quarta-feira, 7 de junho de 2017

ACONTECIMENTOS - O ASSASSINATO DO JORNALISTA VLADIMIR HERZOG


O período da Ditadura Militar, também conhecido como os "anos de chumbo", pode ser definido como sendo o período da política brasileira em que os militares governaram o Brasil. Esta época foi de 1964 a 1985. Este obscuro e controverso – sendo aclamado por uns e repudiado pela maioria – caracterizou-se pela falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar. E um dos acontecimentos – dentre outros tantos de muita projeção – considerado como o estopim que mostrou o lado grotesco da Ditadura, foi a morte do jornalista Vladimir Herzog, que iremos relembrar no texto desse artigo.


Simplesmente Vlado


Vlado e o filho Ivo em 1966
Vladimir Herzog foi um jornalista, desejava ser um cineasta, mas, vitimado pela ditadura, tornou-se uma personagem icônica da História do Brasil e da construção da nossa democracia. Sua vida e sua trajetória profissional, fundamentos da existência e da ação do Instituto Vladimir Herzog, foram marcadas por permanente preocupação humanística, que se refletiu em suas realizações jornalísticas e cinematográficas e está para sempre simbolizada em sua frase: 
"Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerar seres humanos civilizados".

Sua morte


A clássica foto do forjado 
suicídio de Vlado
Vladimir Herzog, o Vlado, foi assassinado no dia 25 de outubro de 1975, sábado, num antigo prédio da rua Tomás Carvalhal, no Bairro do Paraíso, em São Paulo, onde funcionava o Destacamento de Operações de Informações (DOI), departamento do Centro de Operações de Defesa Interna, (CODI), órgão subordinado à Segunda Divisão de Exército, parte da organização hierárquica do Comando Militar do Sudeste, sediado na capital paulista. 

Então diretor de jornalismo da TV Cultura e responsável pelo telejornal "Hora da Notícia" o jornalista fora procurado na noite anterior em seu local de trabalho por dois agentes que pretendiam levá-lo para "prestar depoimento" sobre suas supostas ligações com o Partido Comunista Brasileiro, agremiação que funcionava na clandestinidade desde o Golpe Militar de 1964. Após uma tensa negociação, Vlado comprometeu-se a se apresentar espontaneamente na manhã seguinte.

Chegou à sede DOI-CODI, às 8 horas, levado àquele endereço pelo jornalista Paulo Nunes, que cobria a área militar na redação da Cultura e dormira na casa do diretor da TV naquela noite para assegurar que ele se apresentaria na instalação militar logo cedo. Nunes foi dispensado na recepção e Vlado encaminhado para interrogatório. 

Foi então encapuzado, amarrado a uma cadeira, sufocado com amoníaco, submetido a espancamento e choques elétricos, conforme o manual ali praticado e seguindo a rotina a que foram submetidos centenas de outros presos políticos nos centros de tortura criados pela ditadura e financiados em boa parte por empresários que patrocinavam ações repressivas e de violação dos Direitos Humanos, como a Operação Bandeirante.

A confissão


Submetido a novos choques elétricos depois de ter se recusado a confirmar o que os investigadores queriam ouvir, Vlado acabou por admitir finalmente que todo mês dava uma quantia em dinheiro para o PCB e que recebera três vezes exemplares do Jornal Voz Operária. Do lado de fora da estreita sala, no térreo do prédio do DOI-CODI, os jornalistas Rodolfo Konder e Duque Estrada podiam ouvir os berros de dor do colega. 

Garncieri, o principal carrasco, continuou a sessão de pancadas, até que Vlado não suportou mais e decidiu escrever um depoimento de próprio punho, como era de praxe no DOI-CODI, admitindo ser militante do PCB: 
"Eu, Vladimir Herzog, admito ser militante do PCB desde 1971 ou 1972, tendo sido aliciado por Rodolfo Konder". 
Uma vez assinado o documento, num gesto de indignação Vlado rasgou o papel em pedacinhos. Daí em diante foi torturado até não aguentar mais. Eram quase 5 da tarde quando ele sucumbiu de vez às torturas.

