"Porque se introduziram alguns, que já antes estavam escritos para este mesmo juízo, homens ímpios, que convertem em dissolução a graça de Deus, e negam a Deus, único dominador e Senhor nosso, Jesus Cristo.
Mas quero lembrar-vos, como a quem já uma vez soube isto, que, havendo o Senhor salvo um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu depois os que não creram;
E aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia;
Assim como Sodoma e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, e ido após outra carne, foram postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno.
E, contudo, também estes, semelhantemente adormecidos, contaminam a sua carne, e rejeitam a dominação, e vituperam as dignidades.
Mas o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo, e disputava a respeito do corpo de Moisés, não ousou pronunciar juízo de maldição contra ele; mas disse: O Senhor te repreenda.
Estes, porém, dizem mal do que não sabem; e, naquilo que naturalmente conhecem, como animais irracionais se corrompem (Judas 1:4-9, grifo acrescentado).
Nosso Pai! Quer uma passagem de dificílima interpretação na Bíblia? Eis-la! Essa passagem registrada na epístola do apóstolo Judas é um problema para muitos crentes e, como não podia ser diferente, à despeito de uma busca por seu real entendimento, tem servido de base para uma enorme pirâmide de heresias doutrinárias, tanto no segmento cristão, como em outros.
O problema
Essa passagem citada na epístola de Judas nos mostra uma suposta disputa entre o arcanjo Miguel e satanás pelo corpo de Moisés. No entanto, antes que possamos prosseguir em nossa análise, vamos retornar ao Antigo Testamento e averiguar como foi a morte de Moisés. De acordo com o texto de Deuteronômio 34:5,6, assim temos:
"Assim morreu ali Moisés, servo do SENHOR, na terra de Moabe, conforme a palavra do SENHOR. E o sepultou num vale, na terra de Moabe, em frente de Bete-Peor; e ninguém soube até hoje o lugar da sua sepultura" (grifo acrescentado).
Um fato importante deve então ser destacado - a disputa não se fez pelo corpo de Moisés ainda vivo. De acordo com a junção das duas passagens, podemos inferir que aparentemente satanás descobriu o local do túmulo e foi até lá para tomar o corpo de Moisés para si.
A questão, no entanto, que se apresenta é:
- Qual seria o interesse de satanás no corpo enterrado de Moisés?
Porém, a trama se torna ainda mais complexa dado que o arcanjo Miguel aparece também neste contexto para o retomar o corpo do patriarca. E nisso nos deparamos com uma nova questão:
- Por que (e/ou para que) Miguel faria isso?
Para que possamos avaliar bem toda essa estória (sim, ESTÓRIA), devemos estabelecer alguns pontos e iniciar a reflexão sobre algumas novas questões.
- O que é atribuído a satanás no Novo Testamento e ao arcanjo Miguel no Novo Testamento?
- O que a figura de Moisés poderia significar simbolicamente?
- Em qual contexto aparece essa disputa de satanás e Miguel no texto de Judas? Do que é que se está falando neste texto?
Analisando o contexto sob o viés do registro apócrifo
Quer nos parecer que não houve uma disputa real entre essas "figuras". E essa disputa não foi também por algum suposto corpo enterrado de Moisés. Esta é uma disputa pelo simbólico envolvido em "Moisés". Esta é um disputa por Israel. Sinteticamente é possível afirmar que o que está ali em jogo é a disputa sobre quem ficará com o "domínio sobre Israel" e em última instância sobre quem "ficará o domínio sobre o mundo".
No entanto, de forma a realmente entendermos esta proposição, é necessário que estudemos a fonte primária usada pelo autor da epístola de Judas em tal passagem. Ela provém de um livro apócrifo chamado Assemptio Mosis ou "Ascensão de Moisés".
Orígenes já citava ter vindo deste livro a passagem de Judas. Este apócrifo, perdido ao longo dos tempos, foi encontrado no século XIX. Porém, infelizmente o manuscrito encontrado contêm apenas dois terços do texto original. E, para a nossa "desgraça" a parte que nos interessa é uma das que falta.
