sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A FÉ E A RAZÃO: UM BREVE CONCEITO SOBRE FILOSOFIA


Em conversa com um velho conhecido - não chega a ser um amigo –, mestre em Filosofia, ele me perguntou qual o meu conceito sobre o tema. Sendo ele sabedor de minha confissão de fé, acredito que de início ele tenha pensado que eu fosse do tipo que despreza a Filosofia, que a considera incompatível com os princípios da fé cristã. Ele confessou ter se surpreendido com meu posicionamento.

É que não misturo alhos com bugalhos. Acredito que não haja nenhuma incompatibilidade entre a Filosofia e os princípios da fé cristã. Que cada uma dessas vertentes cumpre o seu papel na formação do indivíduo. O meu papo com esse conhecido me inspirou a escrever esse artigo. 

As Características Filosóficas do Cristianismo 


Não há propriamente uma história da filosofia cristã, assim como há uma história da filosofia grega ou da filosofia moderna, pois no pensamento cristão, o máximo valor, o interesse central, não é a filosofia, e sim a religião. Entretanto, se o ser cristão não se apresenta, de fato, como uma filosofia, uma doutrina, mas como uma vertente de fé, uma sabedoria, pressupõe uma específica concepção do mundo e da vida, pressupõe uma precisa solução do problema filosófico. 

É o teísmo e o "cristianismo". O "cristianismo" – e aqui não me refiro ao segmento religioso, mas sim à prática dos preceitos cristãos  fornece ainda uma imprescindível  integração à filosofia, no tocante à solução do problema do mal, mediante os dogmas do pecado original e da redenção pela cruz. E, enfim, além de uma justificação histórica e doutrinal da revelação judaico-cristã em geral, o cristianismo implica uma determinação, elucidação, sistematização racional do próprio conteúdo sobrenatural da Revelação, mediante uma disciplina específica, que será a teologia dogmática. 

Pelo que diz respeito ao teísmo, saliento que o cristianismo o deve, historicamente, a Israel. Mas entre os hebreus o teísmo não tem uma justificação, uma demonstração racional, como, por exemplo, em Aristóteles [✰384–✟322 a.C foi um importante filósofo grego. Um dos pensadores com maior influência na cultura ocidental. Foi discípulo do filósofo Platão.], de sorte que, em definitivo, o pensamento cristão tomará na grande tradição especulativa grega esta justificação e a filosofia em geral. 

Isto se realizará graças especialmente à Escolástica e, sobretudo, a Tomás de Aquino [✰1225-✟1274, filósofo e frade italiano, cujas obras tiveram grande influência na teologia e filosofia, principalmente na Escolástica, no século XXII]. Pelo que diz respeito à solução do problema do mal, solução que constitui a integração filosófica proporcionada pelo cristianismo ao pensamento antigo  que sentiu profundamente, dramaticamente, este problema sem o poder solucionar  friso que essa representa a grande originalidade teórica e prática, filosófica e moral, do cristianismo. 

Soluciona este o problema do mal precisamente mediante os dogmas fundamentais do pecado original e da redenção da cruz. Finalmente, a justificação da Revelação em geral, e a determinação, dilucidação, sistematização racional do conteúdo da mesma, têm uma importância indireta com respeito à filosofia, porquanto implicam sempre numa intervenção da razão. 

Foi esta, especialmente, a obra da Patrística – filosofia cristã formulada pelos padres (pais) da Igreja nos primeiros cinco séculos de nossa era, buscando combater a descrença e o paganismo por meio de uma apologética da nova religião, calcando-se frequentemente em argumentos e conceitos procedentes da filosofia grega  e, sobretudo, de Agostinho [✰354-✟430 d.C.,um dos mais importantes teólogos e filósofos dos primeiros anos do cristianismo cujas obras foram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e filosofia ocidental.].

Dividindo para melhor entender


Esta parte, dedicada à história do pensamento cristão, será, portanto, dividida do seguinte modo: 
  1. o Cristianismo, isto é, o pensamento do Novo Testamento, enquanto soluciona o problema filosófico do mal; 
  2. a Patrística, a saber, o pensamento cristão desde o II ao VIII século, a que é devida particularmente a construção da teologia, da dogmática católica; 
  3. a Escolástica, a saber, o pensamento cristão desde o século IX até o século XV, criadora da filosofia cristã verdadeira e própria.

Características Gerais do Pensamento Cristão 


Foi conquistada a cidade que conquistou o universo. Assim definiu Jerônimo [✰347-✟420 d.C., também conhecido por Jerônimo de Estridão, foi um sacerdote cristão ilírio, destacado como teólogo e historiador e considerado confessor e Doutor da Igreja pela Igreja Católica] o momento que marcaria a virada de uma época. Era a invasão de Roma pelos germanos e a queda do Império Romano.

A avalancha dos bárbaros arrasou também grande parte das conquistas culturais do mundo antigo. 

