já foi vivido por seu pai, seu avô e será repetido pelos seus filhos.

O foco narrativo de "Vidas Secas"


"Vidas Secas" é narrado em terceira pessoa, ou seja, possui um narrador externo onisciente. No entanto, é muito comum o leitor ter a impressão de que a narrativa é feita pelas personagens do livro, em primeira pessoa. Isso acontece porque o narrador conta a história sob o ponto de vista da personagem focalizada naquele momento, explorando assim, além do drama social, o drama psicológico.

A técnica narrativa mais importante dessa obra é o uso intenso do discurso indireto livre. Trata-se de uma forma de mostrar a fala ou pensamento das personagens inseridos diretamente no discurso do narrador. Se o leitor não estiver atento, pode não perceber que aquela fala é, na verdade, da personagem. Trata-se de uma técnica rara e difícil de ser empregada pelo autor e percebida pelo leitor. São comuns questões nos vestibulares que pedem para o aluno identificar a presença do discurso indireto livre em trechos de "Vidas Secas".

Conclusão


Graciliano Ramos é um dos maiores escritores da literatura de língua portuguesa. É marcado por uma visão socialista, fruto de experiências concretas da realidade social nordestina e profunda reflexão intelectual. Seus livros denunciam as injustiças sociais sem deixar de explorar também o drama psicológico de seus personagens.

Essa denúncia de mazelas sociais ao lado de reflexões sobre angústias psicológicas tornam suas obras universais, extrapolando os limites regionais e/ou culturais que atingem muitos escritores brasileiros.

Graciliano Ramos é dono de um estilo marcado pela concisão e secura da linguagem. Suas frases são curtas e objetivas, sem adjetivação desnecessária e supérflua. A crítica aponta um casamento perfeito entre o estilo seco do autor e a temática de secura e carência da obra "Vidas Secas".

Escola Literária: Modernismo


"Vidas Secas" pertence ao modernismo brasileiro. Mais especificamente, pertence ao segundo tempo do modernismo brasileiro, período compreendido entre 1930 e 1945. Nesse período ocorre uma retomada das características do realismo-naturalismo do século XIX. Ao mesmo tempo, temos uma preocupação dos autores em abordar aspectos da realidade sociocultural da sua região. Temos então o neorrealismo regionalista.

Também é característica desse período a ascensão da ideologia socialista, que acabou influenciando muitos artistas da época. Dessa forma, também é comum a denominação romance socialista ou romance de trinta para designar as narrativas produzidas na década de 1930.

Tanto na realidade física quanto na realidade sociocultural, observamos aspectos muito pitorescos do sertão nordestino. A abordagem dessas características revela que o regionalismo de "Vidas Secas" é físico, concreto, fruto de uma visão realista. 

A obra de Graciliano Ramos ganhou uma adaptação para o cinema em 1963. O filme "Vidas Secas" foi dirigido por Nelson Pereira dos Santos para a Herbert Richers e recebeu o prêmio do OCIC e o dos Cinemas de arte. Indicado à Palma de Ouro, foi considerado o melhor filme de 1965 na Resenha de Cinema de Gênova 1965 (Itália).

Se você ainda não leu essa magnífica obra, espero com este artigo ter no mínimo aguçado sua curiosidade.


A Deus toda glória.
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