Apesar disso, no entanto, podemos fazer algumas ilações a partir do material disponível. Vamos a ele:
- Assumptio 11 - Josué falando com Moisés [próximo à sua morte]:
"[Mas agora] que lugar o receberá? Ou qual será o sinal que marcará o (seu) sepulcro? Ou quem ousará mover o seu corpo de lá como se fosse um mero homem? Porque todos os homens quando morrem tem de acordo com a idade os seus sepulcros na terra; mas seu sepulcro é da subida ao pôr-do-sol, e do sul aos confins do norte: todo o mundo é seu sepulcro. Meu senhor, estás partindo, e quem alimentará este povo?" [...] "E os reis dos Amoreus também quando eles ouvem que nós estamos atacando, acreditarão que não estará mais entre eles o espírito santo que era digno do Senhor, múltiplo e incompreensível, o senhor da palavra, que era fiel em todas as coisas, o profeta principal de Deus ao longo da terra, o mestre mais perfeito do mundo, [que não está mais entre eles], dirão 'Marchemos contra eles.
Se o inimigo apenas uma vez agiu impiamente contra o seu Deus, eles não têm nenhum defensor para oferecer suas orações, como Moisés o grande mensageiro que todos os dias de dia e de noite teve os seus joelhos fixados na terra, orando e procurando a ajuda dEle para que regesse todo o mundo com compaixão e justiça, fazendo-O lembrar do pacto dos pais e propiciando o Deus com juramento'. Porque eles dirão: 'Ele não está com eles: vamos então e os destruamos e os lancemos para fora da face da terra'. O que restará então deste povo, meu senhor, Moisés?"
- Assumptio 12 - Moisés respondendo a Josué:
"Por que eu vos digo, Josué: não é por causa da piedade deste povo que tu lançará fora as nações. As luzes do céu, os fundamentos da terra foram feitos e foram aprovados por Deus e estão debaixo do anel de sinete da sua mão direita.
Então, esses que fazem e cumprem as ordens de Deus aumentarão e prosperarão: mas esses que pecam e fixam e negligenciam as ordens estarão sem as bençãos mencionadas, e eles serão castigados com muitos tormentos pelas nações. Mas lançar fora completamente e os destruir não é permitido. Porque Deus irá adiante pois previu todas as coisas para sempre [...]."
O que poderíamos, pois, extrair destas passagens apócrifas?
- Pela sua grandeza, o sepulcro de Moisés atinge simbolicamente toda a Terra. O sepulcro de Moisés é todo o mundo.
- Josué tem Moisés como o símbolo defensor de Israel, mediador entre Deus e os homens.
- Para Josué, a morte de Moisés é o fim de Israel.
- Mas Moisés desqualifica Josué dizendo que Deus está no controle de tudo.
- Trata-se, pois, de um texto pré-determinista.
- Aqui está em jogo, afinal, a batalha dos justos contra os ímpios. O que é dito a Josué é que Deus está no controle do mundo e não o mal. Ele PERMITE que o mal aconteça. No entanto, NÃO PERMITE que neste momento o mal seja debelado por completo:
"Mas lançar fora completamente e os destruir não é permitido."
- Deus tem um plano para o final dos tempos e as coisas caminharão de acordo com este plano.
"Então, esses que fazem e cumprem as ordens de Deus aumentarão e prosperarão."
- A disputa do corpo de Moisés por Miguel e satanás é a disputa sobre quem governa o mundo.
- Nós temos duas instâncias interligadas – a terrena e a celeste. Os chefes das nações ímpias se ligam a satanás. Josué se liga a Miguel. Está feito o campo de batalha. A luta se dará sobre o destino dos ímpios e dos justos sobre a terra. No entanto, nem a Josué é permitido destruir de vez os ímpios e nem a Miguel foi permitido amaldiçoar satanás, como é dito no texto de Judas.
"...não ousou pronunciar juízo de maldição contra ele; mas disse: 'O Senhor te repreenda.'"