A Idade Média inicia-se com a desorganização da vida política, econômica e social do Ocidente, agora transformado num mosaico de reinos bárbaros. Depois vieram as guerras, a fome e as grandes epidemias. O cristianismo propaga-se por diversos povos. A diminuição da atividade cultural transforma o homem comum num ser dominado por crenças e superstições. 

O período medieval não foi, porém, a "Idade das Trevas", como se acreditava. A filosofia clássica sobrevive, confinada nos mosteiros religiosos. O aristotelismo dissemina-se pelo Oriente bizantino, fazendo florescer os estudos filosóficos e as realizações científicas. No Ocidente, fundam-se as primeiras universidades, ocorre a fusão de elementos culturais greco-romanos, cristãos e germânicos, e as obras de Aristóteles  são traduzidas para o latim.

Sob a influência da Igreja, as especulações se concentram em questões filosófico-teológicas, tentando conciliar a fé e a razão. E é nesse esforço que Agostinho e Tomás de Aquino trazem à luz reflexões fundamentais para a história do pensamento cristão. 

A Filosofia Medieval e o Cristianismo 


Ao longo do século V d.C., o Império Romano do Ocidente sofreu ataques constantes dos povos bárbaros. Do confronto desses povos invasores com a civilização romana decadente desenvolveu-se uma nova estruturação européia de vida social, política e econômica, que corresponde ao período medieval. 

Em meio ao esfacelamento do Império Romano, decorrente, em grande parte, das invasões germânicas, a Igreja católica conseguiu manter-se como instituição social mais organizada. Ela consolidou sua estrutura religiosa e difundiu o cristianismo entre os povos bárbaros, preservando muitos elementos da cultura pagã greco-romana. 

Apoiada em sua crescente influência religiosa, a Igreja passou a exercer importante papel político na sociedade medieval. Desempenhou, por exemplo, a função de órgão supranacional, conciliador das elites dominantes, contornando os problemas da fragmentação política e das rivalidades internas da nobreza feudal. Conquistou, também, vasta riqueza material: tornou-se dona de aproximadamente um terço das áreas cultiváveis da Europa ocidental, numa época em que a terra era a principal base de riqueza. Assim, pôde estender seu manto de poder "universalista" sobre diferentes regiões europeias. 

Conflitos e Conciliação entre a Fé e Saber 


No plano cultural, a Igreja exerceu amplo domínio, trançando um quadro intelectual em que a fé cristã era o pressuposto fundamental de toda sabedoria humana. 

Em que consistia essa fé? 


Consistia na crença irrestrita ou na adesão incondicional às verdades reveladas por Deus aos homens. Verdades expressas nas Sagradas Escrituras (Bíblia) e devidamente interpretadas segundo a autoridade da Igreja. 
"A Bíblia era tão preciosa que recebia as mais ricas encadernações". 
De acordo com a doutrina católica, a fé representava a fonte mais elevada das verdades reveladas - especialmente aquelas verdades essenciais ao homem e que dizem respeito à sua salvação. Neste sentido, afirmava Ambrósio [✰337-✟397 d.C., arcebispo de Mediolano que se tornou um dos mais influentes membros do clero no século IV]
"Toda verdade, dita por quem quer que seja, é do Espírito Santo."
Assim, toda investigação filosófica ou científica não poderia, de modo algum, contrariar as verdades estabelecidas pela fé. Segundo essa orientação, os filósofos não precisavam se dedicar à busca da verdade, pois ela já havia sido revelada por Deus aos homens. Restava-lhes, apenas, demonstrar racionalmente as verdades da fé. 

Não foram poucos, porém, aqueles que dispensaram até mesmo essa comprovação racional da fé. Eram os religiosos que desprezavam a filosofia grega, sobretudo porque viam nessa forma pagã de pensamento uma porta aberta para o pecado, a dúvida, o descaminho e a heresia (doutrina contrária ao estabelecido pela Igreja, em termos de fé). 

Por outro lado, surgiram pensadores cristãos que defendiam o conhecimento da filosofia grega, na medida em que sentiam a possibilidade de utilizá-la como instrumento a serviço do cristianismo. Conciliado com a fé cristã, o estudo da filosofia grega permitiria à Igreja enfrentar os descrentes e demolir os hereges com as armas racionais da argumentação lógica. O objetivo era convencer os descrentes, tanto quanto possível, pela razão, para depois fazê-los aceitar a imensidão dos mistérios divinos, somente acessíveis à fé. 

Entre os grandes nomes da filosofia católica medieval destacam-se Agostinho e Tomás de Aquino. Eles foram os responsáveis pelo resgate cristão das filosofias de Platão [✰?-✟348 a.C., filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental] e de Aristóteles, respectivamente.
"Tende muito cuidado para que ninguém vos escravize as vãs e enganosas filosofias, que se baseiam nas tradições humanas e na falsa religiosidade deste mundo, e não em Cristo" (Colossenses 2:8, grifo meu). 