"Naquela cela solitária, com o ouvido na janelinha, eu podia ouvir os gritos: 'Quem são os jornalistas? Quem são os jornalistas?' Pelo tipo de grito, pelo tipo de porrada, sabia que estava sendo feito com alguém exatamente aquilo pelo que eu tinha passado", 
recordou, em 1992, em depoimento ao jornal Unidade, do sindicato da categoria, o jornalista Sérgio Gomes, que estava preso no mesmo DOI-CODI em que Vlado se encontrava naquele dia. 
"Lá pela hora do almoço há uma azáfama [excesso de pressa, afobação na execução de um serviço], uma correria. Ele foi torturado durante toda a manhã e se dá o tal silêncio. A pessoa para de ser torturada e em seguida há uma azáfama, uma correria… A gente percebe que tem alguma coisa estranha acontecendo. Tinham acabado de matar o Vlado."
A notícia de sua morte no DOI-CODI chegou às redações acompanhada de fotos mostrando seu corpo em um uniforme verde, numa sala com um colchão e pedaços de anotações espalhados sobre os tacos do piso, em torno de uma cadeira de plástico. A cabeça pendia para o lado e as pernas se abriam para os dois lados, única e improvável maneira de alguém se enforcar com o cinto do uniforme na grade baixa colocada diante dos tijolos de vidro que garantia luz para a sala.


Sua história


Foto de Vlado, submetido à torturas e 
humilhações antes de ser assassinado (1)
Desde que assumira o cargo, alguns colunistas e parlamentares denunciavam a "infiltração comunista" na Cultura. Vlado foi defendido pelo secretário José Mindlin e tivera seu nome aprovado pelo Serviço Nacional de Informações.

Depois do golpe de 64, já casado com Clarice, foi trabalhar na BBC de Londres. Em julho de 1968, ela e os dois filhos, Ivo e André, voltaram para o Brasil. Vlado ficou, para fazer um curso de produção de TV e em dezembro, durante uma viagem a Itália, leu a notícia sobre o AI-5, mas resolveu voltar. O emprego garantido na TV Cultura, não se concretizou – ele fora denunciado como comunista – e durante um ano, produziu comerciais numa agência de propaganda, até ser contratado pela revista Visão.

A prisão de Vlado foi uma entre dezenas de detenções determinadas pela Operação Jacarta, conduzida pelo DOI-CODI com a intenção de destruir bases do Partido Comunista em órgãos de imprensa, sindicatos e outras entidades. Vários jornalistas foram pegos bem antes que ele e pelo menos um, Paulo Markun, conseguiu fazer chegar a Herzog e a outros o aviso de que também estavam na mira dos sabujos do regime. O plano de Vlado para aquele fim de semana era viajar com sua esposa Clarice e os filhos para um sítio da família, em Bragança Paulista. Os agentes o alcançaram horas antes da partida.

Ideologia política


Foto de Vlado, submetido à torturas e 
humilhações  antes de ser assassinado (2)
Ligado ao Partido Comunista, como via na organização clandestina a forma mais eficiente de combater a Ditadura. A política nunca fora o território do jornalista que preferia teatro, cinema, ópera. Estudante de filosofia, foi contratado como repórter do jornal O Estado de S. Paulo por Perseu Abramo, onde em pouco tempo ficou amigo de Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi e Delmiro Gonçalves. Fez parte da equipe que cobriu a inauguração de Brasília, acompanhou a visita de Sartre e apaixonou-se pelo cinema.

Um ponto sempre tratado com muita delicadeza por todos os amigos de Vlado diz respeito a seu nível de envolvimento com o Partido Comunista. Pode-se entender que, logo depois de seu assassinato, seria controverso expor sua militância ou não nas fileiras do PC porque isso turvaria a questão principal: a morte de um cidadão sob custódia policial em sessões de tortura conduzidas por agentes do Estado. Ninguém pode ser submetido a tratamento cruel, reza a Declaração Universal dos Direitos Humanos

Mas, para o correto registro na História, é sempre positivo deixar clara a realidade. Vlado era, sim, integrante do que se chama uma base do PC, no caso a base formada por jornalistas e à qual se ligou formalmente quando trabalhava na revista Visão.