- Miguel diz: "O Senhor te repreenda" porque somente a Deus cabe este papel – qual seja: decidir o destino final dos ímpios e dos justos. Da mesma forma era proibido a Josué destruir as nações ímpias, porque somente a Deus cabe este papel.
Analisando o contexto sob o viés da epístola de Judas
Perceba agora, sabendo dessa passagem, que o texto de Judas se refere a um embate entre grupos cristãos. De acordo com o autor desta epístola, alguns indivíduos "psíquicos" [ou seja, carnais] se infiltraram na Igreja. E estes indivíduos estão injuriando os "espirituais" e desrespeitando as autoridades.
Neste ponto nós temos duas proposições:
- Uma definitiva – Nem o próprio arcanjo Miguel quando se defrontava com o próprio satanás pôde injuriar. Logo, estes homens psíquicos estão fazendo algo que nem a altíssima hierarquia angelical não ousou fazer.
- Uma sugestiva – Os espirituais devem transferir a autoridade da repreensão a Deus: "Que o Senhor os repreenda". Essa sugestão, aliás, é tomada como base para a vertente cristã mais tradicional que não acredita na ocorrência de uma batalha espiritual.
No entanto, após isso, o autor do texto também caminha por uma trilha pré-determinista através das profecias de Henoc (outro registro apócrifo). Ou seja, a mesma lógica vista na Assumptio Mosis – as coisas acontecem desta forma atualmente porque assim está previsto no plano divino. Mas ao final, Deus intervirá em favor dos justos [no caso, os cristãos espirituais].
O autor do texto da Ascensão de Moisés está, na verdade, entra em uma polêmica com outros autores apocalípticos. Contrariando a ideia de que "o mundo jaz no maligno", o autor deste texto está dizendo "o mundo está e sempre esteve nas mãos de Deus".
Conclusão
Uma lição sobre autoridade espiritual
Judas cita um exemplo de alguém que respeitou a autoridade devidamente constituída. Este relato fascinante – e, convenhamos, um tanto polêmico –, exclusivo de Judas nas Escrituras, ensina duas lições distintas.
Judas foi inspirado a escrever sobre esse incidente por um motivo: infelizmente, alguns cristãos na época de Judas não eram humildes. Eles arrogantemente
'falavam de modo ultrajante de todas as coisas que realmente não conheciam' (Jd 10).
Para nós, humanos imperfeitos, é muito fácil sermos vencidos pelo orgulho. Como agimos quando não entendemos algo que é feito na Igreja, talvez envolvendo alguma decisão da liderança? Se começarmos a falar de modo negativo, crítico, apesar de não ser possível saber de todos os fatos envolvidos nas decisões, não estaremos demonstrando falta de humildade? Em vez de agir assim, imitemos Miguel, não julgando assuntos que Deus não nos deu autoridade para julgar.
Miguel tem de travar a luta vitoriosa contra satanás por incumbência do Senhor (Apocalipse 12:7-9). Por isso é tanto mais significativo que Miguel, na ocasião passada em que "disputava o corpo de Moisés", não se dirigiu ao diabo com uma sentença blasfemadora, mas deixou a "repreensão" totalmente por conta do Senhor, que como repreensão divina possui máxima eficácia (Salmo 18:15; 104:7-9; 106:9) e por isso também pode ser traduzido por "punir". Como, então, seres humanos ousariam blasfemar glórias, ainda que sejam caídas e hostis a Deus? A moral que Judas aponta é que Miguel mostrou reservas até mesmo em seu relacionamento com o diabo, enquanto os falsos mestres não exibiam reverência por qualquer autoridade.
Não sabemos o que teriam dito sobre os anjos aqueles homens aos quais atacava Judas. Talvez dissessem que os anjos não existiam, ou que eram maus e estavam a serviço do deus mau. Esta é uma passagem que, sem dúvida, significa muito pouco para nós, mas que, da mesma maneira, para não duvidar disso, configuraria um poderoso argumento contra aqueles aos quais Judas se dirigiu.
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A Deus toda glória.
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