Patrística 

"A fé em busca de argumentos racionais a partir de uma matriz platônica." 
Desde que surgiu o cristianismo, tornou-se necessário explicar seus ensinamentos às autoridades romanas e ao povo em geral. Mesmo com o estabelecimento e a consolidação da doutrina cristã, a Igreja católica sabia que esses preceitos não podiam simplesmente ser impostos pela força. Eles tinham de ser apresentados de maneira convincente, mediante um trabalho de conquista espiritual. 

Foi assim que os primeiros Padres (pais) da Igreja se empenharam na elaboração de inúmeros textos sobre a fé e a revelação cristãs. O conjunto desses textos ficou conhecido como patrística por terem sido escritos principalmente pelos grandes Padres da Igreja. 

Uma das principais correntes da filosofia patrística, inspirada na filosofia greco-romana, tentou munir a fé de argumentos racionais. Esse projeto de conciliação entre o cristianismo e o pensamento pagão teve como principal expoente o Padre Agostinho. 
"Compreender para crer, crer para compreender" (Agostinho). 

Escolástica 

"Os caminhos de inspiração aristotélica levam até Deus". 
No século VIII, Carlos Magno resolveu organizar o ensino por todo o seu império e fundar escolas ligadas às instituições católicas. A cultura greco-romana, guardada nos mosteiros até então, voltou a ser divulgada, passando a Ter uma influência mais marcante nas reflexões da época. Era a renascença carolíngia. 

Tendo a educação romana como modelo, começaram a ser ensinadas as seguintes matérias: gramática, retórica e dialética (o trivium) e geometria, aritmética, astronomia e música (o quadrivium). Todas elas estavam, no entanto, submetidas à teologia. 

A fundação dessas escolas e das primeiras universidades do século XI fez surgir uma produção filosófico-teológica denominada escolástica (de escola). 

A partir do século XIII, o aristotelismo penetrou de forma profunda no pensamento escolástico, marcando-o definitivamente. Isso se deveu à descoberta de muitas obras de Aristóteles, descobertas até então, e à tradução para o latim de algumas delas, diretamente do grego. 

A busca da harmonização entre a fé cristã e a razão manteve-se, no entanto, como problema básico de especulação filosófica. Nesse sentido, o período escolástico pode ser dividido em três fases: 
  • Primeira fase  (do século IX ao fim do século XII): caracterizada pela confiança na perfeita harmonia entre fé e razão. 
  • Segunda fase  (do século XIII ao princípio do século XIV): caracterizada pela elaboração de grandes sistemas filosóficos, merecendo destaques nas obras de Tomás de Aquino. Nesta fase, considera-se que a harmonização entre fé e razão pôde ser parcialmente obtida. 
  • Terceira fase  (do século XIV até o século XVI): decadência da escolástica, caracterizada pela afirmação das diferenças fundamentais entre fé e razão.

Conclusão 


As questões dos universais - O que há entre as palavras e as coisas 

O método escolástico de investigação, segundo o historiador francês Jacques Le Goff [✰1924-✟2014, historiador francês especialista em Idade Média. Autor de dezenas de livros e trabalhos, era membro da Escola dos Annales, empregou-se em antropologia histórica do ocidente medieval], privilegiava o estudo da linguagem (o trivium) para depois passar para o exame das coisas (o quadrivium). Desse modo surgiu a seguinte pergunta: qual a relação entre as palavras e as coisas?

Rosa, por exemplo, é o nome de uma flor. Quando a flor morre, a palavra rosa continua existindo. Nesse caso, a palavra fala de uma coisa inexistente, de uma ideia geral. Mas como isso acontece? O grande inspirador da questão foi o neoplatônico Porfírio [✰234-✟304/309 ca., conhecido por sua biografia de Plotino e seu papel na edição da obra Eneadas], em sua obra 'Isagoge':
"Não tentarei enunciar se os gêneros e as espécies existem por si mesmos ou na pura inteligência, nem, no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos, nem se existem separados dos objetos sensíveis ou nestes objetos, formando parte dos mesmos".
Esse problema filosófico gerou muitas disputas. Era a grande discussão sobre a existência ou não das ideias gerais, isto é, os chamados universais de Aristóteles. 

Por fim, acredito que apesar dos equívocos lamentáveis opondo os protagonistas do crer e do saber filosófico, científico, tecnológico, na medida em que predominam a autenticidade, o amor da verdade e do outro, religião e secularidade, a fé e a razão têm hoje a grande oportunidade, jamais tão real e ampla, de coexistir e conviver na pluralidade. Esta não é uma simples tolerância de um mal menor. É a condição da verdadeira sociedade humana, tecido harmonioso de estima da verdade, da liberdade, da inteligência e da consciência. 

Não seria nessa visão positiva que bem se situa hoje a reflexão sobre a bipolaridade tradicional Fé e Razão? 

Escrevi mais sobre esse assunto aqui: 


A Deus toda glória.
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E nem 1% religioso.

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