"Fiquei espantada quando ele me contou sobre essa decisão, meses antes de morrer", 
diz a viúva Clarice, recordando que estavam no carro da família, na Avenida Sumaré, em São Paulo, no momento em que Vlado contou-lhe sobre a filiação. 
"Mas você sempre foi crítico de regimes que não praticam a democracia", 
ela ponderou. Ao que o marido respondeu: 
"É uma questão de momento. A situação política no Brasil é grave. Só há dois movimentos organizados que podem se articular para combater a Ditadura – a Igreja e o Partido Comunista. Eu sou judeu. Só tenho uma opção".
Até onde Vlado concordava ou não com a ideologia comunista em todos os seus aspectos é uma condição sobre a qual não cabe fazer afirmações categóricas, já que não se conhecem documentos em que ele tenha deixado registrada sua opinião. Mas é certo que Vladimir Herzog concordava com a linha de atuação do partido específica para aquele momento da História brasileira. 

Enquanto outras correntes de esquerda, algumas derivadas do próprio Partidão, ainda pregavam a luta armada ou tinham de fato entrado nessa prática, o PCB havia optado por confrontar o regime atuando nas frentes possíveis, como organização capaz de expor as mazelas sociais que o governo militar pretendia ocultar e de denunciar a violação dos direitos humanos nos porões da repressão. 

Vlado era, portanto, um adversário ideológico, avesso à violência, militante de uma sigla clandestina que buscava o fim do regime ditatorial. Um homem cuja vida e cuja morte, como vítima, ele mesmo, da insana ferocidade da ditadura, constituem o perfil de um herói.

A farsa do suicídio


Mas o assassinato brutal, por espancamento, não era o limite a que podiam chegar os feitores do regime ditatorial. Esquivar-se da responsabilidade pelo crime forjando uma inverossímil cena de suicídio seria o próximo passo dos torturadores. 

Com uma tira de pano, amarraram o corpo pelo pescoço à grade de uma janela e convocaram um perito do Instituto Médico Legal para fotografar a "prova" de que o preso dera fim à própria vida, em um surto de enlouquecido arrependimento por ter escrito uma confissão que aparecia rasgada, no chão, na imagem divulgada pelos órgãos de repressão. 

A cena da morte de Vlado, fotografada pelo perito do IML, foi representada pelo artista Elifas Andreato no quadro "25 de Outubro". O suposto suicídio foi também contestado em carta aberta publicada por renomados professores de universidades americanas em Novembro de 1975 na The New York Book Review.

Na pressa para montar esse circo macabro, ignoraram detalhes como o fato de Vlado ser mais alto do que a janela com grade onde supostamente enforcou-se e a rotina de encarceramento que tira dos presos qualquer instrumento com o qual se possam enforcar, cintos e cadarços entre eles. Criaram, assim, uma mentira tão flagrante que a Sociedade Cemitério Israelita nem considerou a hipótese de enterrar o corpo na área reservada aos suicidas, como determina a prática religiosa. 

Mas, no Inquérito Policial Militar que viria a ser instaurado em razão da morte ocorrida em instalação oficial, o promotor Durval de Araújo – um defensor e protegido do regime – ainda sustentaria que o sepultamento aconteceu no setor de suicidas, recorrendo a depoimentos contraditórios e, mais que isso, se esforçaria para distorcer o que diziam vários depoentes. Por exemplo, a mãe de Vlado disse que sentiu que também queria morrer ao receber a notícia da perda do filho. E o promotor tentou registrar nos autos que ela "sentiu vontade de suicidar-se também".


Justiça e democracia


O promotor queria encerrar o assunto, mas a luta de sua esposa Clarice Herzog para esclarecer totalmente aqueles episódios viria a destruir, no futuro, seus argumentos, as distorções que enredava e a parcialidade de sua atuação.

Noticiada pelos jornais já livres da censura, o crime foi o primeiro a chocar a classe média. O sindicato dos jornalistas assumiu a frente da reação, estudantes da USP entraram em greve. Cinco mil pessoas foram a catedral da Sé para um ato ecumênico organizado por dom Paulo Evaristo Arns, pelo reverendo James Wrigth (da Igreja Presbiteriana) e com a participação do rabino Henry Sobbel, no que seria o primeiro grande protesto contra a tortura em muitos anos.

O general Ernesto Geisel determinou a abertura de um Inquérito Policial Militar que foi manipulado do começo ao fim para concluir que a versão oficial, de que ele cometera suicídio. Três meses mais tarde o operário Manoel Fiel Filho, foi igualmente assassinado no DOI-CODI e sua morte, travestida em suicídio resultou na demissão do general Ednardo D'Avilla Mello, comandante do 2º Exército. Algum tempo mais tarde, Geisel demitiria o próprio ministro do Exército e líder da linha dura, o general Silvio Frota.

O presidente admitia a tortura em certo casos, mas não a insubordinação. Mandara parar com as mortes, mas os organismos de repressão descumpriram sua ordem.


Conclusão


A Família Herzog (da esquerda para a direita): D. Zora, a mãe;
Ivo, o filho caçula; Clarice, a esposa e André, o primogênito
em foto tirada no dia do velório do jornalista

A família Herzog entrou com uma ação judicial pedindo que a União fosse responsabilizada pela morte do jornalista e no dia 25 de outubro de 1978, o juiz Márcio José de Morais, da 7ª Vara de Justiça Federal deu sentença a favor da viúva Clarice e dos filhos Ivo e André. Talvez fosse possível recordar ainda os que divulgaram essa versão na tribuna da Assembléia Legislativa e em colunas de jornais, mas, sinceramente, não sei do que isso adiantaria.

Dez anos mais tarde, o jornalista Paulo Markun publicou um dos muitos livros editados sobre o caso. Terminava assim:
"A morte de Vladimir Herzog mudou o Brasil. Provocou a primeira reação popular contra a tortura, as prisões arbitrárias, o desrespeito aos direitos humanos. A morte de Vlado abortou um golpe dentro do golpe, estancou uma operação em marcha – teria sido um mero 'acidente de trabalho'? E não é exagero dizer que ali, naquele prédio escuro do DOI-CODI, no confronto entre um homem encapuzado e seus algozes, começou a grande transformação que fez o Brasil voltar ao caminho da democracia."
Em 2013 a mudança no atesto de óbito de Vlado marcou uma nova fase quanto aos esclarecimentos de fatos do período da ditadura militar, com a intensificação dos trabalhos de diversas comissões da verdade. Em fevereiro daquele ano, a Comissão Nacional da Verdade concluiu, a partir de documento inédito, que o ex-deputado Rubens Paiva foi assassinado dentro das instalações do Exército no RJ por agentes da ditadura, quatro anos antes do jornalista, em 1971.

O juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª vara de Registros Públicos do TJ/SP, aceitou pedido da Comissão Nacional da Verdade de que conste no assento que a morte do jornalista "decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército – SP (Doi-Codi)". A iniciativa foi representada pelo coordenador da comissão, ministro Gilson Dipp. 

A cerimônia em que a viúva do jornalista recebeu o novo atestado de óbito foi na USP. Hoje, quando se reverencia a memória de quem, segundo Mino Carta, foi "mártir, sem querer ser mártir", é relevante relembrar, sobretudo para as novas gerações, a importância de Vladimir Herzog, covardemente assassinado no dia 25 de outubro de 1975, para a permanente transformação, resistência e consolidação do Estado de Direito Democrático.

[Fonte: Brado Retumbante História - www.bradoretumbante.org.br,Instituto Vladimir Erzog - http://vladimirherzog.org/]

A Deus toda glória.

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